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    Ilustração: Carvall

anais da cinematografia

Glauber Rocha e o facão

Um encontro com o diretor de Terra em Transe, que morreu há quarenta anos

Geraldo Mayrink | 20 ago 2021_13h32
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Glauber Rocha estava de bermuda, sandálias e uma camisa branca desabotoada, deixando ver os vastos pelos do seu peito, quando desceu ao bar do hotel Sol Ipanema para dar uma entrevista. Era uma noite chuvosa e às 9 horas ele sentou-se ao lado do repórter para falar. Não havia mais ninguém em volta. Glauber tomou um chope, dois copos de água mineral e um café, que sorveu só pela metade. Fumou meio cigarro. Ele tinha problemas intestinais ou uma úlcera, nunca explicou, e por isso bebia quase nada. Mas estava exuberante, como sempre, na disposição para a oratória. Sua voz ecoava pelo salão vazio. Pena que não houvesse plateia. Estava sentado num sofá que terminava na parede. Não poderia sair de lá a não ser que o repórter se levantasse para lhe dar passagem. Quer dizer, era um homem encurralado num beco sem saída.

O repórter gravava a conversa num equipamento novo na época, o microcassete, emprestado de um amigo, e não sabia operar aquilo direito. Quando a primeira fita acabou, no começo da prosa de Glauber, não conseguiu abrir a caixinha da nova fita. Pediu ajuda a um garçom. Uma faca, um garfo, alguma coisa que cortasse o adesivo plástico que protegia a embalagem. Glauber continuava falando, mesmo sem gravação. O garçom trouxe um facão enorme, e o repórter o usou, desastradamente, para esfaquear o invólucro, enquanto avisava ao entrevistado: “Vai falando.”

Ele passou a falar menos e, quando a fita foi finalmente colocada no lugar, o entrevistado estava mudo. Mudo e com a pele amarelo-clara, cor que os amigos sempre identificavam nele em momentos de tensão. Com o gravador de novo ligado, não queria abrir a boca. Seus olhos saltados estavam cravados no facão, deixado na mesa ao lado. Aí falou: “Pede para ele tirar essa faca daqui.”

Glauber e Mayrink -
Glauber e Mayrink – Fotos: reprodução de internet e Cristiano Mascaro, cedida ao acervo da família Mayrink/intervenção de Paula Cardoso

 

O garçom tirou a faca e a conversa continuou, de novo animada, por mais quatro fitas. Foi só muito tempo depois, com Glauber já morto, que o repórter se deu conta da cena de terror que fora aquela entrevista. Glauber deve ter intuído que finalmente seria morto, e o cenário do bar do hotel vazio, com ele espremido contra a parede, era o lugar certo.

O assassino, sem testemunhas, seria um jornalista conhecido dele, que já almoçara em sua casa e além disso acompanhara profissionalmente as filmagens de Terra em Transe, encarregado de produzir noticiário para a imprensa. Perfeito. O crime absoluto, sem suspeitos nem testemunhas. Devem ter sido essas as imagens que invadiram a cabeça de Glauber e o deixaram pálido, sem que o repórter percebesse que estava diante de um homem marcado para morrer.

Ele se despediu cordialmente e marcou para a manhã seguinte uma nova entrevista, que se abriu com uma frase bocejante de sono: “Eu vou morrer.” Morreu em 22 de agosto de 1981, pouco mais de um ano depois da conversa de mais de três horas no hotel. As microfitas tiveram que ser devolvidas ao seu dono, depois de transcritas. Ele as usou em outras entrevistas e depois jogou fora. Perderam-se para sempre.

*

O texto acima é um relato inédito do jornalista Geraldo Mayrink (1942-2009) sobre os bastidores de uma entrevista que ele fez com Glauber Rocha para a Playboy, em 1980, na época do lançamento do filme A Idade da Terra. Será publicado no site geraldomayrink.com.br, projeto de reunião dos principais textos do jornalista.

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