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questões cinematográficas

Godard antissemita?

Quando Jean Luc Godard completou oitenta anos, em dezembro passado, o “Le Monde” publicou uma declaração de amizade feita por Daniel Cohn-Bendit

| 11 jan 2011_14h39
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Quando Jean Luc Godard completou oitenta anos, em dezembro passado, o “Le Monde” publicou uma declaração de amizade feita por Daniel Cohn-Bendit (disponível aqui).

No artigo, o ex-líder estudantil e atual integrante do Parlamento Europeu, evoca sua relação com Godard, iniciada em março de 1968, quando a universidade de Nanterre foi ocupada pelos estudantes. No outono desse mesmo ano, em Roma, eles colaboraram na realização de “Vento do leste”, filme no qual Glauber Rocha faz um pequeno papel.

Para Cohn-Bendit, “Godard é alguém que se apropria de todo fermento revolucionário para superar sua própria história. […] toda sua vida é uma revolta permanente contra sua origem, contra sua família que pertencia à grande burguesia suiça, racista e fascistóide.”

O próprio Godard foi claro a esse respeito, tendo falado numa palestra, em Montreal, em 1978, do colaboracionismo da sua própria família durante a Segunda Guerra, dizendo que seu avô era “ferozmente não antissionista, ele era antijudeu; enquanto eu sou antissionista, ele era antissemita”.

Filmado na Palestina entre 1969 e 70, “Ici et Ailleurs” (“Aqui e em outro lugar”), concluído em 1974, teria valido a Godard, segundo Cohn-Bendit, as primeiras críticas de ser antissemita por comparar Golda Meir a Hitler, “sugerindo que os israelenses fazem com os palestinos o que os nazistas fizeram com os judeus. Eis a postura pró-palestiniana radical e antissionista de Godard: hoje, os palestinos são as vítimas de outrora. Desde então a questão que se coloca é: Godard é antissemita?”

Cohn-Bendit admite que Godard não respeita os preceitos do judaismo, mas não hesita em negar que ele seja um antissemita militante; reconhece que “como todo mundo” ele faz piadas sobre judeus. O suposto antissemitismo de Godard, escreve Cohn-Bendit, “tem origem no seu período maoista. Mas no fundo, a preocupação de Godard até hoje é esta: os judeus deveriam ter sido protegidos dos nazistas. E quem são os judeus hoje em dia? Os palestinos. Eis por que é preciso protegê-los contra Israel. Não se trata de saber se é justo ou falso. Isso não leva a nada. Cada um tem um problema. Como nos romances, como nos filmes. E essa é a tarefa de Godard.”

Apesar da negativa enfática, a continuação do artigo de Cohn-Bendit instaura uma certa ambiguidade: “Eu digo: Godard é um artista muito grande, como Cèline que era antissemita mas que mesmo assim escreveu um dos livros mais impressionantes sobre a guerra. Ou como Richard Wagner, Gottfried Benn e outros. Há tantos artistas que não são .”

Vendo “Aqui e em outro lugar” hoje, é difícil entender que o filme possa ter originado a atribuição de antissemitismo a Godard. Disponível na caixa de DVDs editada em Barcelona, em 2008, que reúne os filmes da fase maoista de Godard (1968-1972), conhecidos como produção do Grupo Dziga Vertov, lá está, de fato, uma colagem reunindo em um único plano fotos de Golda Meir e Hitler. Em retrospecto, porém, essa parece mais uma simplificação grosseira do que manifestação antissemita.

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Falando de “O Pequeno soldado” (1960), Godard declarou, na época, que “podemos dizer que não é político por que eu não tomo posição por ninguém e por que o assunto não é ‘orientado’ como acontece nos filmes russos”. Em “Aqui e em outro lugar”, marco da ruptura de Godard com a militância maioista ele também não toma partido. A própria mudança do título original – “Até a vitória!” – para “Aqui e em outro lugar” já indica tentativa de superar o sectarismo político. “Simples demais, e fácil demais, dividir o mundo em dois; simples demais, fácil demais, dizer simplesmente que os ricos estão errados e os pobres tem razão etc.”, diz a voz masculina da narração.

Ninguém é poupado no filme, nem o próprio Godard. A voz feminina da narração comenta: “Vemos sempre quem está em cena e nunca quem dirige a cena. Não vemos nunca quem manda e dá as ordens. E outra coisa que não funciona [neste plano]. Você [Godard] escolheu uma jovem intelectual simpatizante da causa palestina que não está grávida mas que aceita representar o papel de grávida. E, além disso, ela é moça e bonita. E aí você [Godard] fica calado. Desse tipo de segredo ao fascismo é um pulo.”

É sintomático que Cohn-Bendit tenha dado tanta importância em seu artigo ao suposto antissemitismo de Godard. Mas se a questão ainda incomoda, não parece ser por causa de um filme que ninguém viu, feito há mais de trinta anos.

Suponho que a biografia de Godard, escrita por Richard Brody e publicada em 2008 – “Everything is cinema – The Working life of Jean-Luc Godard” (sem edição brasileira) – tenha influido na volta do assunto à tona. Brody fala, entre várias outras coisas, no “endurecimento das afiadas atitudes antissemitas de Godard”. O livro foi devolvido a Brody por Godard com uma frase manuscrita na capa à caneta hidrográfica preta: “Enquanto houver rastejadores para rastejar, haverá assassinos para matar”, paráfrase de Vitor Hugo, esclarece Antoine de Baecque na monumental biografia “Godard”(também sem edição brasileira), publicada em 2010. [ continua]