O maior desvio de poder presidencial em favor do golpe tem nome e sobrenome: Mauro Cid. Nos últimos meses de 2022, a rotina do ajudante de ordens parece ter sido inteiramente dedicada a crimes para beneficiar seu chefe. Cid era o longa manus de Bolsonaro. Suas ações são também do ex-presidente Foto: Reuters/Folhapress
Um golpe fracassado, mas ainda assim um golpe
Os bolsonaristas argumentam que “pensar em matar” alguém não é crime, o que é verdade. Mas Bolsonaro e seus subordinados fizeram muito mais do que isso
Cumprindo o prognóstico de que o cerco aos golpistas se fecharia depois das eleições municipais, a Polícia Federal enviou ao Supremo Tribunal Federal na quinta-feira (21) a conclusão das investigações sobre a tentativa de golpe. No topo da lista de indiciados estão os colegas de chapa Jair Bolsonaro e Braga Netto. Estão também Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Mauro Cid, Almir Garnier e mais duas dezenas de militares. Não há episódio semelhante na história do Brasil: somos um país com dificuldade atávica em submeter à Justiça integrantes das Forças Armadas.
Os crimes apurados são golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Caberá ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, decidir se os indiciamentos serão transformados em denúncias formais. E, caso isso aconteça, será do Supremo a decisão de aceitá-las ou não. Supondo que sejam aceitas, Bolsonaro e seus aliados podem ser condenados a aproximadamente duas décadas de prisão – afinal, tem sido essa a dosimetria aplicada pelo STF nas penas dos invasores do 8 de janeiro, acusados em sua maioria pelos mesmos delitos.
No ato de indiciamento, a polícia lista os crimes que apurou no inquérito e quem os cometeu. Bolsonaro conhece bem o trâmite – já foi indiciado outras duas vezes, no caso das joias sauditas e do cartão de vacina adulterado. Gonet pode inclusive optar por juntar os três indiciamentos numa única denúncia contra o ex-presidente, costurando-os como parte de uma mesma teia golpista. É possível argumentar que o atestado falso de vacinação e o dinheiro das joias desviadas garantiriam condições sanitárias e materiais para que Bolsonaro descansasse na Flórida enquanto esperava pelo desfecho do golpe que, se bem-sucedido, permitiria seu retorno triunfal.
Gonet, segundo notícias divulgadas esta semana, só deve tomar uma decisão no ano que vem. Sua atuação nesse caso será a melhor oportunidade para sabermos se o procurador-geral foi forjado no mesmo barro que seu antecessor, Augusto Aras.
A mais importante constatação trazida pelos indiciamentos é que a PF não comprou as desculpas de Bolsonaro para tentar se distanciar do enredo golpista. O ex-presidente diz que tudo, das maquinações palacianas à invasão violenta da Praça dos Três Poderes, aconteceu à sua revelia. É uma tese difícil de sustentar à luz do que revelaram as últimas fases da investigação: há indícios de que Bolsonaro esteve direta e indiretamente envolvido com uma série de eventos e personagens que só se explicam como partes de um plano para frustrar o resultado da eleição. Isso inclui os atos de violência e coação planejados por pessoas de sua confiança, como o tenente-coronel Mauro Cid e o general Mário Fernandes, número dois da Secretaria-Geral da Presidência e figura de proa na chamada “Operação Copa 2022”, que pretendia “neutralizar” Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes.
As informações espantosas que vieram à tona nos últimos dias deixam claro que Bolsonaro agiu para continuar no poder a qualquer custo – o que, depois de uma derrota eleitoral, só pode acontecer mediante um golpe de Estado. O fato de ele próprio não ter arremessado uma pedra contra as vidraças do STF no 8 de janeiro ou assinado um plano de assassinato não o isenta de responsabilidade. Bolsonaro teve papeis ativos no projeto golpista, os quais desempenhou conscientemente.
O primeiro papel foi o de líder carismático. O ex-presidente propagou a versão brasileira da chamada “grande mentira” (big lie, na expressão cunhada por Trump), insistindo que a reeleição lhe foi roubada pelo TSE, e a ideia de que, para reagir a isso, nenhum sacrifício deveria ser descartado. Em boa medida, o plano funcionou: os acampantes dos quarteis, os invasores de Brasília, o chaveiro terrorista e outros tantos embarcaram no golpe porque confiavam sinceramente na parolagem de Bolsonaro. Confiança que se estendeu aos seus principais emissários, como Braga Netto, que alimentou extremistas, tanto militares quanto civis, com a esperança de uma virada de mesa até o último minuto. Bolsonaro – e isso é o que mais importa para o seu indiciamento – sabia do que se passava. Esperava colher os frutos das ações desses apoiadores fanáticos, fosse através da pressão que eles exerceriam sobre os militares, fosse pelo caos social que tentariam provocar. Não faltaram tentativas: estradas foram bloqueadas, carros incendiados, uma bomba foi plantada próxima ao aeroporto de Brasília, tudo isso num intervalo de semanas entre dezembro e janeiro de 2022, culminando com a invasão à Praça dos Três Poderes.
O segundo papel foi o de líder político. Como maior cabo eleitoral da direita brasileira àquela altura, o então presidente deu o norte que foi seguido por seus aliados em diversas instituições. Carla Zambelli, hoje renegada pelo bolsonarismo mainstream, chegou a ser multada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por mentir sobre as urnas eletrônicas durante a campanha. Valdemar Costa Neto, presidente do PL e empregador do casal Bolsonaro, apresentou uma auditoria qualquer para apontar falhas nas urnas logo após seu candidato ser derrotado. Da mesma forma, o Ministério da Defesa – comandado na época por Paulo Sérgio Oliveira, um dos indiciados pela Polícia Federal – pariu um relatório sugerindo que as urnas poderiam ter vulnerabilidades.
O terceiro papel de Bolsonaro foi o de presidente – isto é, pessoa que dispõe de poderes e prerrogativas especiais, com comando direto sobre o governo federal e as estruturas da Presidência. A trama golpista, indica a PF, foi elaborada dentro do Palácio do Planalto – e não só porque o general Mário Fernandes imprimiu lá o plano contra Lula, Alckmin e Moraes. Na reunião ministerial de 5 de julho de 2022, Bolsonaro exigiu que todos se engajassem na campanha pelo descrédito das eleições: “Quero que todo ministro fale o que vou falar aqui.” E foi atendido por muitos dos presentes, agora indiciados junto com ele, como Alexandre Ramagem (que, enquanto ministro da Justiça, chegou a minutar argumentos contra as urnas) e o general Augusto Heleno (que advertiu: “Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições.”) Triangulações dos sinais de celulares sugerem que o general Mário Fernandes discutiu o plano golpista com Bolsonaro no Alvorada, o que bate com a apuração anterior de que Bolsonaro pessoalmente trabalhou na redação do plano golpista.
Mas o maior desvio de poder presidencial em favor do golpe tem nome e sobrenome: Mauro Cid. Nos últimos meses do governo, a rotina do ajudante de ordens parece ter sido inteiramente dedicada à prática de crimes para beneficiar política e financeiramente seu chefe. Cid era o longa manus de Bolsonaro. Suas ações são também do ex-presidente. Não há quem possa acreditar que o ajudante de ordens arquitetou um golpe-surpresa com o qual pretendia presentear o querido chefe.
Os mais importantes elementos que ligam Bolsonaro à tentativa de golpe são aqueles ocorridos após as eleições de 2022, nos meses de novembro e dezembro. Em uma situação normal, o governo derrotado teria uma única incumbência nesse período: preparar a transição para entregar o poder aos vencedores. Bolsonaro e sua turma, em vez disso, tiveram o que talvez tenha sido o fim de ano mais agitado de suas vidas. Trabalharam ativamente por um golpe que seria consumado tão logo o presidente conseguisse convencer os comandantes das Forças Armadas. Foi nessa época que Bolsonaro se reuniu com Mauro Cid, Mário Fernandes e o “kid preto” Rafael de Oliveira no Planalto (os dois últimos estão presos por causa do plano para depor Moraes). Foi também nessa época que Bolsonaro e seu ministro da Defesa apresentaram aos comandantes do Exército e da Aeronáutica o verniz formal do golpe que pretendiam dar. O plano incluía a decretação de um Estado de Defesa e a instalação de uma auditoria eleitoral por uma junta militar. Em suma: um episódio de That ‘70s Show Brasil inspirado na ditadura e roteirizado com a autoria principal de Bolsonaro.
A apuração da Polícia Federal revelou o quão perto estivemos do golpe e do assassinato de um presidente eleito. Bastava que, em vez de dizer “não”, alguns comandantes militares dissessem “selva!” Ou que os “kids pretos” que tentaram emboscar Alexandre de Moraes não tivessem sido atrapalhados pela mudança de horário de uma sessão do STF. Estaríamos numa realidade completamente diferente.
Daí porque não procede o argumento ensaiado por Flávio Bolsonaro e outras figuras em defesa dos golpistas. O senador disse que “pensar em matar” alguém ou cogitar um golpe não é crime. É verdade, mas os radicais do Planalto fizeram bem mais do que isso. Bolsonaro não foi indiciado por ter confessado a Michelle, na intimidade do leito matrimonial, seu desejo secreto de destruir a democracia. Foi indiciado porque mobilizou todos os poderes de que dispunha – o poder social sobre seus seguidores, o poder político sobre seus aliados e o poder presidencial sobre o governo– para promover um golpe de Estado. Colocou militares com treinamento de elite para atingir esse intento e mobilizou apoiadores na política e nas ruas para criar um ambiente social favorável a uma ruptura. Falhou, é claro; mas sem dúvida agiu.
Se a medida que deve separar a mera cogitação e preparação de um ato (que não devem ser punidas) da tentativa e da consumação (que devem ser punidas) é o tamanho do perigo ao qual foi exposto o bem que a lei quer proteger, não resta dúvida. O Estado Democrático de Direito, o mais básico dos elementos protegidos pela Constituição, esteve em enorme perigo. O golpe só não se materializou por circunstâncias alheias à vontade de Bolsonaro. Estivemos tão perto de um desastre quanto Bolsonaro está agora de responder por seus crimes contra a democracia.
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