Arthur Lira e José Guimarães na terça-feira, durante a sessão plenária que coloca em votação a Reforma Tributária Ton Molina /Fotoarena/Folhapress
Governo foi cúmplice do golpe de Lira, diz líder do governo
Planalto sabia da manobra e pressionou para que as emendas fossem pagas
O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), disse à piauí que o governo Lula concordou com o golpe final do deputado Arthur Lira, presidente da Câmara. Lira transformou as emendas feitas pelas comissões permanentes da Casa em “emenda de líderes” e, assim, driblou decisões do Supremo Tribunal Federal que exigem transparência no processo. As “emendas de líderes” servem para ocultar o nome dos verdadeiros solicitantes das emendas.
Em conversa por WhatsApp, ao comentar sobre a manobra de Lira, que carrega várias ilegalidades, Guimarães afirmou: “Tudo combinado com o governo.” O líder do governo não quis detalhar como se deu a combinação entre a Câmara e o Palácio do Planalto, mas é certo que ninguém foi surpreendido com o esquema quando a piauí, em reportagem publicada na segunda-feira, 16, revelou sua existência.
A história começa na terça-feira, 10, na reunião de líderes da Câmara. Nesse momento, Lira assuntou sobre a suspensão das comissões temáticas até o fim do ano e, dois dias depois, efetivou a medida: suspendeu as reuniões — e aplicou o golpe final do seu mandato. Primeiro, Lira coordenou o envio ao governo de um ofício assinado por dezessete líderes, com 5 449 indicações de emendas de comissão, cujos valores somam 4,2 bilhões de reais, anulando parte do que as próprias comissões haviam determinado. Por meio desse ofício, redirecionou 73,8 milhões de reais para Alagoas, retirando de outros destinos. Com isso, dos 4,2 bilhões, 479,7 milhões de reais ficaram para seu estado, Alagoas, que se tornou o campeão nacional de emendas. O restante foi dividido entre os demais 26 estados. Agora, sabe-se que, além de Lira e dos dezessete líderes, a manobra contou com a conivência do governo.
A operação é ilegal. As “emendas de líderes” descumprem a Lei Complementar 210, de 2024, aprovada pelo próprio Congresso e sancionada há menos de um mês pelo presidente Lula. Descumprem também as decisões do Supremo Tribunal Federal, que vem tentando moralizar a farra das emendas secretas, e violam a Portaria Conjunta nº 115, baixada pelo Executivo, cujo conteúdo disciplina as regras para que o pagamento das emendas – suspenso pelo ministro Flávio Dino, do STF – fosse retomado.
O governo Lula entra na história do orçamento secreto numa posição singular. Não é o criador da confusão, que vem desde o governo de Jair Bolsonaro. Está sempre tentando lidar com a chantagem que Lira e seus seguidores promovem para votar matérias do interesse do governo, mas tampouco é um agente que busca moralizar a bandalheira. Nesse contexto, o governo é, a um só tempo, cúmplice e refém. Mas as palavras do líder José Guimarães apontam mais para a cumplicidade.
No diálogo por WhatsApp, a piauí perguntou sobre os ofícios assinados pelos dezessete líderes determinando o destino das emendas. A revista queria saber se cada emenda levava assinaturas individualizadas:
– Foram todas misturadas, dezessete lideranças? O senhor poderia apresentar as indicações que couberam à liderança do governo
– Tudo combinado com o governo – respondeu Guimarães. – Cada líder sabe as suas emendas.
– Mas o STF determinou que se tornassem públicos os solicitantes. Se o senhor solicitou por todos os seus liderados, qual é a lista que cabe aos seus liderados? A fração de 1/17 que o senhor assume das emendas de comissão corresponde a quais indicações exatamente?
– Solicitei nada, não. O colégio de líderes que solicitou. Nem eu precisava assinar. Assinei combinado com o governo. A responsabilidade é dos líderes, eu sou um dos dezessete. Fiz tudo combinado com o governo. Abraço
A piauí insistiu no assunto. Quis saber se o líder do governo considerava correto encaminhar as indicações das emendas de comissão do modo que estava sendo feito.
– O jeito certo é do jeito que foi feito, com dezessete líderes assumindo coletivamente? Não deveria ter uma individualização, como cobra o STF? Ou que, pelo menos, cada líder assumisse as indicações de sua bancada?
– Topo qualquer jeito – disse Guimarães, e ponderou em seguida. – Acho que pode ser individualizado. Dar mais transparência.
– Por que não é feito assim, então? Por que a insistência da Câmara em mascarar os reais solicitantes dos repasses em ofícios como esses?
Guimarães não respondeu mais.
O alinhamento do governo ao plano de Lira não se deu apenas na assinatura dos ofícios. Deu-se, também, na forma de pressão para que as emendas sejam efetivamente pagas pelos técnicos dos ministérios encarregados do trâmite burocrático. Chamou a atenção que a orientação jurídica nesse sentido tenha partido da Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos (SAJ), vinculada à Casa Civil da Presidência da República, cujos pareceres têm menos força jurídica do que a Advocacia-Geral da União, essa sim, capaz de dar pareceres vinculantes (que toda administração pública deve seguir).
A piauí entrevistou mais de dez deputados para entender o grau de envolvimento do governo na manobra – e também a insistência no segredo. O deputado Aluísio Mendes (Republicanos-MA), um dos vice-líderes de um bloco que reúne quatro partidos, expõe a dualidade da situação. Disse que “o governo está refém”. “Não tendo uma base consolidada, precisa se render a essa realidade, sob pena de inviabilizar sua continuidade”, afirmou. Diante de uma nova pergunta, afirmou: “Bom, a partir do momento que precisa se render a essa situação, acaba virando cúmplice também.”
O deputado Ivan Valente (Psol-SP), que se diz contra a existência das emendas de comissão e apoia as decisões do STF contra o orçamento secreto, aprofundou o diagnóstico. “O que está acontecendo é que o governo está sendo chantageado, a exemplo do STF, pela esmagadora maioria do Centrão aqui.” E acrescentou: “Agora, o governo podia também resistir mais. Ele ficou ameaçado, se sentiu encurralado, e queria votar o pacote fiscal por causa da chantagem, do terrorismo do mercado. Eu acho que isso acaba tendo uma baixa transparência e uma conivência que não é bom para a democracia. Mas quero dizer que a extrema direita e a bolsonarização do Centrão são as principais razões de tudo que está acontecendo aqui.”
O deputado Glauber Braga (Psol-RJ), que acionou o STF contra o que classifica como uma “manobra espúria” articulada pelo presidente da Câmara, defende a retomada da deliberação nas comissões, com identificação objetiva e individualizada de quem indicou cada emenda. Em relação ao envolvimento do governo, ele diz que atender às chantagens de Lira equivale a “alimentar um monstro”.
Para Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) não se trata de chantagem, mas de jogo parlamentar convencional. “Para o governo conquistar votos em matérias que trazem desgaste ao parlamentar, é importante ter essas emendas que fiquem a cargo dos líderes. Temos tranquilamente 50% dos parlamentares que dependem de ajudar suas bases eleitorais com emendas e em determinadas matérias eles só votam com esse incentivo.” Mas o processo não deveria ser feito com transparência? “Pra nós, tanto faz”, disse ele.
Mas por que tanto faz? Ou, dito de outro modo: por que Lira e seus seguidores insistem tanto na opacidade? Em condições normais, os parlamentares não apenas gostam de divulgar que estão enviando dinheiro para suas bases, fazem inclusive propaganda explícita da remessa. Por que, no caso das emendas orçamentárias, eles insistem tanto em ocultar suas identidades? Quando indagados sobre isso, os parlamentares não enfrentam o assunto com objetividade. É um oceano de tergiversações.
Afonso Motta, líder do PDT, um dos dezessete, ao ser indagado sobre a lista de emendas que solicitou em nome de seus liderados, disse: “Eu não vou me submeter a nenhuma iniciativa, seja a tua, que eu tenho o maior respeito pelo teu trabalho, seja do jornalista que for, que queira forçar a barra num tema que eu entendo que nós estamos atendendo dentro do conceito coletivo que é a defesa do Parlamento. Eu tô ao lado do parlamento, eu faço parte de um colégio de líderes, eu vou participar com o presidente Arthur Lira, depois com o presidente Hugo Motta, na defesa daquilo que nós achamos que é o melhor do Parlamento, entendeu?”
Em seguida, o deputado comentou: “Ah, tem uma nuvem, tem uma fumaça, mas eu não vou me prestar pra esse tipo de coisa. Eu não vou aqui, de maneira nenhuma, sair fora de um caminho que um líder que está conduzindo, que é o presidente da casa. Não posso. […] Quem sou eu, né? Não tenho estatura para isso.” Afonso Motta foi um dos poucos que não pediu sigilo de fonte. Um outro deputado, que pediu para não ser identificado, apresentou o argumento do “realismo”: “Essa é a realidade. Se pra imprensa essa realidade tá certa ou tá errada, aí eu não sei o que dizer. Tô lhe dizendo qual é a realidade. Não teve sacanagem, nem nada novo, não”, disse, ao defender as indicações como encaminhadas pela Câmara ao governo. Confrontado com a informação de que o ofício das “emendas dos líderes” descumpre a Lei Complementar, na medida em que atropela as comissões, esse deputado acusou o Supremo: “O STF fez uma invasão de competência, pô. Com todo o respeito ao meu ex-colega Flávio Dino, mas foi uma invasão de competência. Invasão de competência. Quem é que dá, quem é que faz, elabora as peças orçamentárias é o Congresso. Quem é que diz as regras na Lei de Diretrizes Orçamentárias é o Congresso. O Supremo é a instância máxima do Judiciário Brasileiro. Mas quem faz a lei somos nós, pô.” Ao ser indagado sobre a razão de a Câmara não cumprir a lei que recém-aprovou, o parlamentar ressaltou que não se deveria criminalizar a Câmara. Acrescentou ser um dos “campeões de emendas” e gostar desse título; porém, quando solicitado que listasse as emendas de comissão que teve neste ano de 2024, disse: “Eu não tive nenhuma.”
O deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA) avalia que o problema de baixa transparência em relação às emendas parlamentares está mais relacionado ao Congresso do que ao governo federal. Ele destaca que a força nesse processo está concentrada nos presidentes de casas legislativas e líderes partidários, que direcionam recursos diretamente a parlamentares ou por meio de órgãos que controlam. Alguns ministérios também recebem emendas de comissão, mas essa prática não é uniforme em todos os órgãos.
São inúmeros os deputados que, abordados sobre o sigilo das emendas, fazem questão de dizer que dão transparência a tudo. Felipe Carreras (PSB – PE), vice-líder da maioria, afirmou: “Sou absolutamente favorável ao rastreamento e transparência das indicações das emendas. Acho saudável que não só instituições e órgãos de controle tenham acesso, mas, sobretudo, a população tenha conhecimento.” E por que a Câmara, depois de três anos de debates sobre orçamento secreto, ainda não deu a transparência exigida pelo STF? Carreras não respondeu.
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