Ilustração de Paula Cardoso sobre foto/reprodução de internet
A história de Adriana, a cara do feminicídio no Brasil
Como a maioria das mulheres vítimas desse tipo de crime, ela era negra, pobre, foi pouco à escola e acabou morta pelo companheiro
Edição: Fernanda da Escóssia
Adriana Costa de Alvarenga e Marcos Braz Wagner viveram juntos por dezesseis anos e tiveram quatro filhos. Em 12 de maio de 2020, Wagner matou a mulher na frente dos filhos, na mesma favela da Zona Oeste do Rio onde o casal sempre viveu. A morte foi um dos 648 feminicídios registrados no país no primeiro semestre do ano passado, de acordo com o Anuário 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mais que isso, reflete o perfil típico das mulheres assassinadas por serem mulheres. Dados consolidados para o ano de 2019 mostram que, das vítimas de feminicídio, 66,6% eram negras, 66,4% estudaram até o ensino fundamental (completo ou incompleto); 56,2% tinham de 20 a 39 anos, e 89,9% foram mortas pelo companheiro ou ex-companheiro. Adriana, negra, 28 anos, com ensino fundamental incompleto, assassinada pelo marido, reunia todas essas características.
No mundo do feminicídio, do crime típico ao crime mais comentado, há um abismo: busca simples no Google por “feminicídio” realizada no dia 9 de março, um dia depois do Dia Internacional da Mulher, mostra que as diversas reportagens sobre o tema falam do aumento de casos na pandemia, de estudos e debates sobre o assunto, além de mostrarem muitos números. Também surgiram reportagens sobre casos recentes, como o da dentista pernambucana Emelly Nayane da Silva Ribeiro, morta pelo ex-marido no Recife, no último dia 22 de fevereiro; o assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, na presença das três filhas, na véspera do Natal de 2020; o de Úrsula Bahillo, vítima de feminicídio na Argentina em fevereiro (publicação de 8/3); o de Arlete Gomes Santos, estudante morta a facadas pelo companheiro no último dia 5, em Águas de Lindoia; e de Priscila Ferreira, morta a facadas pelo ex-namorado na Baixada Fluminense, no último dia 6. Se a busca for por “vítimas de feminicídio”, usando o mesmo filtro de “notícias”, idem: surgem reportagens com números, debates sobre o tema, pouquíssimas histórias – as mesmas já citadas.
Por isso mesmo, a história de Adriana não é exemplar apenas para ilustrar o perfil da vítima mais comum de feminicídio. Resume também a invisibilidade que encobre boa parte dessas mortes.
A menina da Zona Oeste do Rio tinha apenas 12 anos quando começou a se relacionar com Marcos Braz Wagner, de 20. Negros, pobres e moradores de periferia, viveram juntos por dezesseis anos na favela Vila Vintém, no bairro de Padre Miguel, onde nasceram os quatro filhos. Ela trabalhava como cabeleireira autônoma. Ele, como entregador. Cedo a família dela percebeu a rotina de violência que cercava o casal. “Sempre teve briga, discussão, porradaria. Mas ela nunca quis dar parte [na polícia]”, diz a mãe de Adriana, Eliane Costa dos Santos, 51. Ela conta que dizia à filha para denunciar as violências do marido e que a resposta de Adriana era sempre a mesma: “Não, não, não. Ele é pai dos meus filhos”, conta Eliane. “E continuou com ele, até chegar a esse ponto”, encerrou a mãe.
A irmã caçula de Adriana, Adriele Costa de Alvarenga, a viu com vida ainda na manhã do crime. Três dos quatro filhos de Adriana estavam com a tia desde o domingo do Dia das Mães (10). Na terça-feira (12), por volta das 6h30 da manhã, Adriele levou as crianças de volta para a casa da irmã. “Ela tava sentada no sofá com o neném no colo, amamentando. O marido dela tava na escada, já na maldade com ela. Aí eu falei: ‘Adriana, vamo lá pra casa’, e ele falou: ‘ela não vai pra lugar nenhum.’ Eles estavam brigando”, recorda Adriele, que foi embora. Entre a casa de Adriana e a sua, eram cerca de 20 minutos de caminhada. Quando se aproximou de sua casa, sua filha a aguardava no portão, depois de atender ao telefone do primo. “Meu sobrinho ligou falando: ‘meu pai bateu na minha mãe e ela tá caída no chão!’, e eu desci pra lá”, conta.
Eram pouco mais de 7 horas da manhã quando Adriele subiu novamente, dessa vez correndo, as escadas da casa da irmã, que encontrou sem vida, no chão, entre a sala e o quarto. “Ela estava caída, já morta. Ele tinha feito mais maldade com ela, porque o cabelo dela tava cheio de esperma, o short rasgado lá na [altura da] boca do estômago, os peitos de fora. Jogou esperma no cabelo dela, o cabelo estava todo sujo. Ela tava pelada, calcinha rasgada”, relata.
Adriele observou ainda que as mãos de Adriana tremeram – espasmos, provavelmente –, o que a levou a pensar que ela ainda pudesse estar viva. As crianças já não estavam na casa, haviam fugido e sido socorridas por uma vizinha. “Eles falaram que o pai deles queria matar eles. Que eles eram cúmplices da mãe”, diz a irmã. Adriele conta que, quando tentou levantar o corpo da irmã, Wagner, que repetia que não havia matado Adriana, reagiu. “Ele disse: ‘eu não acabei ainda não, essa piranha tá viva, tá fingindo de morta, vou acabar com a minha família, essas crianças são tudo safada, não presta’”, referindo-se aos filhos. “Disse: ‘pega ela aí’, com duas facas e um amolador de faca, me xingando de piranha. Aí desci a escada correndo.”
Chamado por moradores, que lhe disseram que havia uma mulher morta na Rua Belisário de Souza, o presidente da Associação de Moradores da Vila Vintém, Patrick Bruno de Souza Costa, foi até a casa onde o crime aconteceu. Ele afirma ter chegado lá por volta de 13h30 e se deparado “com a menina na escada, com as roupas meio bagunçadas, numa posição desfavorável, como se alguém tivesse tentado arrastar ela”. Lá, ficou sabendo que houve a briga e que as agressões eram corriqueiras. “Moradores chamaram dizendo que o rapaz estava no bequinho, amarrado, e que, assim que a polícia saísse, eles iam linchar o rapaz”, conta Patrick. Ele conta que dissuadiu os rapazes. “Me entregaram ele e eu fiquei com ele sentado.”
Eram aproximadamente 14 horas quando os policiais da Divisão de Homicídios chegaram, de acordo com Patrick. Wagner foi preso em flagrante pelo crime de feminicídio na mesma tarde. Patrick o acompanhou até a delegacia. Além dele, prestaram depoimento, como testemunhas, Eliane e três policiais civis. “Ele é acusado de ter golpeado com um amolador de facas sua ex-companheira. Após ser detido, o autor confessou o crime”, informou a Divisão de Homicídios da Capital, por meio de sua assessoria, no dia 20 de maio de 2020. Depois do crime, em 14 de maio, o Ministério Público converteu a prisão em flagrante para preventiva.
Em seu depoimento à polícia, que consta do Termo de Declaração a que a piauí teve acesso, Wagner afirmou que “usava drogas (maconha, cocaína e cheiro de loló) com a vítima” e que era ele mesmo “quem comprava as drogas para o casal usar”. Disse também “que brigava frequentemente com Adriana e que estava drogado com ela desde a noite anterior”, quando, por volta das 7 horas daquela manhã, eles discutiram na frente dos filhos, que também haviam presenciado o consumo de drogas do casal. Afirmou que, em determinado momento, Adriana o “xingou de corno”, ele a empurrou, fazendo com que ela caísse no chão. As crianças “presenciaram a queda de Adriana e saíram do local”. Em seguida, “pegou uma chaira (amolador de facas) e bateu na testa de Adriana e depois bateu também com a chaira na mão dela”.
Diz ainda o documento que, “ao perceber que ela estava desfalecida, levou ela até o banheiro e ligou o chuveiro para lavar ela. Que narcotraficantes pertencentes à facção de drogas ilícitas ADA, que dominam a localidade Vila Vintém, ouviram o barulho da briga do casal e foram até a residência deles ver o que estava acontecendo; que ao constatarem que o declarante havia matado Adriana, os bandidos levaram o declarante até um beco próximo e amarraram ele com fita crepe nas mãos e nos pés; que os bandidos diziam que iam matar o declarante, quando o presidente da Associação de Moradores da Vila Vintém (Patrick Bruno de Souza Costa) pediu aos marginais que o soltassem para que ele fosse preso pelos policiais da Delegacia de Homicídios (GELC 01), que chegou [sic] rapidamente para diligenciar no local do crime”.
Os policiais deram voz de prisão a Wagner, “que confessou o crime de homicídio e foi conduzido preso pelos policiais da DH-Capital até a especializada”. Segundo o defensor público que o assiste, Denis Sampaio, Wagner nega o histórico de violência do casal. De acordo com Sampaio, a versão de Wagner é a que ele apresentou na delegacia e será ouvida novamente no tribunal do júri.
O laudo da necropsia de Adriana mostrou “vestígios de violência pela ação contundente, especificamente na cabeça” e concluiu que “o traumatismo na cabeça, com consequência edema cerebral, ocasionou alteração da consciência e depressão respiratória”.
A diarista Eliane Santos, mãe de Adriana, desde o início se opôs à relação da filha com um homem quase nove anos mais velho. “Por causa da diferença de idade, minha mãe, quando bateu o olho nele, já falou que ele não prestava. Ela falava com a Adriana: ‘ele tem mais idade do que você, olha a cara dele.’ Minha mãe sempre avisou”, conta a caçula. Quando a mãe de Wagner morreu, meses depois do início do namoro, Adriana, então com 12 anos, foi morar com o rapaz, em Padre Miguel. Eliane ameaçou chamar o Conselho Tutelar, mas desistiu. Adriana passou a usar drogas com o companheiro. Durante um período, segundo Adriele, a irmã tentou lutar contra a dependência e ambos chegaram a frequentar uma igreja evangélica para buscar um meio de deixar o uso de drogas. Segundo Adriele, Wagner foi o primeiro e único homem da vida de Adriana.
A jovem parou de estudar logo – segundo Adriele, a irmão foi até a sétima série. Quando Adriana tinha 15 anos, Wagner pagou para ela um curso de cabeleireira, cujo diploma rasgou em uma das inúmeras brigas que tiveram. “Rasgou o diploma do curso e os documentos dela”, conta Adriele. Cabeleireira autônoma, Adriana atendia em domicílio mulheres da comunidade. Wagner fazia bicos como entregador e, nos últimos tempos, era motoboy de uma pizzaria na Vila Vintém. Os dois pagavam a vida simples com o dinheiro de seus trabalhos e o auxílio do Bolsa Família.
Cerca de dez anos atrás, Adriele soube de nova agressão: Wagner jogou Adriana pela janela do apartamento onde moravam, no quinto andar de um prédio localizado na Rua do Arroio, entre Padre Miguel e Bangu. “Ela disse que ele queria matar ela com uma faca e ela se trancou no quarto. Ele arrombou a porta, entrou, sem a faca, e empurrou ela da janela”, conta a irmã, que afirma ter sido a única pessoa da família a quem Adriana contou o que aconteceu na ocasião, evitando que a mãe soubesse. “Não aconteceu nada pior porque ela caiu em cima de um sofá [que estava na rua], mas quebrou um dente e ficou com ‘mau jeito’ no pescoço.”
Pouco depois, Adriana engravidou do primeiro filho, hoje com 10 anos. Depois vieram os outros três. Wagner nunca gostou que Adriana frequentasse a casa da família, segundo Adriele. É descrito pela cunhada como um homem ciumento, que tinha o hábito de chegar em casa e levantar a cama, desconfiando de que havia “homem escondido” na casa. Ao longo de dezesseis anos, a família aconselhou Adriana diversas vezes a se separar. “Sempre foi violento, sempre bateu nela. ‘Adriana, larga ele, Adriana, larga ele!’ Eu vivia falando. Mas, se conselho fosse bom, a gente não dava; vendia, né? Sempre falei pra separar, pra denunciar. Eu, minha mãe, a família toda falava. Mas não adiantava. Ela amava ele”, lamenta a irmã.
É possível uma mulher sentir amor por seu algoz? Em muitos casos, a mulher depende do marido para sustentar os filhos e acaba protelando a separação por medo de não ter como alimentá-los. Muitas vezes há também dependência emocional, afetiva. Os relatos da família de Adriana e a idade com que começou a se relacionar com Wagner permitem pensar numa relação de dominação em que ela se sentisse muito dependente emocionalmente.
Para a psicóloga social Alexandra Tsallis, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ao contrário de reforçar estigmas sobre situações como a de Adriana, é fundamental que a sociedade reconheça sua responsabilidade sobre a violência machista. Ela propõe olhar para as outras violências que atravessam as vidas de todas essas pessoas envolvidas no caso: a família de origem, a família de agora, Adriana, as crianças e o próprio Wagner. “Esse tipo de violência se nutre de outro tipo de violência, que é a invisibilidade”, afirma. “Não é que ela ame um homem violento, ela tem uma parceria na vulnerabilidade e o ônus da parceria é esse, o homem que ela tem é esse”, explica a psicóloga, coordenadora do laboratório AfeTAR, unidade de desenvolvimento tecnológico do Instituto de Psicologia da Uerj.
Fechar os olhos para a vulnerabilidade e a invisibilidade dessas pessoas, segundo a psicóloga, é o primeiro passo para nunca entender porque uma mulher, mesmo de melhor condição financeira, não consegue se desvencilhar de uma relação como essa. “Não entender isso é penalizar, mais uma vez, essa mulher”, explica Tsallis. “E o grau de vulnerabilidade está colocado também no fato de que Wagner sequer resiste à prisão, ele se entrega. Com a morte da mulher, cessa pra ele um tremendo gesto violento que está colocado para ele nessa mulher, mas que está colocado também nele, para ele.” “Foram quinze anos de construção desse feminicídio, quinze anos de pedidos de socorro que não foram ouvidos. Tem um aspecto de aniquilamento. Mata-se o que já estava morto antes. Uma morte anunciada que não surpreende, faz parte de um projeto de deixar morrer”, afirma.
Em 2019, 1.326 mulheres foram vítimas de feminicídio, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) – um crescimento de 7,1% em relação a 2018. No ano da pandemia, o massacre continuou: enquanto, no primeiro semestre de 2019, foram registrados 636 feminicídios, no primeiro semestre de 2020, quando o país já vivia a pandemia, foram registrados 648 – um crescimento de 1,9% em relação ao ano anterior, ainda de acordo com dados do FBSP. Somente entre março e abril de 2020, se somadas as ocorrências em doze estados do país, em relação a igual período de 2019, o crescimento foi de 22,2%, segundo o documento Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, do FBSP. Em números absolutos, houve um salto de 117 para 143 feminicídios.
A subnotificação também é parte desses crimes invisíveis. O relatório A Dor e a Luta: Números do Feminicídio, divulgado no início deste mês pela Rede de Observatórios da Segurança, produzido a partir do acompanhamento de casos na Bahia, no Ceará, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e em São Paulo, constatou que, em três dos cinco estados, os dados compilados eram maiores do que os oficiais.
Com a morte de Adriana, sua irmã, Adriele, que tem cinco filhos, passou a criar também os quatro da irmã. Eram nove crianças com ela em uma casa simples. Eliane, a avó, compartilha a responsabilidade sobre as crianças. Do final do ano para cá, os filhos da irmã passaram a morar com Eliane, porque, segundo Adriele, vinham manifestando um comportamento agressivo com ela. “Não queriam me obedecer, ficavam me respondendo, achando que tudo é bater”, conta. As duas têm buscado regularizar, na Justiça, a questão da guarda das crianças, que vêm tendo assistência psicológica periódica do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
Wagner permanece preso. Assistido pela Defensoria Pública, ele se manteve em silêncio durante as duas Audiências de Instrução e Julgamento, em que foram ouvidas testemunhas, Ministério Público e defesa. A primeira ocorreu em 4 de novembro de 2020, e a segunda, em 8 de fevereiro deste ano, quando o réu foi, então, pronunciado – isto é, teve fim a primeira fase do procedimento do Júri: a juíza Elizabeth Machado Louro determinou que ele seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. Isso acontece quando a ocorrência de um crime doloso contra a vida é provada e há fortes suspeitas de que o réu é o autor dos fatos. O julgamento acontecerá, provavelmente, entre agosto e outubro.
“Quando eu tenho casos de feminicídios no Tribunal do Júri, eu tenho, em regra, vítimas do mesmo perfil”, relata o defensor público que assiste Wagner, Denis Sampaio. “Os casos de feminicídios com que nos deparamos no dia a dia envolvem principalmente casais pobres, da periferia, negros. A mulher, a vítima, quase sempre negra, pobre, da favela. Acaba sendo a regra nos nossos processos de feminicídios. Essas pessoas, sabemos muito bem, entram apenas nas estatísticas. O feminicídio se torna mais eloquente na nossa sociedade quando a vítima não faz parte dessa classe, não é uma mulher pobre, não é a vítima típica”, afirma. À vítima típica do feminicídio, resta o aniquilamento.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí