“Homens e deuses” – epígrafe e Tchaikovsky
É prudente desconfiar de filmes que começam com epígrafe. A citação pode até ser bem escolhida, mas a que serve? Depois da projeção de “Homens e deuses”, dirigido por Xavier Beauvois, Grande Prêmio do Festival de Cannes no ano passado, alguém lembrará dos Salmos 82, 6-7 citados no início? Quantos recorrerão a uma ferramenta de busca para verificar a relação entre o trecho citado e o filme?
“Homens e deuses” – epígrafe e Tchaikovsky
É prudente desconfiar de filmes que começam com epígrafe. A citação pode até ser bem escolhida, mas a que serve? Depois da projeção de “Homens e deuses”, dirigido por Xavier Beauvois, Grande Prêmio do Festival de Cannes no ano passado, alguém lembrará dos Salmos 82, 6-7 citados no início? Quantos recorrerão a uma ferramenta de busca para verificar a relação entre o trecho citado e o filme?
Quem conhecer a Bíblia, ou fizer rápida consulta através do Google, constatará que o trecho (“Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo. Todavia morrereis como homens, e caireis como qualquer dos príncipes.”) expressa, de fato, tema subjacente a “Homens e deuses”. A função da referência, porém, é apenas impressionar os ingênuos.
À parte a ironia da epígrafe inventada ou de origem duvidosa, como em Werner Herzog e nos irmãos Coen, citações no início de filmes desmerecem quem apela para tamanha banalidade. No fundo, não representam mais do que tentativa de granjear reconhecimento à pretendida seriedade intelectual de um filme, o que parece ter sido eficaz no caso do júri do Festival de Cannes.
Diante de epígrafes, o melhor a fazer é ficar de pé atrás.
Depois do deslize inicial, “Homens e deuses” custa um pouco a se situar, mas vai ganhando força pela sobriedade da encenação e qualidade dos atores. Aos poucos, o filme se impõe e a opção voluntária pelo martírio, feita pelos monges, chega a comover. Eis senão quando nova e fatal derrapada, indício de oportunismo, denuncia a intenção de manipular emoções. A abertura do “Lago dos cisnes”, usada como trilha na ceia final, pressupõe, como escreveu um crítico inglês, farta distribuição de lenços de papel para a plateia enxugar as lágrimas.
Na última sequência, “Homens e deuses” recupera tom mais adequado, embora desperdice, em parte, a carta anônima, escrita por um dos monges assassinados, ao usá-la em voz apenas no final.
Integrada de fato à narrativa, a carta poderia ter feito de “Homens e deuses” – sem epígrafe e sem Tchaikovsky – um grande filme:
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“Caso recaia sobre mim, e pode acontecer hoje, ser vítima do terrorismo engolfando todos os estrangeiros aqui, gostaria que minha comunidade, minha igreja, minha família, lembrassem que minha vida foi entregue a Deus e a este país.
O único Mestre de toda vida não era nenhum estranho a esta partida brutal. E que minha morte é a mesma que tantas outras violentas, consignadas à apatia do esquecimento.
Vivi o suficiente para saber que sou cúmplice do mal que, infelizmente, prevalece no mundo e do mal que me castigará cegamente. Nunca poderia desejar semelhante morte. Nunca poderia ficar contente que essas pessoas que amo sejam acusadas aleatoriamente do meu assassinato.
Conheço o desprezo sentido pelas pessoas daqui, indiscriminadamente. E sei como o Islã é distorcido por um certo islamismo. Este país, e o Islã, para mim são algo diferente. Eles são um corpo e uma alma.
Minha morte, é claro, vingará rapidamente aqueles que me acusaram de ser ingênuo, ou idealista, mas eles devem saber que eu serei libertado de uma ardente curiosidade e, Deus assim o querendo, mergulharei meu olhar no do Pai e contemplarei com ele os filhos dele do Islã como ele os vê.
Este agradecimento que engloba toda minha vida inclui vocês, é claro, amigos de ontem e de hoje, e vocês também amigos da última hora, que não sabiam o que vocês estavam fazendo.
Sim, a vocês também eu dirijo este agradecimento e esta despedida que vocês conceberam. Seja permitido nos encontrar de novo, ladrões felizes, no Paraíso, se isso agradar Deus, Pai de nós dois. Amém.”
Talvez falte ao cinema a capacidade de dar conta de um texto como esse.
E talvez falte a “Homens e deuses” interrogar o sentido da decisão dos monges. Só quem acredita, como escreveu Luiz Paulo Horta no “Globo” (24/4/2011), que “não há nada mais bonito neste mundo do que uma doação completa, em que você quebra o círculo de ferro do egoísmo” e que é possível parecer iluminado diante da certeza da morte, pode assistir “Homens e deuses” sem um certo incômodo.