Protesto contra mortes de pessoas negras - Foto: Sérgio Lima/AFP
Homicídios crescem mesmo durante isolamento social
Anuário Brasileiro de Segurança Pública destaca “oportunidade perdida” para reduzir mortes violentas e maior subnotificação da violência de gênero
“A violência atinge a todos e a todas, mas não de forma igualitária”. Assim a nova edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública resume como a profunda desigualdade social do país se reflete no perfil das vítimas da violência. No primeiro semestre de 2020, mesmo com menos gente nas ruas por causa da pandemia do coronavírus, as mortes violentas intencionais aumentaram 7%. Essas ocorrências, que vinham em queda em 2018 e 2019, têm os homens negros como grupo de risco: para cada mulher branca vítima deste tipo de crime, 22 homens negros são assassinados. Dos mortos em decorrência de intervenções policiais, 80% são negros. Além disso, três indicadores de violência de gênero cresceram em comparação à primeira metade de 2019. Os homicídios dolosos de mulheres, que têm causas variadas, aumentaram 1,5% (de 1.834 para 1.861 em 2020); os feminicídios, homicídios motivados pelo fato de a vítima ser mulher, cresceram 1,9% (de 636 para 648); e as ligações de emergência para as polícias em denúncias de violência doméstica subiram 3,8% (nos 12 estados que disponibilizaram dados desse tipo). O anuário é produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com base nos boletins de ocorrências fornecidos pelos estados.
O anuário observa ainda mudanças relevantes na atuação do tráfico e nas estratégias de combate ao crime organizado nesta primeira metade do ano. Se, por um lado, os criminosos precisaram pensar em rotas alternativas para escoar a produção em meio à redução de voos na pandemia, houve, por outro, expressivo aumento no volume de drogas apreendidas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) – sobretudo maconha e cocaína. Outro movimento relevante é a iniciativa de uma parte da Polícia Federal em fazer operações que atinjam não somente o poderio financeiro de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC), mas também a estrutura que possibilita a utilização lícita desses recursos.
Ou seja: o faturamento das facções é afetado tanto pela perda de sua mercadoria principal, a droga, como pelas operações voltadas para combater a lavagem de dinheiro do tráfico. O que os pesquisadores se questionam é se isso já se reflete no aumento de mortes violentas intencionais, uma vez que tanto as apreensões como as operações contra a lavagem de dinheiro podem provocar mais conflitos entre os grupos criminosos e deles com a polícia.
“É importante observar atentamente estes dois movimentos recentes [da PRF e da PF] para que seja possível compreender se, de fato, podem ser considerados pontos de inflexão na atuação das instituições federais com relação ao crime organizado, especialmente sobre os grupos de base prisional. É importante lembrar, contudo, que as mudanças significativas na cena do crime organizado e das facções criminosas possuem alto potencial para impactar as taxas de homicídio no país. É fundamental que exista articulação e integração entre as instituições policiais em nível federal e estadual para que os fatores de risco sejam atenuados”, analisam os pesquisadores David Marques e Betina Warmling Barros no texto do anuário.
Segundo eles, ainda é difícil apontar com precisão a influência das medidas de isolamento nos indicadores deste primeiro semestre. De todo modo, fica claro que o Brasil perdeu a oportunidade de transformar a tendência de queda de mortes violentas intencionais, verificada entre o início de 2018 e setembro de 2019, em ganhos permanentes. “O Brasil perdeu-se em múltiplas narrativas políticas em disputa e a população, mais uma vez, está tendo que lidar com os efeitos deletérios e perversos de um modelo de segurança pública obsoleto e que até hoje não foi palco de grandes reformas, mesmo após a Constituição de 1988”, avaliam. “Com exceção do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), aprovado em junho de 2018, quase nenhuma reforma substantiva da área foi conduzida nesse período, e os diversos antagonismos que caracterizam a relação entre as diversas instituições encarregadas de prover ordem, segurança e justiça mantêm-se praticamente intactos”.
Veja abaixo os principais dados do primeiro semestre de 2020:
Mortes violentas intencionais crescem
As mortes violências intencionais (MVI) – que englobam homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e mortes decorrentes de intervenção policial – cresceram 7,1% no país: foram 25.712 registros no primeiro semestre de 2020 contra 24.012 no mesmo período de 2019. O total de registros de 2019 (47.773) caiu 17,7% em relação a 2018 (57.574).
O maior crescimento foi no Ceará, onde o número de mortes violentas intencionais no semestre da pandemia quase dobrou em relação ao primeiro semestre de 2019. O aumento de 96,6% foi impulsionado por uma crise de segurança pública marcada pela greve de treze dias da Polícia Militar em fevereiro. Outros treze estados tiveram aumento acima da média nacional (Paraíba, Maranhão, Espírito Santo, Sergipe, Alagoas, Paraná, Santa Catarina, Rondônia, Tocantins, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia e São Paulo).
Sete tiveram crescimento abaixo da média nacional (Piauí, Mato Grosso do Sul, Acre, Amapá, Amazonas, Minas Gerais e Mato Grosso). Somente seis registraram menos mortes violentas intencionais no período: Pará (-25,1%), Roraima (-23,4%), Goiás, que não disponibilizou o número de mortes decorrentes de intervenção policial para o 1º semestre de 2020 (-17%), Rio de Janeiro (-10,9%) e Rio Grande do Sul (-7,2%) e o Distrito Federal (-2,1%).
Dos quatro tipos de ocorrências incluídas nas mortes violentas intencionais, homicídio doloso e mortes decorrentes de intervenção policial aumentaram no primeiro semestre deste ano, enquanto lesão corporal seguida de morte e latrocínio tiveram queda em relação ao mesmo período do ano passado. Os homicídios dolosos, que tinham recuado 19,5% de 2018 para 2019, cresceram 8,3% (de 20.105 no primeiro semestre de 2019 para 21.764 em 2020).
Já as mortes decorrentes de intervenção policial mantiveram a tendência de crescimento e aumentaram 6%, de 3.002 nos primeiros seis meses de 2019 para 3.181 em 2020. Em 2019, de cada 100 mortes violentas no Brasil, 13 foram cometidas por policiais. No Rio, essa taxa chega a 30,3%. O número de policiais assassinados, por sua vez, que entra nas categorias de homicídio doloso e latrocínio, também cresceu neste semestre: o aumento foi de quase 20%, passando de 92 na primeira metade de 2019 para 110 em 2020. As mortes costumam ocorrer durante a folga.
O número de vítimas de lesão corporal seguida de morte apresentou redução (-7,9%), de 407 em 2019 para 375 nos primeiros seis meses de 2020. A redução de casos de latrocínio foi ainda maior: 13,6% no período observado, saindo de 832 no primeiro semestre de 2019 para 719 no mesmo período de 2020. Esse resultado acompanha a tendência de redução dos crimes patrimoniais.
Um estupro a cada 8 minutos
Se há cinco anos os registros em delegacia indicavam um estupro a cada 11 minutos, a situação piorou em 2019: um a cada oito minutos. Durante os primeiros seis meses de 2020, porém, houve recuo: o número de registro de estupro diminuiu 11,8%, e o de estupros de vulneráveis, que são os menores de 14 anos ou pessoas que estejam incapacitadas de oferecer resistência ao ato, caiu 22,5%. O que parece ser uma boa notícia merece cautela: é bem provável que a subnotificação deste tipo de crime, que já é alta, tenha se intensificado durante o isolamento.
“É possível entender que alguns destes tipos de crimes parecem ter observado um aumento na subnotificação, tendo em vista a maior dificuldade de registros por parte das mulheres em situação de violência doméstica durante a vigência das medidas de distanciamento social”, aponta o documento.
Em 2019, o Brasil teve 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável registrados em delegacias. As mulheres representam 85,7% das vítimas, e 70,5% do total de casos referem-se a estupros de vulnerável. Entre as vítimas, 57,9% tinham no máximo 13 anos quando o registro foi feito, um crescimento de 8% em relação a 2018. Embora a maioria delas tenha entre 10 e 13 anos, chama a atenção que 18,7% tenham entre 5 e 9 anos de idade e que 11,2% tenham menos de 4 anos.
Roubos caíram
Em relação aos roubos, a tendência de queda apresentada entre 2018 e 2019 parece ter se intensificado levemente em 2020. Registros de roubos em geral caíram 24,2% nesta primeira metade do ano (515.523) em comparação com 2019 (680.359) no país. Apenas Ceará e Rondônia tiveram crescimento nesse índice, de 19,2% e 50,4%, respectivamente. As maiores reduções foram registradas no Espírito Santo (44,1%), Amapá (43,8%) e Goiás (42,3%). De todas as modalidades, o roubo a transeunte foi o que teve queda mais acentuada: 34%.
“Podemos associar a maior redução deste indicador à menor quantidade de pessoas circulando pelas ruas das cidades brasileiras durante a vigência de normas de distanciamento social como prevenção à propagação da Covid-19, tendo em vista que o mesmo tipo de roubo havia tido redução de 17,4% entre 2018 e 2019”, lembra a pesquisa.
Outros tipos de roubos também apresentaram redução no primeiro semestre de 2020, como o roubo de carga (25,7%), roubo a instituição financeira (21,1%), roubo a estabelecimento (18,8%), roubo a residência (16,0%) e roubos e furtos de veículos (21,1%).
Mais droga apreendida nas rodovias federais
A quantidade de apreensões de droga realizadas pela Polícia Federal caiu, mas o volume apreendido de algumas drogas teve crescimento expressivo. No caso da maconha, houve redução de 8,2% na quantidade de apreensões, mas o volume de droga apreendido mais que dobrou, indo de 105 no primeiro semestre de 2019 para mais de 217 toneladas em 2020. Isso também ocorreu com drogas como anfetaminas e metanfetaminas, que apresentaram 436% e 161,4%, respectivamente, de aumento na quantidade de comprimidos recolhidos. A cocaína, em contrapartida, teve queda de 2,3%.
Já as apreensões da Polícia Rodoviária Federal aumentaram em quantidade e volume de drogas apreendido durante a pandemia. No primeiro semestre de 2019, foram 998 apreensões de maconha, totalizando 138,5 toneladas apreendidas. No mesmo período de 2020, foram 1.812 apreensões (+81,6%) e um volume de 316,2 toneladas (+128,3%). Cresceu também a apreensão de cocaína, saindo de 9,3 toneladas nos primeiros seis meses de 2019 para 14,6 toneladas no mesmo período de 2020 (+56,7%). O skunk saiu de um total de 400 kg entre janeiro e junho de 2019 para mais de 2 toneladas apreendidas em 2020 (+409,4%).
“Uma hipótese é a de que esse cenário indica uma redução na circulação de drogas por avião, tendo em vista que a disponibilidade de voos foi severamente impactada pela pandemia, e um maior trânsito por via terrestre, dado que as apreensões da PRF apresentaram maior crescimento em número de ocorrências e volume apreendido”, aponta o estudo.
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