Hungria, França e Brasil
Por que são críveis os acenos de Haddad ao centro
Na bem-sucedida turnê internacional do fim do mundo – quero dizer, a ascensão em diferentes partes do planeta de líderes populistas com propensões autoritárias –, os sistemas eleitorais têm se mostrado decisivos.
Como é raro que políticos radicais contem com amplo apoio na sociedade, o conjunto de regras que converte votos em mandatos importa, e muito. Muitas vezes essas regras são responsáveis por dar aquele empurrãozinho final ao candidato anti-establishment ou, alternativamente, por barrar os bárbaros às portas da cidade.
O exemplo mais evidente é o de Donald Trump, eleito presidente dos Estados Unidos apesar da derrota no voto popular. Tudo somado, Trump recebeu menos votos do que sua adversária, Hillary Clinton. Mas o sistema eleitoral americano, no caso da eleição presidencial, contabiliza os escrutínios por estado – e nessa contagem, a do Colégio Eleitoral, o neorrepublicano levou.
Num país politicamente polarizado, os eleitores no centro do espectro ideológico, que não se alinhavam automaticamente nem com os democratas, nem com os republicanos, tenderam a apoiar a verdadeira candidata da ordem, do status quo. Essa vontade, expressa nas urnas, não foi traduzida no resultado final.
Algo parecido aconteceu na Hungria, em 2010. No momento de sua chegada ao poder pelo voto, o primeiro-ministro Viktor Orbán pôde contar com um empurrãozinho do sistema eleitoral. Na verdade, um empurrãozaço.
No parlamento húngaro, mais ou menos metade das cadeiras é distribuída segundo regras proporcionais, em que a fração de votos obtida nas urnas por cada partido é de alguma maneira representada na divisão das bancadas – um tipo de sistema que estimula o multipartidarismo e a formação de governos de coalizão.
A outra metade do parlamento húngaro, contudo, é escolhida segundo regras majoritárias do tipo americano ou britânico, que tendem a concentrar votos nas duas maiores legendas. A combinação das duas regras – a proporcional e a majoritária – termina por conceder uma espécie de prêmio aos partidos mais bem votados, que ganham uma fração maior de cadeiras do que tinham obtido nas urnas e podem, assim, estabelecer governos relativamente fortes, com coalizões não muito grandes. Um partido que conseguisse sair das eleições húngaras com 40% dos votos totais, por exemplo, acabaria formando uma bancada com mais de 50% das cadeiras.
Em 2010, o Partido Socialista deixou o poder, punido pelas urnas. Havia sido acusado de estelionato eleitoral, quatro anos antes, ao impor um ajuste fiscal ao país logo depois das eleições. Também vinha sofrendo com escândalos de corrupção. E a Hungria enfrentava naquele momento uma crise econômica sem precedentes.
A coalizão eleitoral conservadora de Orbán conseguiu alcançar, nesse cenário de fim de mundo, 53% dos votos. O problema é que essa estreita maioria foi prontamente convertida, pelo sistema eleitoral local, em 68% das cadeiras do parlamento. O líder populista passou, desse modo, a dispor do poder de reformar a Constituição sem precisar fazer grandes coalizões ou negociar os termos da nova lei fundamental do país. Foi o que fez. Entre outras medidas, ampliou o número de juízes na Corte Constitucional. É óbvio que Orbán nomeou juízes amigos para as novas vagas, o que na prática pôs fim a qualquer sistema de freios e contrapesos ao seu poder.
Nem sempre a interação entre a vontade popular e as regras de escolha dos representantes trabalha a favor dos candidatos mais radicais. A eleição em dois turnos, por exemplo, parece projetada para ter o efeito inverso, para impedir esse tipo de resultado. Estabelecidos os dois candidatos – os dois polos da disputa–, dificilmente cada um deles perderá eleitores de sua base para o adversário. Assim, resta a ambos disputar o centro do espectro político, na rodada derradeira – daí porque, em geral, quem se mostra menos radical tem mais chances de vencer.
Foi o que aconteceu na França, em duas ocasiões. Em 2002, o líder populista Jean-Marie Le Pen conseguiu passar ao segundo turno logo atrás do candidato da direita tradicional, Jacques Chirac. Na rodada final, contudo, o nacionalista radical levou uma sova dos eleitores. Com o apoio de seus adversários tradicionais, Chirac ganhou o pleito com mais de 80% dos votos.
Algo parecido foi visto nas eleições de 2017, em que Emmanuel Macron enfrentou no segundo turno a filha de Le Pen, Marine. A candidata do Front National acabou batida na escolha que importava, recebendo 34% dos votos, contra os 66% de seu adversário centrista.
Num artigo recente para o site Monkey Cage, ligado ao Washington Post, os cientistas políticos Felipe Krause e André Borges parecem apostar num resultado semelhante nas eleições brasileiras deste ano. Por causa dos efeitos eleitorais da disputa em dois turnos, também aqui serão os votos do centro do espectro ideológico que estarão em disputa, no final de outubro.
Como aliás, sempre estiveram, inclusive em 1989. Naquela eleição, segundo Krause e Borges, o candidato com maior capacidade de angariar os votos do centro era mesmo Fernando Collor, e não o Lula de então, visto por boa parte dos eleitores como uma opção radical de esquerda. A história dos pleitos seguintes mostra que o líder petista só conseguiu ser escolhido presidente quando afinal se apresentou como um candidato mais conciliador.
Sobre o pleito atual, os dois autores arriscam: as regras do sistema político brasileiro, capazes de constranger candidaturas extremistas, sugerem que quem quer que vá ao segundo turno contra Jair Bolsonaro poderá ser o Chirac ou o Macron brasileiro.
Fernando Haddad, até aqui inevitavelmente à sombra de Lula, dificilmente poderia ser comparado a Chirac ou Macron em estatura política. Mas pode muito bem cumprir, no Brasil, o papel que seus congêneres franceses representaram por lá, ao enfrentarem líderes populistas. De fato, quando pareceu se consolidar na segunda posição, Haddad antecipou movimentos ao centro.
No front político, disse com todas as letras que, caso eleito, não dará indulto ao ex-presidente Lula. Sabe que perderia votos ao centro – e possíveis apoios no segundo turno, entre seus atuais concorrentes – se prometesse o contrário ou se se mantivesse dúbio em relação ao assunto.
No que diz respeito à economia, fez acenos em direção à razoabilidade econômica, distanciando-se de seu correligionário Marcio Pochmann, para quem a reforma da Previdência não seria uma agenda prioritária num possível governo petista. O substituto de Lula parece saber que dificilmente conseguirá se eleger com uma agenda econômica radical – insistir nas teses heterodoxas do PT pode afastar possíveis aliados, caso Haddad vá mesmo ao segundo turno.
São críveis, os movimentos de Haddad? O histórico do PT no quesito “manipulação da verdade” não é bom, o que torna justificável qualquer desconfiança em relação ao que digam os seus dirigentes. Até hoje o partido não foi capaz de fazer a autocrítica do assalto que muitos de seus integrantes promoveram aos cofres públicos. Idem quanto ao desastre econômico fabricado por Dilma. Até outro dia, líderes petistas dançavam inconsequentemente à beira do abismo, gritando que eleições sem Lula seriam uma fraude. As eleições vieram, o candidato é Haddad. O que têm a dizer?
Por outro lado, há fatores que justificam acreditarmos no que Fernando Haddad diz. Em primeiro lugar, é do interesse dele, caso se torne presidente, aplicar esse receituário ortodoxo com o qual acena, agora, a uma parcela do eleitorado. Sem ajustes, a crise econômica certamente se aprofundará, o que vai dificultar as chances de reeleição do próximo mandatário.
Ademais, houve um custo interno, partidário, que ele considerou ao adotar essas posições mais moderadas. Mais importante ainda: ao adotá-las, não foi contestado. Suas mesuras à ortodoxia econômica foram acatadas pelo restante da legenda. Enquanto o nome do economista Marcos Lisboa era discutido como possível ministro da Fazenda, não se teve notícia de qualquer forma de veto, nem mesmo de protesto, vinda de dentro do PT. Por fim, é de esperar um custo político alto, para fora, para o conjunto dos eleitores, caso Haddad dê sinais moderados durante a campanha e depois os traia, na Presidência.
Quem sabe não seja de todo ingênuo nem demasiadamente otimista, no fim das contas, esperar que o segundo turno possa nos livrar tanto de ameaças autoritárias quanto de um discurso econômico irresponsável?
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