O editor-chefe da Novaya Gazeta, Dmitry Muratov, no escritório do jornal em Moscou. A publicação suspendeu suas atividades até que a guerra na Ucrânia acabe – Foto: Natalia Kolesnikova/AFP
A imprensa russa pode ser livre?
Os jornalistas da Novaya Gazeta escrevem sobre conflitos perigosos – e enfrentam muitas ameaças
A reportagem a seguir, publicada pela revista New Yorker em novembro de 2021, traz no título uma pergunta cuja resposta está ficando cada vez mais clara: não, a imprensa russa não pode ser livre. Nesta semana, o jornal Novaya Gazeta decidiu suspender suas atividades até que cesse a guerra deflagrada pela invasão russa da Ucrânia. “Não havia outra opção”, disse o diretor de redação Dmitry Muratov, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz no final do ano passado. A decisão resulta do garrote crescente da censura à imprensa sob o regime de Vladimir Putin depois da invasão da Ucrânia. A imprensa russa só pode se referir à guerra como “operação militar especial”. Em uma das suas últimas edições, a Novaya Gazeta exibiu a silhueta de bailarinos diante de uma explosão em forma de cogumelo, com a seguinte legenda: “Uma edição da Novaya, concebida em conformidade com todas as novas regras do código criminal da Rússia”. A imagem aludia ao golpe de 1991 contra Mikhail Gorbachev durante o qual a tevê estatal russa exibiu “O Lago dos Cisnes”. Antes da suspensão da Novaya Gazeta, outros veículos encerraram definitivamente suas atividades – por decisão própria ou por imposição do governo. Entre os que foram fechados, estão veículos como Ekho Moskvy (Eco de Moscou) e a TV Rain, que se caracterizavam pela independência em relação ao regime. Na reportagem abaixo, fica evidente a forma – e a enorme velocidade – com que a liberdade de expressão se deteriorou na Rússia de Putin a ponto de ser virtualmente eliminada do país.
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Todo dia, perto do meio-dia, Dmitry Muratov, editor-chefe da Novaya Gazeta, senta-se na cabeceira de uma mesa comprida na grande sala redonda da sede do jornal, em Moscou, para conduzir uma planyorka, ou uma reunião de planejamento. No dia 11 de outubro passado, a primeira segunda-feira depois que o comitê norueguês do Prêmio Nobel concedeu, na sexta-feira anterior, o Nobel da Paz de 2021 para Muratov e a jornalista filipina Maria Ressa, dez pessoas reuniam-se à mesa – além de quinze outras via Zoom – para discutir como gastariam sua metade do prêmio de 1,15 milhão de dólares. Muratov havia dito à mídia que via o Nobel como um prêmio concedido a todos no jornal e que não pegaria um único copeque para si próprio: a quantia toda teria destinação beneficente, e ele não escolheria sozinho as instituições contempladas. Depois de alguma discussão, os membros da equipe editorial se definiram por algumas prioridades, incluindo-se aí ajudar crianças com atrofia muscular espinhal (uma doença que o jornal vinha cobrindo fazia mais de um ano), lançar um programa habitacional de apoio para adultos incapacitados por transtornos mentais vivendo em instituições (a Novaya Gazeta publicou uma matéria sobre essas instituições no primeiro semestre de 2021), fazer doações para clínicas que abrigavam doentes terminais da região de Moscou e ajudar veículos de mídia que o governo de Vladimir Putin havia recentemente classificado como “agentes estrangeiros”.
Depois da reunião, Muratov e um antigo amigo, o político Grigory Yavlinsky, celebraram o Nobel com escalope de porco à milanesa, purê de batatas e vodca no refeitório da Novaya Gazeta. O almoço reduziu o tempo de nossa entrevista, que avançou sobre seu compromisso seguinte. Dez minutos após o horário previsto para sua partida, Muratov, já vestindo o paletó e segurando sua maleta, me perguntou: “Quer beber um uísque? As pessoas vêm me cumprimentar e trazem um bocado de bebida. Este uísque aqui parece bom.” Serviu-nos, então, uma dose para cada um. E, depois, mais uma. Enquanto bebíamos, ele dava instruções a sua assistente, Olga. “Diga que estou saindo.” “Diga que estou preso no trânsito.” Uma hora mais tarde, Olga anunciou que não daria mais desculpa nenhuma. A Novaya Gazeta, uma instituição sem fins lucrativos, depende sobretudo de doações, e a reunião seguinte de Muratov era com um doador. “Preciso ir, porque já doei todo o prêmio em dinheiro”, disse ele.
De acordo com o comitê do Prêmio Nobel, Muratov e Ressa – cofundadora e diretora executiva do Rappler, um jornal digital sediado em Manila – receberam o prêmio “por seus esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, pré-requisito da democracia e da paz duradoura”. Sob o comando de Muratov, a Novaya Gazeta sobrevive há quase trinta anos, mais do que virtualmente qualquer outro veículo da mídia independente russa. O jornal publica uma edição impressa três vezes por semana (a de 11 de outubro – a primeira depois do Nobel – trazia Ressa na capa), com uma tiragem de 90 mil exemplares, bem como uma série constante de artigos online, vídeos e podcasts. O website da Gazeta atrai cerca de meio milhão de usuários individuais por dia. A publicação é conhecida por seus relatos de conflitos, provenientes em especial da Tchetchênia e do Leste da Ucrânia, e por suas investigações – o jornal foi o parceiro russo no consórcio internacional de jornalistas que destrinchou os Panama Papers, expondo contas bancárias em offshores vinculadas a muitos líderes mundiais e seus aliados, inclusive alguns próximos a Putin. A maioria das pessoas, porém, se lembra da Novaya Gazeta sobretudo como a publicação que teve seis de seus jornalistas e colaboradores assassinados entre 2000 e 2009. O jornal e sua equipe operam num estado quase constante de emergência, sempre sofrendo ameaças e muitas vezes à beira de fechar as portas.
Todos dizem que a sobrevivência da Gazeta se deve às incessantes negociações de Muratov com muitos daqueles que, dentro ou nas proximidades do Kremlin, detêm o poder de fechá-lo – e com frequência desejam fazê-lo. Se imaginamos um futuro no qual a Rússia venha a gozar de democracia e de paz duradoura, então Muratov – que tem mantido uma espécie frágil de paz para uma comunidade que exercita a liberdade de expressão num país radicalmente privado de liberdade –, então Muratov encarna o pré-requisito para esse futuro.
Muratov nasceu a 30 de outubro de 1961 em Kuybyschev (hoje, Samara), uma cidade à beira do Volga. Como muitos russos de sua geração, foi criado por duas mulheres: sua mãe, que era técnica numa fábrica, e a mãe dela, médica. As mulheres trabalhavam o tempo todo, deixando Muratov livre para circular por um bairro que ele descreve como barra-pesada. Envolveu-se em brigas e jogou hóquei nos rinques improvisados que antes salpicavam os conjuntos habitacionais soviéticos. (Seu escritório, em Moscou, mantém em exposição várias dezenas de tacos de hóquei que um dia pertenceram a jogadores russos e soviéticos muito conhecidos).
Na União Soviética das décadas de 1960 e 1970, o passado não existia, porque ninguém falava dele. E o futuro tampouco, porque nada mudava, nunca. O tempo havia parado. Vivia-se uma vida predefinida. Os meninos passavam oito anos na escola básica, iam para uma escola profissionalizante, para o serviço militar e, depois, para um emprego enfadonho, quando começavam a beber um bocado. Muratov supôs que fosse ser motorista de caminhão ou fotógrafo, porque essas eram as especialidades oferecidas pela escola profissionalizante do bairro. Hoje, com 1,80 metro e mais de 100kg, barba cerrada e uma preferência por jeans e uma espécie de camisa de uniforme, parece um daqueles caminhoneiros norte-americanos que fazem longos trajetos. Quarenta e cinco anos atrás, contudo, lá estava uma garota que, em vez da escola profissionalizante, ia fazer colegial, e foi o que ele fez também.
Depois, entrou para a Universidade Estadual de Kuybyschev, e de repente a vida se tornou interessante. Uma judia corpulenta e de aspecto masculino, Sophia Agranovich, dava um curso sobre folclore. Fumava no auditório, divagava em suas aulas e as enchia de piadas de mau gosto e de poemas inteiros recitados de cor; mas, mais importante para Muratov, mostrava como a língua, a narrativa e o mito funcionavam. “Você sabe por que Baba Yaga” – a bruxa má do folclore russo – “tem uma perna feita de carne e a outra, de osso?”, ele rugiu para mim através da mesa de conferências em seu escritório. “É porque ela tem um pé no reino dos mortos!” E disse aquilo como se o tivesse aprendido naquela manhã, e não quarenta anos antes. Outro professor, Lev Fink, tinha passado dezessete anos em campos de trabalho, exilado na própria Rússia. Seus estudantes liam Alexander Soljenítsin, cuja obra tinha sido proibida na União Soviética, e o liam, segundo Fink, porque precisavam conhecer o inimigo. Fink distribuía passes para que seus estudantes pudessem frequentar a spetskhran local, a “coleção especial”, que era onde o Estado mantinha os livros proibidos. (Em Kuybyschev, a spetskhran ficava no sótão da ópera municipal.) Em sua primeira visita ali, Muratov tentou ler Freud, mas não se impressionou. O livro parecia dizer que o mundo funcionava com base no sexo, ao passo que Muratov já concluíra que o mundo funcionava com base na alegria.
Conseguiu, então, um emprego no Volzhsky Komsomolets, o jornal regional destinado à juventude. “Era um jornal alegre”, disse. Depois, saído da faculdade havia menos de um ano, foi convocado à sede do Partido, que lhe ofereceu um posto em seu jornal. O emprego previa um bom salário e moradia; Muratov se casara (não com sua paixão do colegial) e estava morando com a esposa e a avó num apartamento de dois cômodos e cozinha. Dizer não ao Partido era afronta passível de punição, e Muratov foi penalizado com dois anos de serviço militar. Contudo, num universo moral moldado por Lev Fink e Sophia Agranovich, ele não via justificativa para aceitar um posto no Partido. Telefonou, então, para sua jovem esposa, que concordou com ele, e, ao deixar a sede do Partido, apresentou-se ao escritório de alistamento militar. “Aquele foi o fim da juventude para mim”, disse. Tinha 22 anos de idade.
O ano era 1983, e a União Soviética estava em guerra no Afeganistão. Muratov se recusa a dizer se serviu de fato ou o que fez. “Assinei um acordo de confidencialidade”, contou. Argumentei que ele havia feito aquele acordo com um Estado que não existia mais. “Mas eu assinei”, foi a resposta. Se, no mundo de Muratov, a alegria é o combustível para tudo, a lealdade – em sentido amplo – é a bússola. Não se volta atrás na palavra dada.
Na universidade, ele havia descoberto que o povo russo e sua língua tinham um passado; no serviço militar, vislumbrou os primeiros lampejos do futuro do país. O secretário-geral do Partido Comunista, Iuri Andropov, morreu depois de quinze meses no cargo. Constantin Tchernenko, que o substituiu, morreu um ano mais tarde. Uma gerontocracia de décadas começava a desmoronar. O sucessor de Tchernenko foi um vivaz Mikhail Gorbatchev, aos 54 anos, que começou a falar em perestroika (reestruturação) e glasnost (abertura). Em poucos anos, os jornais estariam publicando matérias ousadas sobre o Afeganistão, a pobreza, os crimes da era de Stálin e muitos outros assuntos antes proibidos.
Depois do serviço militar, Muratov retornou ao Volzhsky Komsomolets. Ele e seus colegas convenceram os líderes locais do Konsomol — a organização da juventude comunista — a tirar férias e, na sua ausência, deixar o comando na mão de outras pessoas. O jornal, então, anunciou o recrutamento de substitutos e propôs-se a um experimento real de rotação do poder político. Poucas semanas mais tarde, Gennady Seleznev ligou, o editor-chefe do Komsomolskaya Pravda — o diário nacional dedicado à juventude, tido como um jornal maneiro e ambicioso —, e ordenou que Muratov fosse a Moscou na manhã seguinte.
Muratov pegou o trem noturno e partiu para a sede do jornal, localizada no grande complexo de mídia da Rua Pravda. “Eles tinham lá um saguão comprido, com três elevadores. Me deram um passe para pegar o elevador central”, ele conta. Parado ali, jovem, grande, mal-ajambrado e portando sua maletinha, Muratov reconheceu os dois homens esperando pelos elevadores nas duas pontas do saguão: Yaroslav Golovanov, lendário jornalista especializado em exploração espacial, e Leonid Repin, famoso escritor de relatos de viagem.
Numa voz aguda, quase um falsete, Golovanov gritou para Repin, do outro lado de Muratov: “Lyonechka! Estou indo para Paris. O que eu trago de lá para você?”
“Slava, me traga camisinhas!”, Repin gritou de volta. Camisinhas estavam em falta na URSS, e os dois homens orgulhavam-se de sua reputação de mulherengos.
“De que cor você quer, Lyonya?”, Golovanov tornou a gritar.
“Verde!”
“Tem razão, Lyonya”, respondeu Golovanov. “Verde faz você parecer mais jovem.”
Havia sido a conversa mais mundana que Muratov já tinha ouvido na vida.
Hoje em dia, o próprio Muratov fala com uma entonação semelhante – voz alta, de uma intimidade teatral, muitas vezes adornada de sacrilégios, convidando o interlocutor a compartilhar de uma cumplicidade inventada. (Enquanto o comitê do Nobel tentava falar com ele, Muratov discutia com uma das jornalistas da Novaya Gazeta, Elena Milashina. Mais tarde, quando perguntei qual havia sido o motivo da discussão, ele exclamou: “Masha! Masha! E como não brigar com ela? Quem é que consegue ter uma discussão serena com Milashina?” Não tenho ideia; mal conheço Milashina.) É a mesma entonação daquela conversa entreouvida em 1987, quando, de repente, a história estava acontecendo, os jornais a registravam, todo mundo os lia e tudo que eles relatavam importava. “Os anos 1980 e 1990 eram um show em preto e branco em que todo mundo fumava e éramos chamados de ‘escribas’”, diz ele. “Aquela era minha vida. Agora, estudo coisas novas, tenho aulas de inglês e programação, mas continuo lá, na época da guerra na Tchetchênia, no Afeganistão, da guerra em Karabakh, da tomada da torre de televisão em Vilnius – é lá que estou, continuo lá.” Estávamos duas ou três doses de uísque adiante em nossa conversa.
Em 1992, um ano depois do colapso da União Soviética, várias dezenas de jornalistas, Muratov entre eles, deixaram o Komsomolskaya Pravda para começar algo novo. Em 1o de abril de 1993, a Novaya Yejednevnaya Gazeta (o “Novo Jornal Diário”) publicou sua primeira edição. Na época, o presidente Boris Ieltsin estava em briga com o parlamento. A primeira página do jornal estampava um manifesto em miniatura intitulado Algumas Perguntas Para Nós Mesmos. A primeira delas era: “De que lado vocês estão?” A resposta: “De nenhum dos dois (…) Precisamos de gente nova, com as mãos suficientemente limpas para poder conduzir o processo político, e mentes suficientemente claras e sóbrias para saber fazê-lo. O fato de que essas pessoas não existiam antes não significa que simplesmente não existam”.
No ano seguinte, tropas russas lançaram uma ofensiva na República Separatista da Tchetchênia, e Muratov foi até lá para cobrir a guerra. Assim fizeram também centenas de jornalistas russos e estrangeiros. Arriscaram a vida para documentar a brutalidade dos bombardeios maciços sobre seus concidadãos; publicaram longos relatos sobre a origem e a mecânica da catástrofe humanitária. Mas a guerra prosseguiu, e a vida na Rússia continuou como antes. Foi o fim da era para a qual tudo importava, e o começo de uma época de cinismo. Os russos, assim como boa parte do mundo, seguem vivendo nessa época – agora batizada como a era da “pós-verdade” –, mas Muratov recusou-se a aceitá-la. Em 1995, tornou-se editor-chefe da Novaya Yejednevnaya Gazeta.
Ieltsin, que permaneceu na presidência até o fim de 1999, permitiu o florescimento de certo número de veículos independentes de mídia. Quando Putin o sucedeu, aquela inédita liberdade de expressão foi esmagada. A maior parte das organizações de mídia fundadas na Rússia dos anos 1990 fechou há muito tempo; outras foram absorvidas pelo aparato de propaganda estatal. Uma das exceções é a estação de rádio Ekho Moskvy (“O Eco de Moscou”), que frequentemente critica o governo, louva dissidentes como o político oposicionista Alexey Navalny e agrada sobretudo a liberais mais velhos. Outra é a Novaya Gazeta, que, à parte ter tirado a expressão “diário” do nome, passou por pouquíssimas mudanças.
Enquanto outros veículos pararam de falar da Tchetchênia – porque era perigoso demais e parecia inútil –, a Novaya Gazeta seguiu com sua cobertura, documentando o número de mortos, a desintegração da vida civil, os desaparecimentos, as tomadas de reféns e, a partir de 2000, a ascensão da ditadura da dinastia Kadyrov. A principal jornalista que cobria a Tchetchênia, Anna Politkovskaya, sobreviveu a uma aparente tentativa de envenenamento em 2004; em 2006, foi morta a tiros no próprio edifício em que morava, em Moscou. Elena Milashina assumiu a batuta e deu vários furos: em 2017, expôs as prisões e execuções extrajudiciais de gays na Tchetchênia. Com agressividade, a Novaya Gazeta investigou também a guerra na Ucrânia de meados da década passada. Em 2014 e 2015, a correspondente especial Elena Kostyuchenko documentou a ocupação russa do Leste da Ucrânia, que o Kremlin negava. E, depois que um avião de passageiros da Malásia foi abatido sobre uma região do Leste do país em poder de separatistas pró-Rússia, em 2014, jornalistas da Novaya Gazeta passaram meses reconstruindo a tragédia.
Não é bem correto descrever a Gazeta como um jornal. Ela não é, digamos, o que seriam, sob circunstâncias mais desafiadoras, o New York Times ou mesmo a revista investigativa de esquerda Mother Jones. Imaginem, antes, um misto do Village Voice dos anos 1980 com uma sociedade de ajuda mútua, mas administrada, vez por outra, como o movimento Occupy Wall Street. A Novaya Gazeta é uma comunidade e uma instituição humanitária, e é uma bagunça.
Ela dá continuidade também a uma tradição soviética peculiar: o jornal que faz as vezes de um tribunal de justiça. O cidadão soviético vivia cercado pelos muros impenetráveis da burocracia – não havia recurso contra injustiças, grandes ou pequenas, a não ser quando uma carta a um jornal chamava a atenção de um jornalista sem ensejar objeções de um censor. Nesse caso, uma matéria podia produzir mudanças: um professor com comportamento abusivo poderia ser demitido, por exemplo, ou um edifício precário receber reformas. Matérias assim compõem o sustentáculo da Novaya Gazeta. No final dos anos 1990, quando as tropas russas saíram da Tchetchênia, deixando cerca de 1.500 soldados para trás – ninguém sabia quantos estavam mortos ou presos –, o jornal publicava regularmente artigos de um oficial do Exército, major Vyacheslav Izmailov, que organizava equipes de busca e escrevia sobre elas. Durante anos, as famílias iam à Gazeta para pedir a Izmailov que encontrasse seus filhos. Em 2000, o jornal abriu uma linha direta para coletar relatos que corriam de boca em boca dando conta de soldados mortos, a fim de compará-los às estatísticas oficiais de baixas militares na Tchetchênia. Mais tarde, o projeto passou a incluir sobreviventes e, depois, começou a compelir os militares a ajudar os feridos e suas famílias. Pessoas formavam fila do lado de fora da sala de Anna Politkovskaya para pedir ajuda para seus entes queridos, desaparecidos ou feridos. Em 2002, quando um grupo tchetcheno fez mais de novecentos reféns num teatro de Moscou, Politkovskaya foi atuar como negociadora e convenceu os tchetchenos a permitir que água e suco chegassem aos prisioneiros. Em 2004, quando outro grupo fez mais de mil reféns, entre crianças e adultos, numa escola de Beslan, no Sul da Rússia, Politkovskaya voou para lá para negociar, mas foi envenenada no meio do caminho. “Este jornal foi criado para ajudar as pessoas”, Milashina me disse. “Não a humanidade: as pessoas – e não por meio da informação, mas conseguindo ajuda real para elas.”
Muratov é um “paraquedista”, diz Dmitry Bykov, poeta e jornalista afiliado à Novaya Gazeta há 22 anos. “Ele valoriza a amizade acima de tudo e está sempre pronto a aparecer de paraquedas. Foi paraquedista no serviço militar também”. Bykov deve ter encontrado uma brecha no acordo de confidencialidade de Muratov.
Ao contrário da maioria das publicações, seja na Rússia ou em outros lugares, a Novaya Gazeta não pertence a uma pessoa rica, a uma grande empresa ou a uma fundação; ela é propriedade coletiva de sua equipe. Quando o jornal começou, conta Milashina, “ainda não havia gente rica disposta a investir na mídia”. Um apoiador de primeira hora, Gorbatchev, comprou alguns computadores para o jornal; reza a lenda que tirou o dinheiro para tanto de seu próprio Nobel, recebido em 1990. Em 2006, enfrentando uma crise financeira aguda, a Gazeta vendeu porção minoritária de suas ações para Alexander Lebedev, um bilionário que havia trabalhado na KGB. Poucos anos mais tarde, Lebedev, que estava retirando seus investimentos da Rússia, devolveu as ações ao coletivo da Novaya Gazeta.
Na União Soviética, todas as publicações eram (no papel) coletivos assim, e os editores eram eleitos (nominalmente). Na verdade, a mídia soviética era um microcosmo do Estado totalitário. Ao longo do tempo, a Gazeta transformou-se numa democracia: são eleitos o editor-chefe, os membros do conselho editorial e os de um recém-criado conselho de ética. Qualquer membro da equipe do jornal pode convocar uma reunião geral para externar uma queixa. Poucos anos atrás, num programa de rádio, Muratov elogiou um jornalista de outro veículo por uma matéria sobre protestos e sobre a memória de Beslan; Elena Kostyuchenko também havia coberto o assunto, mas Muratov não mencionou o trabalho dela. Kostyuchenko e seus colegas convocaram uma reunião. Muratov ouviu o que ela tinha a dizer. Procurou se esquivar e pavonear-se um pouco – citou o sociólogo francês Jean Baudrillard –, mas admitiu: “Algo de frágil se quebrou aqui. Se é o que Lena sente, então foi isso que aconteceu. Peço sinceras desculpas. Com certeza não quis magoar você. Podemos seguir adiante?” (A reunião foi filmada pelo documentarista Askold Kurov, que incluiu a gravação num filme que fez sobre a Gazeta.) Kostyuchenko, uma mulher de perfil delgado como o de um pássaro, assentiu sem olhar para Muratov. A reunião terminou. Duas mulheres foram consolar Kostyuchenko, que chorava.
Logo depois, Ilya Azar – o jornalista que Muratov havia elogiado em detrimento de Kostyuchenko – juntou-se à Novaya Gazeta e concorreu ao posto de editor-chefe. Imprimiu panfletos afirmando que, com Muratov eternamente no comando, a ideia de democracia do jornal era “como a de Putin, quando não pior”. Recebeu treze votos; 74 foram para Muratov. (Um terceiro candidato, Sergei Kojeurov, antigo diretor-geral do jornal, teve 51.) Azar e Kostyuchenko hoje dividem uma sala.
A tolerância da Novaya Gazeta para a dissidência interna significava que mesmo a jornalista mais celebrada do jornal, Politkovskaya, enfrentava o ceticismo dos colegas. “Eu não gostava do tom de suas matérias – era pessoal demais e um pouco histérico”, contou-me Dmitry Bykov; a gente “mal se falava nos últimos anos” da vida dela. (No começo dos anos 2000, Bykov também discordava veementemente de Muratov – e de muitos outros jornalistas da Gazeta – por sua desconfiança de Putin e pelas críticas a ele, mas, segundo me disse, “isso não teve impacto nenhum no meu relacionamento com Muratov”.)
Roman Anin, um repórter investigativo, contou-me acerca de Politkovskaya: “Um mês depois de começar a trabalhar para o jornal, eu já expressava em voz alta minha indignação: ‘Por quanto tempo ela vai se safar difamando os militares russos?’” (Ele também me disse que tinha 19 anos na época e que era “um idiota”.) Muratov tentou convencer Politkovskaya de que ela estava pondo em risco a própria vida pela liberdade dos tchetchenos, e isso muito tempo depois de o próprio povo tchetcheno ter abraçado um ditador. Segundo me contou, brigaram aos gritos no refeitório da Gazeta, derrubando inclusive alguns banquinhos perto do balcão, e não se falaram mais por meses. (Outros membros da equipe do jornal, ouvindo a algazarra toda por trás de portas fechadas, acreditam que o editor e a jornalista chegaram de fato a jogar cadeiras um no outro, uma versão que Muratov acatou com alegria.) “Ninguém aqui tem medo de ser demitido – todo mundo ameaça ir embora”, diz Milashina. Em 24 anos de jornal, ela já perdeu a conta de quantas vezes pediu demissão, em geral porque Muratov vivia lhe pedindo que parasse de escrever sobre a Tchetchênia. Ele simplesmente rasgava suas cartas de demissão; uma vez, Milashina rasgou sua própria credencial da Novaya Gazeta. Mas segue trabalhando no jornal e ainda escreve sobre a Tchetchênia.
A Gazeta é uma publicação imprevisível. Alguns de seus projetos são de uma ambição e de uma inventividade espantosas. Em 2019, o jornal convocou uma maratona de jornalismo de dados para codificar e analisar mais de 2.500 casos de mulheres condenadas por homicídio premeditado e descobriu que 79% delas haviam matado defendendo-se de um marido ou parceiro. As matérias da Novaya Gazeta são muitas vezes ou reveladoras – o relato de Kostyuchenko sobre as instituições para adultos com transtornos mentais descrevia amontoados desumanos com um nível inédito de detalhamento – ou de uma coragem espetacular, como os diversos relatos resultantes do vazamento dos Panama Papers, que puseram a nu uma extensa rede de contas offshore vinculadas a um velho amigo de Putin, o violoncelista Sergei Roldugin. (Roldugin negou ter cometido qualquer delito.) Outros artigos, porém, são demasiado longos, sinuosos, pecam pelo excesso de interpretação e pela insuficiência de informação, e alguns são verdadeiramente falhos. Em 2016, a Gazeta publicou uma matéria sobre um jogo online em que adultos supostamente manipulavam adolescentes, levando-os a se matar; fiando-se primordialmente em entrevistas com as famílias dos adolescentes; sua autora, Galina Mursalieva, afirmava ter documentado 130 mortes desse tipo. Ao longo dos dois ou três anos seguintes, outros jornalistas independentes na Rússia apontaram diversas lacunas na matéria. O jornal reconheceu que o artigo havia sido publicado apressadamente e mal editado, mas sustenta que ele atraiu a atenção necessária para o problema do suicídio entre adolescentes e do uso que eles fazem das mídias sociais. O artigo já teve mais de 3,5 milhões de visualizações online.
Na década passada, mesmo com o aumento da repressão do Kremlin à mídia independente, jornalistas russos criaram novos veículos ágeis, ousados e inovadores. O canal independente TV Rain tem uma marca rosa-choque e adota um tom moderno e informal. A página do veículo investigativo Proekt na internet parece um catálogo de livros infantojuvenis, como se dissesse: “Clique em qualquer janela para mergulhar numa história de corrupção e ganância.” Na Novaya Gazeta, pouca coisa tem um aspecto moderno, novo ou insolente. A edição impressa ainda é muito parecida com as da década de 1990. A sede do jornal, recém-reformada, é como o fruto do amor entre a arquitetura burocrática russa e a Ikea (uma marca de móveis de origem sueca). Mais da metade de seu público online é de pessoas com 45 anos ou mais. Ainda assim, a Gazeta segue atrativa para aqueles jovens russos que, contrariando o bom-senso, decidiram se tornar jornalistas. Os estudantes chegam para fazer estágio e, com frequência, nunca mais vão embora.
Há pouco tempo, uma dezena dos funcionários mais jovens escreveu um código de ética para fazer frente ao assédio sexual e a outros tipos de abuso no local de trabalho. A equipe toda votou pela adoção do código e pela criação de um conselho de ética composto de cinco membros. “As pessoas costumavam ser rudes umas com as outras”, diz Milashina. “Muratov era um idiota e não percebia que estava magoando os outros. Várias vezes deparei com esse seu comportamento idiota – e admito: em resposta ao meu”. Ele gritava, humilhava as pessoas. Uma de suas perguntas favoritas era: “O que vale mais – seu texto ou um hectare de pinheiros altos, belos e jovens?”, conta ela. “Os mais velhos não conseguiam fazer com que ele visse o estrago que estava fazendo, mas os jovens o puseram no seu lugar. É divertido ver.”
“A própria existência desse código e do conselho significa que esse tipo de merda – vinda de alguém que é seu chefe, é homem etc. e tal – não pode mais acontecer aqui”, me disse Muratov, já infringindo o próprio código que agora defendia. “E, se acontecer, ferro quem quer que seja com rapidez e agilidade, como aprendi no serviço militar, vou além da decisão do conselho de ética.”
Um outro tipo de diferença geracional mostrou-se mais difícil para Muratov. Nos últimos anos, repórteres investigativos na Rússia – sobretudo os que trabalham para a organização de Navalny, cujo alcance rivaliza com o da Gazeta – têm explorado as relações pessoais de russos poderosos a fim de entender como a corrupção funciona. Vasculharam contas nas mídias sociais para encontrar um iate supostamente de propriedade de Yevgeny Prigojin, grande aliado de Putin, e foram atrás de registros de propriedade e de investimentos aparentemente ligados a uma mulher que pode ser a mãe de uma de suas filhas. Encontraram também uma mulher que se acredita ser outra das filhas de Putin e que, com o ex-marido, parece ter enriquecido com lucrativas concessões estatais. Esse tipo de investigação é demais para Muratov. “Não vou fuçar na vida particular das pessoas”, ele diz. “Eu próprio não estou livre de pecados. Não tenho pena de políticos, mas, quando se trata de membros da família, da esposa, dos filhos e das mulheres que amam, é aí que traço meu limite. Quando querem escrever sobre a filha de Putin, eu me pergunto: ‘Quero que alguém escreva sobre a minha?’” Muratov nunca fala da própria família. (Um de seus filhos, jornalista nos Estados Unidos, recusou-se a falar comigo, alegando preocupações com a segurança.)
Segundo Muratov, esses limites custaram à Novaya Gazeta uma de suas estrelas do jornalismo investigativo: Roman Anin. “Muratov é responsável por 150 pessoas que não terão do que viver se o jornal for fechado – minhas responsabilidades são menores”, disse Anin, quando conversamos. Um ano atrás, Anin lançou o iStories (ou seja: Important Stories), que recentemente publicou um artigo sobre uma mulher que parece ser uma antiga namorada do ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov (que negou a alegação); a mulher e sua filha são proprietárias de quantidade significativa de imóveis e de uma impressionante coleção de carros de luxo. O Estado russo classificou o iStories, Anin e cinco de seus colegas como “agentes estrangeiros”, um status legal que acarreta obrigações burocráticas e públicas bizarras, como registrar-se como entidade legal, informar cada despesa ao Ministério da Justiça e apor a toda manifestação escrita ou oral uma declaração de que se é um agente estrangeiro. O não cumprimento dessas obrigações pode resultar em processo criminal. Anin está exilado desde julho passado.
Sobre ele, Muratov disse: “Foi muito doloroso para mim não ter tido coragem suficiente para deixar que ele concretizasse algumas de suas ideias. Com a idade, nossa tolerância ao risco vai naturalmente diminuindo, até que você percebe que não vale a pena arriscar um único fio de cabelo de um membro da equipe por matéria nenhuma.”
Se Muratov de fato pensasse que risco nenhum era aceitável, então ele não poderia ser jornalista na Rússia. Mas, de todos os papéis que um editor desempenha na vida de seus jornalistas – o de mentor, o de fonte de encorajamento, o de voz da realidade –, o principal para Muratov é o de protetor. Por mais macabro que seja o cálculo, a verdade é que não há mortes violentas no jornal desde 2009. Ameaças e ataques existem: Kostyuchenko tem sido agredida fisicamente, detida e ameaçada com terrível frequência. Em 2017, o jornal recebeu duas vezes envelopes cheios de um pó branco não identificado (posteriormente considerado inofensivo). Mais cedo ao longo deste ano, alguém vestido como um mensageiro numa bicicleta foi até o prédio do jornal e borrifou-o com uma substância química desconhecida.
Em abril de 2019, Bykov ficou doente num voo até Ufa, poucas horas a Leste de Moscou. Teve sintomas semelhantes aos que Navalny sentiria ao ser envenenado a bordo de um avião no ano seguinte. De acordo com o Bellingcat, o grupo de jornalistas investigativos que identificou os prováveis agressores de Navalny, Bykov foi alvo das mesmas pessoas. Bykov conta que “minha mulher, Katya, chamou uma ambulância, que não quis me atender pelo simples fato de o aeroporto ser muito distante. Seu segundo telefonema foi para Muratov, que fez a ambulância ir ao aeroporto. Depois, voou ele próprio até Ufa. Depois, arranjou para que eu fosse transportado para Moscou. E, depois, foi a primeira pessoa a ir me visitar na terapia intensiva do hospital”.
Em 2017, Khudoberdy Nurmatov, colaborador regular da Gazeta, foi preso, aparentemente por violar as leis de imigração. Refugiado do Uzbequistão, ele escrevia sob o pseudônimo de Ali Feruz, em especial sobre a política na Ásia Central, mas, em sua matéria mais recente, ele investigara a morte de um recruta de 18 anos num campo de treinamento militar. Enquanto Feruz esteve preso num centro de detenção para imigrantes nas cercanias de Moscou, o jornal entrou com processos em seu favor em tribunais russos e europeus, apelou a autoridades russas e manteve um fluxo constante de publicidade em torno do caso. Feruz é gay, e ele e seus colegas temiam que sua deportação para o Uzbequistão equivaleria a uma sentença de morte. Por fim, Muratov conseguiu alguém – cujo nome se recusa a revelar – capaz de se sobrepor à polícia e aos tribunais. Depois de seis meses de prisão, Feruz foi solto e partiu para a Alemanha.
Para manter os colegas em segurança, Muratov já fez muitos acordos difíceis. Em 2009, depois que uma correspondente da Novaya Gazeta na Tchetchênia, Natalya Estemirova, foi sequestrada e morta, Muratov ficou sabendo que outro jornalista que escrevia sobre a Tchetchênia corria perigo iminente. Por um funcionário governamental, fez uma oferta: em troca da segurança desse segundo jornalista, o jornal se absteria de cobrir a Tchetchênia por um ano inteiro. “Talvez fosse a coisa errada a fazer”, Muratov declarou numa entrevista para um filme lançado pela Novaya Gazeta por ocasião do 15º aniversário da morte de Politkovskaya, “mas eu faria tudo de novo”.
Em junho de 2012, Alexander Bastrykin, o chefe do ministério público russo, solicitou uma reunião com o editor-adjunto da Gazeta, Sergei Sokolov. Levou-o, então, até uma floresta nos arredores de Moscou, onde descarregou nele sua raiva e ameaçou mutilá-lo. Muratov publicou uma carta aberta furiosa, detalhando o que havia acontecido com Sokolov e exigindo um pedido de desculpa de Bastrykin. Alguém arranjou uma reunião entre os dois. Bastrykin se desculpou com Muratov “por ter passado dos limites”, e Muratov desculpou-se com Bastrykin pela reação demasiado emocional. Em seguida, apertaram as mãos um do outro.
Em 2017, depois de mais de duas décadas como editor-chefe, Muratov decidiu não concorrer à reeleição. Pelos dois anos seguintes, carregou o título de publisher, e Sergei Kojeurov passou a ser o editor-chefe. “Estava cansado”, contou-me ele. Milashina tem outra explicação: o jornal estava à beira de ser fechado, e Muratov concordou em abrir mão do posto para que a Novaya Gazeta seguisse existindo. Ele reassumiu o cargo em 2019 – segundo me disse, porque tinha divisado todos os meios necessários para revigorar o jornal. Compreende também que é a pessoa mais adequada para conduzir a Gazeta em meio a crises. Anin chama Muratov de “o grande negociador”: ele sabe com quem falar e quando, e tem acesso à pessoa. “A oposição precisa ser tão estável e imutável quanto o regime”, afirma Bykov.
Nos últimos anos, a Novaya Gazeta vem investindo pesadamente nas mídias digitais, tendo inaugurado uma divisão de áudio e vídeo e despejado recursos no jornalismo de dados. Em 2018, o jornal lançou uma plataforma de financiamento público que se tornou sua principal fonte de apoio. Um botão amarelo na página convida o visitante a se tornar “um coconspirador”; mais de 100 mil pessoas já o fizeram. Os mais jovens na equipe abriram uma conta no TikTok – motivo especial de orgulho para Muratov – e começaram a produzir meia dúzia de podcasts. Uma produtora de podcasts, Nadejda Yurova, que ajudou a fazer campanha pelas reformas éticas na Gazeta, quer um dia produzir um podcast sobre questões relacionadas à comunidade LGBTQIA+. Muratov tem apoiado, diz ela, mas ainda não descobriram um jeito de fazer isso sem pôr o jornal em risco – defender direitos dessa comunidade pode ser o caminho mais curto para ser classificado como “agente estrangeiro”.
Muratov vai expandindo os limites sempre cambiantes do que é possível na Rússia, mas jamais a ponto de a Novaya Gazeta vir a ser fechada. Ele se ofende quando lhe perguntam como tem conseguido garantir a sobrevivência do jornal por tanto tempo. Toda vez que eu tocava no assunto, ele gritava comigo e, uma vez, desligou o telefone na minha cara. “É preciso que fechem seu jornal para que você seja confiável?”, vociferou. (Navalny, preso desde janeiro de 2021, também costumava ser importunado com suspeitas e perguntas sobre como ainda estava vivo e solto.) Mas, sim, Muratov diz, “faço diplomacia secreta. E não vou contar nada a você a esse respeito”.
Volta e meia, Kostyuchenko me contou, Muratov ordena a membros da equipe que terminem seus projetos, para que o jornal possa publicá-los antes de ter de fechar as portas. “Depois, duas ou três semanas se passam, e ele diz ‘sigam em frente’.”
O segredo de sua diplomacia pode ser simples: ele conhece muitos daqueles que, ao longo dos anos, têm controlado o poder na Rússia. Conheceu alguns nos anos 1990, quando estavam começando suas carreiras, e ele era um escriba iniciante. Alguns poucos até trabalharam a seu lado no Komsomolskaya Pravda. Outros jornalistas de oposição são inimigos abstratos para esses homens, mas Muratov não – Muratov bebe com eles. Chega mesmo a lançar projetos beneficentes em sua companhia. O Círculo da Bondade, uma fundação iniciada por iniciativa da Novaya Gazeta com o propósito de ajudar crianças com atrofia muscular espinhal, foi criado mais cedo neste ano por um decreto especial de Putin.
Duas semanas depois de ganhar o Nobel, Muratov participou do encontro do Clube Valdai, a reunião anual que Putin promove com jornalistas e acadêmicos escolhidos. Nos tempos de pré-pandemia, Putin costumava passar um dia inteiro em Valdai, em meio aos notáveis russos e estrangeiros. Em 2021, fez uma aparição rápida e falou com participantes a partir de um palco bem distante. Muratov teve a oportunidade de fazer-lhe uma pergunta, mas, antes disso, anunciou como o dinheiro de seu Nobel seria aplicado: no Círculo da Bondade, em duas clínicas para doentes terminais, numa fundação para crianças com câncer, num prêmio em memória de Politkovskaya e num fundo de assistência médica para jornalistas. Todas essas entidades, à exceção das duas últimas, receberam a aprovação de Putin. Em seguida, Muratov aproveitou a ocasião para criticar a lei sobre “agentes estrangeiros”, por sua aplicação arbitrária e extrajudicial.
Putin respondeu parabenizando-o pelo Nobel e contornou a crítica à lei. Como muitas vezes acontece na Rússia, a parte mais significativa do diálogo esteve nas omissões. Ao contrário do que havia prometido, Muratov não mencionou o uso do dinheiro para ajudar organizações de mídia declaradas “agentes estrangeiros”. Não tinha desistido da ideia – vai canalizar o dinheiro para tanto por meio do prêmio em memória de Politkovskaya. Mas aquele não era nem o momento nem o lugar para chamar atenção para esse seu plano.
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Tradução: Sergio Tellaroli
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