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    Cena de Paloma e Zé Foto: Divulgação

colunistas

Incerteza máxima

Algumas dicas para apreciar a Mostra de Cinema – sabendo que o tempo e a tranquilidade dos cinéfilos estão afetados na reta final da eleição

Eduardo Escorel | 26 out 2022_08h22
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O resultado da terceira pesquisa Datafolha feita para o segundo turno, divulgado há uma semana (19/10), deixou o país em estado de “incerteza máxima”, na feliz expressão de Renata Lo Prete no Jornal da Globo daquela noite. A diferença de votos totais entre o ex-presidente e o incumbente estava em quatro pontos percentuais, resultado que outras pesquisas confirmaram com pequenas variações. Frente a esse dado, a incerteza quanto ao desfecho da campanha presidencial não só aumentou como se tornou radical, embora Lula estivesse à frente de seu adversário e continuasse sendo considerado favorito.

“Incerteza resulta de nosso conhecimento incompleto do mundo ou da conexão entre nossas ações presentes e seus resultados futuros”, escrevem os economistas John Kay e Mervyn King em Radical Uncertainty (W.W. Norton & Company, Inc., 2020, pp 13-15. Tradução EE). Para os autores, “este é um mundo de futuro incerto e consequências imprevisíveis, sobre o qual há especulação necessária e desacordo inevitável ​​– desacordo que muitas vezes nunca será resolvido. E é esse o mundo que mais encontramos. Desse modo, as ramificações da incerteza radical vão muito além dos mercados financeiros; elas afetam decisões individuais e coletivas, econômicas e políticas, indo desde decisões de importância global tomadas por estadistas até decisões do dia a dia tomadas pelos leitores deste livro.” “O tormento da incerteza nunca termina”, escreveu Roberto Calasso a propósito de O Castelo, de Kafka (K., Adelphi Edizioni, 2005).

A partir da publicação desta coluna na quarta-feira, 26 de outubro, tudo indica, portanto, que teremos ainda quatro dias de agonia, conscientes do risco que o país estará correndo. Quando escrevo, no sábado à tarde (22/10), parece que a “incerteza máxima” irá perdurar pelo menos até domingo, 30 de outubro, à noite, no momento em que os votos válidos apurados indicarem que um dos candidatos atingiu a maioria absoluta. Haja coração!

A 46ª Mostra Internacional de Cinema, iniciada há uma semana (20/10) em São Paulo, prossegue até 2 de novembro. Como acredito ter ocorrido entre 6 e 16 de outubro no Festival do Rio, no caso do evento cinematográfico paulistano a simultaneidade com os dez dias finais do segundo turno e o desfecho da eleição também deve afetar o tempo disponível dos cinéfilos, além de sua tranquilidade para apreciar os filmes da Mostra.

Inconvenientes circunstanciais agravados por terem sido programadas apenas sessões presencias, deixando de oferecer acesso via plataforma de streaming. O Festival carioca e a Mostra paulistana abrem mão, desse modo, de se firmarem como os acontecimentos culturais de alcance nacional que chegaram a ser durante a pandemia, voltando a se restringir ao âmbito municipal.

Belo exemplo em contrário oferece o Festival de Cinema Italiano no Brasil a ser realizado de 4 de novembro a 4 de dezembro, em 38 cidades do país, com sessões online e presenciais e uma programação de respeito, incluindo filmes inéditos e clássicos. Informações em https://festivalcinemaitaliano.com/.

Haverá razões ponderáveis para não disponibilizar ao menos parte da programação do Festival do Rio e da Mostra através de streaming, suponho. Mesmo assim, creio que essa opção deveria ter se tornado obrigatória após a experiência bem-sucedida durante a pandemia.

 

Paloma (2021), de Marcelo Gomes, exibido ontem (25/10), volta à tela amanhã (27/10) em São Paulo, na 46ª Mostra Internacional de Cinema, e estreará em 10 de novembro no circuito de salas. O filme, inspirado na história real de Paloma da Silva, com roteiro escrito por Gomes em parceria com Armando Praça e Gustavo Campos, foi premiado no Festival do Rio como melhor longa-metragem da mostra Première Brasil, tendo recebido ainda os prêmios de Melhor Atriz, atribuído a Kika Sena, e o Prêmio Félix de Melhor Filme, concedido a obras com temática LGBTQIA+.

Desde o primeiro plano, Paloma sobressai pela excelência de sua fatura, de nível superior ao que vêm sendo apresentado pela média dos filmes brasileiros de ficção recentes. Não só é irretocável em quase todos seus aspectos, como é um espetáculo grandioso, feito de belas imagens, trilha sonora de O Grivo com a qualidade costumeira, e atuações primorosas, em especial a da premiada Kika Sena. A única ressalva que faria é à mudança súbita de atitude de Zé (Ridson Reis), como se a reação ao seu casamento com Paloma (Kika Sena) não fosse previsível.

Paloma, interpretada por Kika Sena – Foto: Divulgação

 

Agrega-se às qualidades formais de Paloma o fato de ser um filme mais do que oportuno neste momento, ao tratar em última análise de manifestações de intolerância e hipocrisia que resultam em atos de violência. Intolerância e hipocrisia, no caso, da sociedade, da família, da Igreja Católica e dos meios de comunicação. Em entrevista ao DW Brasil, Gomes afirmou: “É um universo, uma geografia muito machista. É um universo do interior do Nordeste, mas na cidade grande também existe muita violência… Nas cidades grandes existe também uma parte da população que aceita mais as minorias, as minorias LGBTQIA+, mas também existem preconceitos, principalmente os preconceitos que foram fomentados por este governo [do presidente Jair Bolsonaro], que exacerbou um sentimento de ódio e intolerância que já existia.” Entrevista completa disponível em https://www.dw.com/pt-br/sociedade-brasileira-precisa-quebrar-processo-de-%C3%B3dio-contra-minorias-lgbtq/a-62291269.

A personagem-título é analfabeta e trabalha na colheita de frutas no sertão do Cariri. Ela diz que nasceu homem, mas é mulher e “…agora só falta eu realizar meu maior sonho que é casar na igreja… me tornar a mulher mais feliz do sertão” – objetivo que a leva a enfrentar com determinação e coragem os obstáculos que encontra na sua jornada.

O que de início parece se encaminhar para ser um conto de fadas é virado do avesso e termina com um clássico final aberto em que Paloma abandona seu local de origem e parte para Juazeiro. Sentada na traseira do caminhão, ela observa o que vai deixar para trás e dirige seu olhar, ao mesmo tempo, diretamente para a câmera, como se interrogasse o espectador. O caminhão primeiro se afasta, levando Paloma, enquanto o plano perde o foco; depois sai de quadro e o que fica é só a imagem superexposta, quase branca.

Nos créditos finais, a canção que se ouve é Sem Pecado e Sem Juízo, de Baby do Brasil e Pepeu Gomes, na gravação de Baby Consuelo: “Dia após dia/ começo a encontrar/ mais de mil maneiras/ De amar. / Aqui nessa cidade/ O pôr do sol e a paisagem / Vêm beijar luar / Doar felicidade / Tudo azul / Adão e Eva, e o paraíso / Tudo azul/ Sem pecado e sem juízo…”

*

Destaque (XV):

“A crise tem muitas faces. Perda do hábito à tela grande de parte do público sob o efeito da Covid, agravada pela concorrência desenfreada das plataformas. Degringolada da frequência às salas de cinema (30% em média em relação a 2019), reforço da concentração em favor dos grandes blockbusters americanos, enfraquecimento da criação e difusão do cinema independente… A mobilização atual [do coletivo informal de personalidades independentes do setor] questiona uma complacência crescente de parte das autoridades públicas com relação aos imperativos do mercado, pondo em risco o modelo cultural sofredor. A estratégia “ao mesmo tempo”, com a qual salvamos financeiramente o setor com uma mão, mas o exortamos a se tornar comercialmente mais desejável com outra (o rumo definido pelo cenário internacional, mas também pela reconquista da juventude) deixa um gosto amargo.” Sandra Onana, “Le cri d’alarme d’un cinéma en crise” (O grito de alarme de um cinema em crise – qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência), Libération, 5 de outubro, 2022. (tradução por minha conta. EE)

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