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    O nó da questão: pela lei, o estado é responsável pela gestão dos serviços de saneamento básico Imagem: alexlmx/Depositphotos/Fotoarena

questões legais

Inconstitucional, privatização da Sabesp cria insegurança jurídica

Projeto de Tarcísio de Freitas contradiz o próprio discurso desestatizante do governador

Roberto Andrés | 24 out 2023_14h56
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O governador Tarcísio de Freitas enviou à Assembleia Legislativa de São Paulo, em regime de urgência, um projeto de lei que propõe a privatização da Sabesp, a companhia de saneamento básico do estado. A empresa dispõe da concessão do serviço em 375 municípios paulistas, e atende 70% da população urbana do estado. 

O Brasil tem um modelo peculiar no setor. As companhias estaduais de saneamento foram criadas durante a ditadura militar. A partir da Constituição de 1988, a responsabilidade sobre a rede de água e esgoto migrou para os municípios. Estes, então, passaram a realizar contratos de concessão com as companhias estaduais. 

Nos anos seguintes, alguns estados privatizaram parcialmente ou integralmente as empresas de água e esgoto. A Sabesp é um caso de parcial: abriu capital na Bolsa de Valores, com o Estado mantendo a maioria das ações. A empresa aufere lucro e distribui dividendos anualmente – parte para os acionistas privados, parte para o estado de São Paulo. 

O projeto de Tarcísio de Freitas prevê que o Estado deixe de controlar a companhia, reduzindo sua participação para cerca de 15% a 30% das ações, segundo membros do governo. A forma de conduzir a proposta, porém, contradiz uma das palavras de ordem do governador: aumentar a segurança jurídica dos investidores. 

Se a segurança jurídica é uma preocupação, é imprudente apresentar um projeto que fere a constituição estadual. Em seu artigo 216, parágrafo 2º, a carta obriga o Estado a gerir os “serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário”. O texto não deixa margem para interpretação. A mudança proposta por Tarcísio teria de ocorrer via Projeto de Emenda à Constituição (PEC), o que demandaria maioria qualificada para aprovação.

 

O novo Marco do Saneamento, aprovado há alguns anos no Congresso Nacional, aumentou as possibilidades de participação de empresas privadas no setor. A premissa de fundo é de que, aumentando a competitividade, melhora-se a qualidade do serviço. Este é, grosso modo, o argumento mais utilizado nas defesas das privatizações. 

Mais uma vez, a prática do governador vai na contramão do discurso. Nos bastidores, Tarcísio tem operado para evitar que as prefeituras utilizem de sua prerrogativa de fazer uma nova licitação do saneamento após a venda. O esforço não parece ser pelo aumento da competitividade, mas pela garantia do monopólio para uma empresa privatizada. Mais um capítulo do capitalismo à brasileira.

A própria forma como o estudo da desestatização foi feito contraria as premissas de livre competição na contratação pública. O governo do estado contratou sem licitação a consultoria da IFC. E assinou com ela um contrato com remuneração diferente conforme a conclusão: caso o estudo recomendasse não privatizar a Sabesp, a IFC receberia 8 milhões de reais; caso sugerisse o contrário, o pagamento da consultoria iria para 45 milhões (já que, em tese, demandaria mais trabalho). Ao final, a empresa entregou um relatório de cem páginas recomendando a privatização, a um custo de 450 mil reais por página. 

A privatização do saneamento não é, nem de longe, um consenso no setor. Ao contrário, há um movimento internacional forte em sentido oposto. A onda de desestatizações dos anos 1980 e 1990 vem sendo revertida. Mais de oitocentas cidades reestatizaram seus sistemas de água e esgoto nos últimos vinte anos. Dentre elas, Berlim, Paris, Buenos Aires, Atlanta e La Paz. As razões? As concessões pioraram os serviços, as tarifas aumentaram e as empresas usavam de diversas artimanhas para driblar a fiscalização e a regulação. 

Se as referências internacionais forem levadas a sério, a defesa da privatização do saneamento é difícil de ser sustentada. Trata-se mais de argumentação ideológica do que baseada em evidências ou na bibliografia consistente. A ideia de melhora de serviço pelo aumento de competitividade, que pode funcionar bem para itens de consumo individual, mostra-se muitas vezes falaciosa para serviços que demandam monopólio em certas áreas para maior eficiência, como é o caso de água encanada e do transporte público. 

Claro que a morosidade no avanço do saneamento no país deve levar à busca por soluções, mas daí a adotar, com três décadas de atraso, um modelo de privatização que já foi dispensado na maior parte do mundo, há um abismo. Seria mais proveitoso olharmos para as experiências de reestatização, que estão em voga, para buscar aprimorar nossas empresas públicas, aumentando a transparência, o controle social e a eficiência na gestão. 


Comparada a cidades em que o saneamento não é oferecido por empresas públicas, a Sabesp possui tarifas mais baixas e uma taxa de cobertura melhor. Em alguns casos, a diferença da tarifa social pode ser de mais de 100%, como foi apontado em Audiência Pública realizada recentemente no Congresso Nacional. Para evitar que a tarifa aumente no curto prazo, Tarcísio propõe usar parte dos recursos obtidos com as vendas de ações. A ideia, claro, não se sustenta – quando esses recursos acabarem, as tarifas vão subir, mas aí talvez o governador já tenha cumprido seus objetivos políticos. . 

Há quem argumente que a privatização da companhia era uma agenda de campanha do governador nas eleições de 2022, e que por isso ele teria carta branca para levá-la adiante. Há dois erros aí. O primeiro é que a democracia não é um regime bissexto. Para concretizar a agenda apresentada nas eleições, é preciso obedecer às leis, conquistar o debate público e seguir os ritos da política. O segundo erro é mais elementar: Tarcísio não propôs a privatização da Sabesp em sua campanha – após dar declarações ambíguas sobre o tema, sua assessoria negou que estivesse nos planos.

Em suma, o PL de Tarcísio de Freitas fere a constituição estadual, aumenta a insegurança jurídica dos investidores, baseia-se em estudo feito sem licitação e cuja empresa teve maior remuneração ao indicar a licitação, contradiz os princípios de aumento da competitividade entre concessionárias, ignora as referências internacionais e o comparativo de valor tarifário com outras cidades brasileiras. 

Por trás do martelo midiático do governador está essa avalanche de contrassensos.

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