minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Foto: Robledo Milani

questões cinematográficas

Irrelevância em Porto Alegre

Sábado à tarde (8/6/2013), em Porto Alegre, cerca de cem pessoas esperaram pacientemente por dois debatedores vindos, um de Curitiba, o outro do Rio. Acabaram chegando, com meia hora de atraso devido ao atraso dos voos, e se reuniram a Jorge Furtado. Promovido pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, organizado por Ivonete Pinto e Mônica Kanitz, o debate anunciado com a frase “Cinema brasileiro para quem?” propunha retomar a noção de irrelevância que foi mencionada algumas vezes, nos últimos tempos, com referência ao cinema brasileiro.

É espantoso que cem pessoas tenham se interessado em assistir, num sábado à tarde, a um debate sobre asssunto tão esotérico. Mas estavam lá, não reclamaram do atraso, ouviram atentamente durante duas horas as divagações do debatedor nativo e dos dois forasteiros – Luiz Zanin Oricchio e eu. Não saberia explicar esse misterioso fenômeno.

| 10 jun 2013_16h29
A+ A- A

Sábado à tarde (8/6/2013), em Porto Alegre, cerca de cem pessoas esperaram pacientemente por dois debatedores vindos, um de Curitiba, o outro do Rio. Acabaram chegando, com meia hora de atraso devido ao atraso dos voos, e se reuniram a Jorge Furtado. Promovido pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, organizado por Ivonete Pinto e Mônica Kanitz, o debate anunciado com a frase “Cinema brasileiro para quem?” propunha retomar a noção de irrelevância que foi mencionada algumas vezes, nos últimos tempos, com referência ao cinema brasileiro.

É espantoso que cem pessoas tenham se interessado em assistir, num sábado à tarde, a um debate sobre asssunto tão esotérico. Mas estavam lá, não reclamaram do atraso, ouviram atentamente durante duas horas as divagações do debatedor nativo e dos dois forasteiros – Luiz Zanin Oricchio e eu. Não saberia explicar esse misterioso fenômeno.

Não houve grandes divergências entre os debatedores, embora tenha sido dada ênfase excessiva ao aspecto comercial da questão, em detrimento do aspecto artístico e cultural que me parece mais importante.

Apesar dos debatedores terem concordado, de forma geral, cada um não endossa na íntegra, naturalmente, o que foi dito pelos demais, inclusive minha breve intervenção inicial que resumo a seguir, incluindo também o trecho final que, por falta de tempo, acabei não expondo.

*

A noção de relevância é, naturalmente, subjetiva, conforme aprendi há alguns anos com uma aluna. Eu tinha recusado a proposta dela de fazer seu documentário de conclusão de curso sobre animais de estimação, por não considerar o tema relevante – condição estabelecida para o projeto ser aceito.

Mas a aluna alegou que para ela animais de estimação era um tema muito relevante. E fui obrigado, então, não só a reconhecer a validade do argumento, como a aceitar o tema proposto.

É evidente: o que é relevante para uns pode não ser para outros. Constatação óbvia, mas muitas vezes esquecida dada a tendência a considerar preferências pessoais como sendo de interesse coletivo.

*

Minha contribuição inicial para o debate sobre a irrelevância do cinema brasileiro foi feita em um seminário da Mostra de cinema de Tiradentes, em janeiro de 2012. 

Passado um ano e meio, não vejo motivo para alterar o que disse naquela ocasião. E considero significativo que o debate em torno da irrelevância não tenha incluído a face perdulária da produção cinematográfica – sinal preocupante de que a gastança é aceita e ninguém quer falar dela.

Quanto à irrelevância, quando a mencionei, não estava pensando nos mesmos termos que tinham sido usados pelo Carlos Reichenbach, e aos quais o Jean-Claude Bernardet se referiu, no final do ano, em um e-mail que me mandou, depois de ter tratado  do assunto no IV Festival Internacional de Cinema da Fronteira, em Bagé, em novembro de 2012.

Jean-Claude escreveu no e-mail que vira o curta-metragem A vermelha luz do bandido (dirigido por Pedro Jorge, em 2009) que “acaba com um depoimento do Carlão, referindo-se ao Bandido, Deus e o diabo,Vidas secas e outros” como sendo filmes “não relevantes a nível do público”, mas “relevantes a nível da evolução da linguagem cinematográfica”.

Com a bondade que o caracterizava, Carlão procurava resgatar alguns filmes do naufrágio por terem, na opinião dele, valor estético. É um argumento válido, semelhante à defesa dos animais de estimação feita por minha aluna, e sobre o qual não há muito que se possa dizer.

Pouco depois da Mostra de Tiradentes, Jean-Claude havia acatado a falta de relevância “a nível de público”, declarada por Carlão, como sendo resultante do público não ser “uma necessidade do mecanismo de produção para se reproduzir”:

“[…] Precisamos nos perguntar qual é a forma da produção cinematográfica no Brasil e que marca ela deixa nos filmes. Atualmente a reprodução das condições de produção independe da relação do filme com o mercado, portanto independe do público. O público é um desejo do cineasta, não uma necessidade do mecanismo de produção para se reproduzir. Os filmes dialogam antes com os próprios cineastas e a burocracia da forma de produção, do que com o público, isso quando se fala do que Artur Autran chama o cinema “culto” financiado pelo Estado. Não se trata evidentemente de soltar os filmes brasileiros no mercado, poderia não haver sobreviventes. Mas certamente de diversificar e tornar mais complexos (e com menos burocracia, focando mais as produtoras e menos os projetos de filmes específicos) os modos de financiamento e de relacionamento com o mercado.”

Sem propriamente discordar do Jean-Claude creio, porém, que é preciso ampliar o grupo para o qual esse chamado cinema “culto” seria relevante, incluindo nessa rede de interesse os profissionais e prestadores de serviço da área, os festivais de cinema, jornais, revistas e blogs, além de setores da universidade e da crítica, todos interlocutores e cúmplices desse desses filmes.

O comentário que faria ao Jean-Claude, extensivo ao Artur Autran, não é novidade para eles, nem para ninguém. Como ambos sabem muito bem, o Estado não financia apenas o dito cinema “culto”. Financia todo o cinema brasileiro. Um exemplo atual é Faroeste caboclo, que dando sinais de dialogar com o público, foi visto na primeira semana de exibição por mais de 500 mil espectadores.

Segundo dados oficais da Ancine, é possível estimar que o financiamento do Estado tenha alcançado cerca de 80% do custo. Por esse valor de produção, mais algo em torno de R$ 4 milhões que devem ter sido gastos no lançamento, esse filme que dialoga com o público precisará chegar a 2 milhões de espectadores para cobrir seu custo, o que nesta altura ainda é um resultado incerto.

Seria preciso qualificar melhor, portanto, a noção de relevância definida pelo Jean-Claude, uma vez que a atividade cinematográfica envolve outros setores,  além “dos próprios cineastas e a burocracia”, todos vivendo e se reproduzindo em uma redoma, mantidos vivos graças ao oxigênio do Estado. O chamado cinema “comercial”, na falta de designação melhor, e o “culto”, na verdade, coabitam essa mesma redoma.

*

Quando disse, em Tiradentes, que a “produção cinematográfica brasileira é irrelevante”, não estava pensando, nem em filmes isolados, nem propriamente em termos estéticos ou comerciais. Como escrevi para Ivonete Pinto, depois de ter lido o artigo dela na revista Teorema (“Cinema irrelevante”, dezembro de 2012),  dizendo o seguinte:

“[…] ao falar em irrelevância não estava pensando nem nos filmes que são vistos por poucos espectadores, ou sequer chegam a ser lançados, nem especificamente naqueles que tem linguagem elaborada, em dissonância com o padrão convencional.

Não estava pensando em filmes específicos, mas sim no cinema brasileiro como um todo que, a meu ver, tem hoje reduzidíssima significação artística e cultural, estando também à margem do debate cultural e político das questões que realmente contam para o País.

Para mim, o fato de um filme brasileiro ser lançado em mais de 700 salas não o torna relevante.”

O que tentei expressar em Tiradentes, enfim, é a sensação de que se o cinema brasileiro não existisse, ninguém sentiria a menor falta dele. Ou melhor, só sentiriam falta dele os habitantes da redoma, o que não se pode dizer, evidentemente do que a televisão produz.

Na mercado externo, tanto no circuito comercial quanto nos festivais de cinema, filmes brasileiros são notáveis pela ausência.

No mercado interno, os termos da competição com o filme estrangeiro são desiguais, o que impede até mesmo a produção que encontra eco junto ao público de ser autossustentável.

*

Essa situação me parece derivar, ao menos em parte, do que Antonio Skármeta disse recentemente (Folha de S.Paulo, ilustrada) sobre a literatura na América Latina.

Segundo Skármeta haveria “falta de energia criativa”:

“As políticas culturais dos governos latino-americanos dão pouca importância à cultura e à criatividade”, disse Skármeta. “As sociedades do continente são dirigidas por lógicas economicistas, que buscam gerar produtos e consumidores. ‘Quem não consome e não produz está um pouco fora do jogo’.”

Lógica economicista que fundamenta, por exemplo, o discurso do diretor-presidente da Ancine, Manoel Rangel, feito no Senado Federal, em abril, ao “prestar  contas  do trabalho  realizado  à  frente  da  Agência  Nacional  do  Cinema”  e apresentar  o  que  pensa  “serem  os seus  desafios  para  o próximo período".

Rangel cita leis e estatísticas, mas faz apenas menções passageiras e um tanto protocolares à “cultura nacional”, além de omitir qualquer consideração sobre a natureza artística do cinema, a face criativa da atividade e o risco envolvido na realização de um filme, dada a característica sui generis de ser uma “indústria de protótipos”, para usar a famosa expressão de René Bonnel.

Na Europa, nossos colegas lutam para que seja honrada a ideia de que “numa escala de valores, a cultura vem antes da economia” (A exceção cultural não é negociável, petição em defesa dos mecanismos de apoio à criação e à cultura, divulgada em 18 de abril de 2013, dirigida à Comissão Europeia, e assinada por 6669 pessoas) e proclamam que a exceção cultural não é negociável.

Entre nós, considerar o cinema como sendo um bem cultural é visto com desconfiança.

O aumento do número de filmes produzidos é condição necessária, mas não suficiente, para alterar a lógica economicista.

*

Para quem tem no cinema seu meio de vida, a situação atual é dramática. Pensando em um cinema que tenha a ambição de ter mérito artístico e cultural, o desafio para sobreviver é tremendo.

Uma vez que a necessidade de ficção é suprida pelo baixo nível da teledramaturgia das novelas, e o acesso à produção estrangeira oferecido com frequência simultaneamente aos lançamentos nos Estados Unidos, ocupando em alguns casos metade das salas disponíveis pelo mesmo preço do filme brasileiro, a possibilidade de existir um cinema nacional relevante continua sendo uma interrogação.

Admitir a realidade e “aceitar a imperiosa prerrogativa do real”, para usar a expressão de Clément Rosset, parece estar além da capacidade dos habitantes da redoma cinematográfica. Eles têm sido incapazes, ainda por cima, de atuar com autonomia e de formular um projeto cultural para redefinir os termos da atividade. Por outro lado, talvez seja esperar demais que tenham a frieza do economista diante do destino das indústrias que não conseguem competir.

“Talvez algumas indústrias não consigam competir”, afirmou recentemente Pedro Cavalcanti Ferreira, professor da FGV (O Globo, Economia). “Mas vamos pensar assim: antes de se inventar a eletricidade, uma das maiores indústrias devia ser a de velas. Algumas indústrias podem não sobreviver, mas o que se vai fazer?  Dar subsídio a vida inteira para essa indústria?”

No magnífico O fim do sem fim (2001), de Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi, talvez tenha faltado uma entre as profissões e atividades em vias de extinção.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí