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Janelas para o infinito em Paulinho da Viola

Numa de minhas canções favoritas de Paulinho da Viola, o narrador descreve sua separação da mulher focalizando a cena na figura algo desajeitada de “um velho caminhão de mudança”. Leva algum tempo até que possamos compreender que se trata de uma separação. 

Paulo da Costa e Silva | 06 ago 2015_10h02
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Numa de minhas canções favoritas de Paulinho da Viola, o narrador descreve sua separação da mulher focalizando a cena na figura algo desajeitada de “um velho caminhão de mudança”. Leva algum tempo até que possamos compreender que se trata de uma separação. O primeiro verso fala de alguém que “passa dissipada na fumaça do seu orgulho”, e continua com a constatação dura de que os “dias móveis carregam o móvel laqueado”. A letra de José Carlos Capinam é a um só tempo visual e esquiva; alterna momentos de definição concreta com momentos de puro simbolismo – como no fabuloso último verso, “o tempo é um pássaro de natureza vaga”. A música de Paulinho da Viola evoca perfeitamente o clima algo difuso, de neblina e fumaça, dos versos. Os índices do rompimento amoroso, todos associados à transitoriedade, e agrupados numa pequena sequência linear – a mulher passando dissipada, dias móveis carregando móveis laqueados, o velho caminhão de mudança que vai embora – são pontuados por momentos de reflexão recuada sobre temas amplos e impessoais como a natureza do tempo, o destino das coisas que estão mundo. Isso traz para o narrador a condição ambígua de estar ao mesmo tempo dentro e fora da situação e do sofrimento a ela inerente. Em outras palavras, a narrativa da separação corre em paralelo com uma dimensão atemporal de imersão reflexiva. O personagem da canção alterna continuamente entre as duas. Depois de ver o velho caminhão de mudança sumir na fumaça, a imagem que encerra definitivamente a história de seu amor frustrado, ele se pergunta: “para onde você passa?, para onde as coisas passam?”. A atmosfera é mais de perplexidade do que de tristeza ou desespero. Com grande rapidez, transitamos da concretude vulgar do mundo para a franca indagação metafísica. Em meio ao duro golpe da ruptura amorosa, abre-se uma janela para o infinito.

Orgulho pertence à família de canções que exploraram, sobretudo nos anos 1970, o potencial dramático do momento da separação amorosa. É difícil evocar tal “família” sem pensar em Chico Buarque. Com olhar de dramaturgo, certamente foi ele um dos que mais contribuiu para a “mitologia da separação” em nossa música. Canções como Atrás da porta, Trocando em miúdos e Olhos nos olhos, nos colocam diante do momento decisivo da ruptura, da partilha de bens ou do desconcertante reencontro entre ex-marido e ex-mulher. Mas, embora o “disco do Pixinguinha” e “o livro do Neruda” possam, nesse momento, estar viajando dentro do “velho caminhão de mudança”, a letra de Capinam apresenta um grau de ausência, ou uma rota de fuga, que as músicas de Chico, pelo menos nessa fase, desconhecem. Em Chico, temos a encenação teatral minuciosa, a exposição narrativa perfeita da complexa floração emocional que acompanha o momento da separação; em Capinam, esse momento logo cede a uma indagação mais ampla sobre a natureza do tempo, até ser posto numa perspectiva longínqua. Mal a pergunta “para onde as coisas passam?” é feita, e o caminhão de mudança, que ainda nem cruzou a esquina do verso, já parece tão distante, quase esquecido…

Paulinho da Viola não poderia ter sido mais feliz ao pôr música sobre a letra de Orgulho. Ela encaixa perfeitamente com o mood reflexivo, algo recuado, de algumas de suas melhores canções. A abertura contínua de janelas para o infinito é um dos traços mais fascinantes de sua poética. A impressão é de que, em Paulinho, a corporalidade do samba, seu tecido impregnado de vida cotidiana, se transubstanciou em indagação filosófica, em leve movimento reflexivo. Situações corriqueiras rapidamente se expandem em pensamentos cósmicos. É nessa passagem que se dá boa parte de sua poesia, como bem indicou Nuno Ramos – ali, na pausa de mil compassos para ver as meninas, da qual nasce, no fim das contas, o sonho de fazer um samba sobre o infinito; ou naquela singela palavra “querendo explicar em mim, a eternidade em mim”. Sua música parece sempre indicar uma possibilidade de fuga, de um retorno ao mais essencial, da absorção do homem a sós com seus pensamentos. Como na letra de Não quero você assim, “não importa mais o que foi perdido, importa apenas o seu sorriso. E nada mais”.

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