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Jesus, Tom Zé e o feitiço do dinheiro

No Reino de Deus anunciado por Jesus, “a riqueza será redistribuída e as dívidas serão canceladas”. Não admira que tenha sido justamente tal incidente a levá-lo a ser crucificado pelas autoridades romanas. O conteúdo simbólico, no entanto, parece ir além. A ira do nazareno se direciona também contra a própria “entidade dinheiro”, contra os excessos de seu crescente prestígio.

Paulo da Costa e Silva | 10 jul 2015_17h20
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Cena do filme A última tentação de Cristo, de Martin Scorcese

Quanto mais leio a respeito do Jesus histórico, mais me torno seu fã. De um episódio de sua vida gosto especialmente: a investida de Jesus contra os mercadores do Templo. Trata-se de um Jesus com sangue nos olhos, exalando revolta, irrefutavelmente físico, carnal, até violento, muito distante daquilo que posteriormente seria feito com seu mito pela igreja do Ocidente. Há uma dimensão performática na cena. Imaginamos o pregador de Nazaré revirando mesas, libertando animais que esperavam ser vendidos para sacrifícios, proclamando frases de efeito, arremessando longe balanças e moedas. O mesmo homem que há pouco havia chegado à Jerusalém montado num burrico, portando uma coroa de flores, como se fora o “pai dos hippies”, cuidadosamente reproduzindo os detalhes das antigas profecias sobre a chegada do messias, mudava agora drasticamente o tom. Munido de grande autoridade espiritual, o carismático líder desafiava simbolicamente, com aquele ato, o maior império da história, e, de quebra, desautorizava a elite sacerdotal judaica que mandava no Templo. O episódio é tão marcante que aparece como raro ponto de concordância entre os quatro evangelhos canônicos – Marcos, Mateus, Lucas e João. Marca o momento crucial no qual Jesus literalmente põe em ação suas ideias sobre o Reino de Deus vindouro. Ideias revolucionárias, que acarretam, nas palavras do historiador Reza Aslan, “uma completa inversão do sistema político, religioso e econômico do momento”. No Reino de Deus anunciado por Jesus, “a riqueza será redistribuída e as dívidas serão canceladas”. Não admira que tenha sido justamente tal incidente a levá-lo a ser crucificado pelas autoridades romanas. O conteúdo simbólico, no entanto, parece ir além. A ira do nazareno se direciona também contra a própria “entidade dinheiro”, contra os excessos de seu crescente prestígio. Insidiosamente tomando o pátio dos gentios, aninhando-se na própria morada de Deus, convertendo tudo à sua lógica niveladora, o dinheiro ameaçava tomar o lugar do sagrado, extrapolando a esfera que lhe é de direito – qual uma nova religião que fosse aos poucos asfixiando os valores da antiga religião da Judéia. Também contra isso parecia se insurgir Jesus. Moedas deveriam ser lançadas ao ar, o dinheiro desbancado, para que uma nova ordem pudesse surgir.

Esses pensamentos me vieram enquanto ouvia uma canção do último álbum de Tom Zé, Vira lata na via láctea. É um disco amargo, sem deixar de ser alegre e vital, que toca sem medo nas feridas do tempo (algo perplexo, qual São Tomé nas chagas do Cristo ressuscitado). Lá estão, enfileirados nas 14 faixas, os principais impasses da atualidade: da crise ambiental ao trabalho precário e sem sentido; da alienação infantil da geração Y à caduquice de velhas ideologias; da ausência de novas bússolas éticas ao feitiço do capitalismo e da entidade dinheiro. A canção à qual me referi no início do parágrafo chama-se Mamon (o termo bíblico que designa uma espécie de personificação da riqueza e do dinheiro). Ela começa com uma menção ao discurso do Papa Francisco, feito em maio de 2013, falando do “retrocesso da história” vivido por uma humanidade que se caracteriza, hoje, pela frenética devoção à Mamon. Mais do que um deus do dinheiro, Mamon é, na verdade, um anti-deus, capaz de criar um universo espiritual alternativo que leva a uma sinistra inversão de todos os valores. Sobre isso fala o discurso do Papa, que começa com uma breve análise do presente (“o medo e o desespero arrebatam os corações de numerosas pessoas, mesmo nos Países considerados ricos; a alegria de viver começa a diminuir”) e logo parte para o diagnóstico: “Uma das causas desta situação, na minha opinião, consiste na relação que temos com o dinheiro, ao aceitar o seu domínio sobre nós e sobre nossas sociedades. Assim, a crise financeira, pela qual estamos atravessando, faz-nos esquecer da sua origem primordial, arraigada numa profunda crise antropológica: a negação da primazia do homem! Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro defronta-se com uma nova e impiedosa imagem do fetichismo do dinheiro e da ditadura da economia sem fisionomia e nem objetivo realmente humano”. Tom Zé pegou a essência desse discurso e construiu sua canção. Quebrou a palavra “dinheiro” numa série de jogos rítmicos e fonéticos, num procedimento bem comum em sua poética, de modo a salientar seu inequívoco protagonismo de vilão. Dinheiro vem tiranizar. Dinheiro quer comandar. Dinheiro quer como está. Na hora essa mistura de religião e dinheiro me remeteu à entrada do Cristo (palavra de origem grega) no Templo, à sua extraordinária virada de mesa. Tom Zé e o Papa têm razão: dinheiro quer como está. Qualquer mudança almejada, terá de ser na direção contrária; em desafio à Mamon.

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