Ilustração: Carvall
Jonatas e o massacre no campo
Caso de menino de 9 anos assassinado este mês em Pernambuco mostra recrudescimento da violência nas áreas rurais
Jonatas Santos, de 9 anos de idade, foi assassinado no momento em que estava escondido embaixo da cama na noite do dia 10 de fevereiro, quando sete homens armados e encapuzados invadiram a casa da família na comunidade do Engenho Roncadorzinho, em Barreiros, a cerca de 110 km do Recife. Segundo a polícia, a principal linha de investigação indica que a morte teria sido motivada por retaliação ao fato de o pai do menino ter se recusado a vender suas terras para um grupo de traficantes da região, cujo líder, que já está preso por outros crimes, seria o mandante do homicídio. Os requintes de crueldade do caso são chocantes e trazem à tona um processo de recrudescimento da violência no campo e das disputas pela terra no país. O caso dá a noção do aumento da violência e do desmatamento em áreas de expansão da agricultura.
Entre janeiro e agosto de 2021, segundo dados parciais da CPT (Comissão Pastoral da Terra), 418 territórios sofreram “violência contra ocupação e posse”, incluindo os casos de expulsão de territórios, que parece ter sido a razão do ataque à casa de Jonatas. De acordo com a CPT, as expulsões de famílias de suas terras cresceram 153% em relação ao mesmo período do ano anterior. Em reforço a esses dados e à preocupação sobre como a violência no campo está associada, cada vez mais, à criminalidade organizada, enquanto o Monitor da Violência, parceria do G1 com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o NEV/USP, revelou esta semana que os crimes letais intencionais (homicídios dolosos, lesões seguidas de morte e latrocínios) caíram cerca de 7% no país em 2021, eles subiram 10,8% na região Norte do país, com exceção do Acre.
Esse movimento se justifica pelo fato de, segundo estudo divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública durante a COP26, em novembro do ano passado, a violência da região Norte, onde está a maioria dos estados da Amazônia Legal, apresentar um crescimento acentuado da violência nas áreas rurais e de floresta, o que o associa às dinâmicas que sobrepõem crimes ambientais e/ou fundiários e criminalidade organizada. É verdade que os conflitos fundiários fazem parte da construção do meio rural brasileiro.
O processo de formação da propriedade privada foi marcado pelo estímulo ao exercício da posse como fator de prova da ocupação das terras. O poder político das autoridades e seus aliados combinou-se à extensão das suas propriedades e posses. Com o acúmulo histórico de desinformação e descontrole sobre os limites dessas áreas, a tarefa do poder público de organizar a ocupação do território tem se tornado mais difícil e complexa, abrindo brechas para o controle territorial por parte de grupos criminosos e de pistolagem.
A atual fragilidade e o desmonte dos órgãos que fiscalizam questões fundiárias, o descontrole dos registros de imóveis nos cartórios e a conivência do estado com os crimes de ameaça, agressão e apropriação de patrimônio público explicitam a falta de prioridade e a visão do Estado sobre como lidar com essa agenda, em especial nas regiões de fronteira agrícola – e o caso Jonatas confirma esse diagnóstico. Soma-se a isso uma reforma agrária tímida, interrompida por ciclos de governo formados ou apoiados por grandes latifundiários, reforma essa que não permitiu a distribuição mais justa de terras e o fortalecimento da agricultura familiar no país.
Com isso, além dos recordes de produção e exportação de produtos agrícolas, o Brasil pode comemorar também as nefastas primeiras posições na concentração de terra e violência no campo. Um estudo da Oxfam de 2019 sobre a concentração de terras na América Latina apontou que apenas 1% das maiores propriedades contêm 45% da área rural do país. Do outro lado, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de propriedades, mas ocupam menos de 2,3% da área rural total. Enquanto isso, dados levantados pela Global Witness referentes a 2020 apontam que o Brasil foi o quarto país do mundo que mais matou ativistas ambientais, com 20 dos 227 assassinatos ocorridos no planeta naquele ano.
Como se não bastasse o processo histórico que levou a níveis indecentes de concentração de terra e violência no campo, as condições econômicas e políticas atuais têm levado ao agravamento dos conflitos. O mercado de terras está aquecido pelo aumento global dos preços dos alimentos e pela taxa de câmbio, o que estimula a abertura de novas áreas e a desocupação definitiva de áreas em conflito para a implementação de atividades agrícolas. Do ponto de vista político, no meio rural, a retórica belicista defendida por membros do atual governo tem forte adesão e serve de estímulo para uma visão mais agressiva de proteção da propriedade privada contra invasões, roubos de equipamentos e animais, ou estímulo à caça, por exemplo. É fácil encontrar discursos e campanhas de membros do primeiro escalão do Executivo ou de parlamentares em todo o país que afagam as suas bases ao defender a ampliação da posse e do uso mais ostensivo de armas de fogo contra as supostas ameaças.
É a mesma retórica, que soma ainda declarações contra a existência ou ampliação de Unidades de Conservação, Terras Indígenas e outros territórios coletivos de povos e comunidades tradicionais, que ajuda a explicar o questionamento sobre os limites dessas áreas e as tentativas crescentes de invasões e de grilagem de terras públicas. Segundo uma análise feita pelo Instituto Socioambiental a partir de dados do Inpe, o desmatamento em Terras Indígenas – um indicador perverso da especulação sobre terras públicas – cresceu 138% nos últimos três anos (2019 a 2021) em comparação com os três anos anteriores (2016 a 2018). Essa estratégia de gerar tumulto e insegurança no campo vem ganhando em sofisticação e ousadia, usando cada vez mais os instrumentos de políticas públicas e mudanças legislativas para promover a diminuição da proteção dos territórios.
Em estudo publicado na revista Land Use Policy, em 2020, pesquisadores do Ipam e do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará mostraram que há quase 50 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas na Amazônia sob responsabilidade da União e dos estados, dos quais 23% (11,6 milhões de hectaresa foram declarados irregularmente como imóveis rurais de uso particular no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (CAR). O interesse desse movimento é usar o registro em uma plataforma pública para tentar comercializar as áreas ilegalmente ou tentar comprovar a posse da área junto aos órgãos públicos e conseguir algum tipo de regularização fundiária no futuro.
Em outra frente de ataque, organizado com o meio político, a Assembleia Legislativa de Rondônia aprovou por unanimidade, em maio de 2021, uma Lei Complementar que reduziu os limites da Reserva Extrativista Jaci-Paraná e do Parque Estadual Guajará-Mirim em cerca de 170 mil hectares. Logo em seguida à aprovação pelos parlamentares, o Ministério Público do Estado ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. O Tribunal de Justiça de Rondônia analisou o caso e votou pela inconstitucionalidade da Lei Complementar, anulando seus efeitos em novembro de 2021. Apesar da decisão favorável nesse caso, há outras dezenas de Unidades de Conservação federais e estaduais que contam com projetos de lei para rever os limites ou mudar a categoria para permitir atividades menos restritivas na Amazônia.
O Congresso Nacional também tem sido palco de movimentos coordenados na lógica de agitar o ambiente em torno da regularização fundiária. A MP n. 910/2019 e o PL 510/2021 do Senado, que tratam da matéria, foram apresentados com forte apoio da bancada ruralista. Depois de uma Lei aprovada em 2009, com atualizações em 2017, os textos trouxeram a atenção de volta para as questões normativas da regularização fundiária. Longe de resolver as questões estruturais que retardam o avanço da agenda no país, como a estrutura dos órgãos de terra, a integração e a transparência dos dados de propriedade e posse e a segurança jurídica para a resolução dos conflitos e punição das violações, as propostas em debate no Congresso são acusadas por pesquisadores e ambientalistas de anistiar as invasões irregulares já cometidas e de incentivar novas invasões.
Essas mudanças, caso aprovadas, poderiam aumentar o risco de titular áreas em conflitos ao eliminar a necessidade de vistoria prévia à regularização e permitiriam casos de reincidência de invasão de terras públicas, pois autorizariam novas titulações a quem já foi beneficiado com a regularização e vendeu a área há mais de dez anos. Estudos realizados pelo Imazon mostram que os impactos dessas mudanças normativas poderiam levar a um desmatamento adicional entre 11.000 km2 e 16.000 km2 até 2027 e ameaçar pelo menos 19,6 milhões de hectares de áreas federais não destinadas na Amazônia, que passariam a ser ocupadas e desmatadas na expectativa de regularização.
Em suma, os números de violência contra agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais, que têm sido ameaçados e atacados na defesa dos seus territórios, ganham feições na morte de Jonatas, que, por sua vez, dá a dimensão da tragédia fundiária no meio rural brasileiro. Portanto, a queda dos assassinatos revelada pelo Monitor da Violência, por mais que deva ser louvada, está longe de chegar ao meio rural e é ainda muito tímida na tarefa de fazer do Brasil uma nação menos violenta e cruel.
Coordenador de uso da terra do Instituto Clima e Sociedade, ex-diretor do Ministério do Meio Ambiente e do ICMBio
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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