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    Encenação de A Moratória, peça de Jorge Andrade, em 1955. Faziam parte do elenco Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Milton Moraes, Elísio de Albuquerque e Monah Delacy Foto: Acervo Funarte/Reprodução

questões teatrais

Jorge Andrade pela lente de Antonio Candido

O dramaturgo tem sua obra analisada em um livro que reúne, pela primeira vez, os textos do crítico literário sobre teatro

Antonio Candido | 21 ago 2024_08h42
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Antonio Candido, o mais importante ensaísta e crítico literário brasileiro, dedicou poucos textos ao teatro. No grupo da revista Clima, ao qual ele pertenceu, a dramaturgia foi um objeto de pesquisa e análise principalmente do historiador e crítico teatral Décio de Almeida Prado, assim como o cinema tornou-se o tema por excelência de Paulo Emílio Salles Gomes.

Agora, pela primeira vez, os raros escritos de Candido sobre teatro foram reunidos em livro, pela editora Ouro sobre Azul. Com organização e apresentação do professor João Roberto Faria e posfácio de Celso Lafer, Sobre teatro traz dezessete textos, entre prefácios, críticas e rememorações, além de uma carta a Mário de Andrade sobre o libreto de ópera Café, do autor de Macunaíma. O livro será lançado no dia 2 de outubro, na Livraria da Travessa do bairro de Pinheiros, em São Paulo.

A seguir, a piauí publica o texto De A moratória a Pedreira das almas, em que Antonio Candido reflete sobre o teatro de Jorge Andrade (1922-1984). O artigo, até agora inédito em livro, foi escrito originalmente para o programa da peça Pedreira das almas, na montagem do Teatro Brasileiro de Comédia que estreou em novembro de 1958.

 

No teatro de Jorge Andrade há uma profunda vocação para dramatizar certas condições de existência. A realidade individual de cada personagem e o tipo de conflito que os organiza na ribalta possuem um solo nutritivo, uma base que lhes serve de ponto de reparo. Este é constituído pelas condições de existência, o conjunto de fatores que determinam a vida do grupo, influindo nos seus modos de ser e caracterizando-o como um todo.

Pelas suas origens, Jorge Andrade se tem voltado até aqui para um universo de experiência familiar, do grupo em que se formou e de que se vai libertando lentamente como artista. Grupo de fazendeiros que não acertam o passo com a evolução rápida e são acometidos, a certa altura, por mudanças nas condições de vida, surpreendidos por circunstâncias não previstas na sua concepção do mundo. É uma situação grupal tão caracteristicamente brasileira quanto a proletarização e a urbanização, que estão, como ela, alterando de repente a fisionomia do país.

O velho Quim, de A moratória, encarna por excelência essa situação de homem assaltado, de chofre, por circunstâncias que escapam à sua previsão, e que por isso tenta rejeitar. Rejeita negando o presente e nutrindo a crença numa volta impossível do passado, numa impossível recuperação das condições que se foram. Não é ele apenas que está em jogo, como indivíduo; mas um grupo, com a sua concepção de vida, a sua noção do mundo. Por isso, tenta ao mesmo tempo impedir que os filhos assumam com a vida compromissos novos, e adequados por certo às novas condições, mas, para ele, degradantes, por negarem a única realidade que é capaz de perceber. Realidade que se vai tornando cada vez mais mitificação do que passou sem remédio, pois na sua consciência bloqueada o mito retrospectivo é fonte e razão de ser da vida. Daí o baque trágico da derrota, que no último instante da peça sublinha a sua morte como homem de um grupo – encarnação dum ideal de existência.

Essa recapitulação da obra anterior é indispensável para compreender o significado de Pedreira das almas, pois esta descreve as raízes do mundo de Quim. Quase um século antes, certos homens abandonam as suas terras à busca de outras, mais livres e generosas. Lá se construiria um mundo novo, como na terra sem males dos mitos guarani, onde, segundo os versos de Mário de Andrade, tudo

São planos férteis que passam a noite dormindo

Na beira dum lagoão, calmo de garças.

Enorme gado pasta ali, o milho plumeja nos cerros

E os homens são todos bons…

Pedreira das almas se constrói à roda de semelhante utopia – dessas perenes, que alimentam o homem e compensam a sua dor graças à fabulação redentora. Ela se localiza num mundo seco e rupestre, regido por princípios hirtos, resistentes, ameaçados pela utopia na sua integridade. Encarnada em Urbana, sofre o embate da imaginação fluida de Gabriel, que tenta dissolver a sua dureza na fuga para a terra melhor. A peça se nutre desta antítese, e as intervenções do mundo exterior – o mundo legal de Vasconcelos – só fazem acirrá-la e precipitar o desfecho. Mariana é o ponto de encontro entre o ideal de fixidez e o de movimento, mas a morte de Urbana dá lugar a uma espécie de metempsicose que a prende definitivamente ao primeiro, enquanto Gabriel – ligado ao seu destino, guia, mas também instrumento de um grupo – deve sacrificar a plenitude pessoal à conquista das novas condições de vida. Ele é de certo modo a vida, opondo-se à nobre e desesperada teimosia do mundo morto das pedras. Simbolicamente, ele, vivo, está sepultado na pedra do esconderijo, enquanto Martiniano, morto, permanece exposto na cidade. Mas esta já é, na verdade, um túmulo. É pois necessário romper as peias sepulcrais – esconderijo e cidade – num movimento que o arrasta, à frente do grupo, para a terra sem males, cujos topônimos ressoam na invocação do coro.

Mas (aqui voltamos ao início do argumento) os espectadores de Jorge Andrade sabem que dessa paragem redentora brotará o malogro final d’A moratória. Quim talvez seja carnalmente estirpe de Gabriel – como tantos fazendeiros de café o são dos desbravadores. Mas espiritualmente é semente de Urbana, petrificado na terra que foi nova, encarnando a fixação das condições que acabam por sufocar, levando à negação do movimento e da vida. A posição de Urbana se esclarece, então, singularmente, como consciência de que a renúncia ao passado, às cinzas dos avós, às agruras de condições adversas, não significa libertação total, sendo apenas início de um novo ciclo, que, em paga da vida nova, conhecerá também a esclerose do envelhecimento, as durezas da iniquidade, a secura tumular das ideias que se transformaram em dogma.

Assim, o debate de Jorge Andrade se amplia singularmente quando encarado no conjunto das suas peças. Cada uma delas (e a próxima Vereda da salvação o mostrará noutro plano) tem enfrentado o drama do homem que compõe a sua existência de acordo com os padrões de que dispõe, sob o peso das condições que a determinam. E, em todas elas, sentimos que servem de ponto de partida aquele ritmo inelutável muito além dos dados da realidade que leva o homem a almejar a malograr, desejar de novo para novamente cair, num ciclo sem fim onde não há redenção. O único sentido aparece então nos próprios conflitos, que dão à consciência a certeza de que existe – ao mesmo tempo como resistência e processo – fidelidade e rejeição, cristalização pétrea e renovada fluidez.

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