Jorge de Guadalupe, e outros Jorges (São Jorge na porta lilás)
Não sei por que, comecei a escrever e me lembrei do mendigo que ficava sentado na porta de casa, aquela porta que era lilás, e ele ficava ali o dia todo, e às vezes, passava a noite lá, dormia sentado encostado na porta. Jorge era seu nome. Jorge era também o nome do meio do meu amigo Hermelino, que dividia a casa comigo. Aliás, o Hermelino Jorge Neder é que era o “verdadeiro” dono da casa. O contrato de aluguel estava em nome dele, que já ocupava o imóvel por uns 2 anos, quando eu me mudei pra lá. Pois bem, esse Jorge que vivia sentado no degrau da porta de casa, muitas vezes dormindo ali, ele era de Guadalupe, uma possessão francesa no mar das Antilhas.
Moreno escuro, quase preto, sempre com uma barba menos opulenta do que pretendia, sempre com um sorriso quase bobo, mas não bobo, sorriso do inocente perdido no mundo. Descobrimos que ele falava francês, e, de vez em quando pedíamos que ele dissesse alguma coisa nesse idioma. Entre um sorriso e outro, com uns dentes que seriam bonitos se fossem cuidados, ele resmungava: c’est une porte lilás… je m’apelle Jorge…
Era diabético, vivia com uma perna enfaixada. Apresentava uma aparência desgastada, vivendo assim na rua, mas você esquecia disso quando ele sorria. Quanta bondade naquele sorriso. Vivia sujo, vida de rua, vida sem o carinho tépido do chuveiro.
Nessa época, o Hermelino estava preparando seu disco, Como essa mulher ou Hermelino e o football music, acho que ele usava os dois títulos. Muitas noites, a gente ficava tocando e cantando, ouvindo música junto, essas coisas de músico mesmo. E quando ele tocava Pô amar é importante, eu ficava rosnando junto.
Ele também fazia uma versão muito legal do Noite cheia de estrelas, famosa seresta de Candido das Neves, imortalizada na voz de Vicente Celestino. Ficava uma bossa nova estilizada, acompanhamento de violão bem intimista, a letra ganhando um relevo especial, de repente revelando palavras parnasianas como “astral”, que agora eram gíria, com outro significado, que, aglutinado ao original, deixava a coisa muito interessante. E também o aspecto erótico, do “quero matar meus desejos, sufocá-la com meus beijos”… Quer dizer, a gente cultivava essa sensibilidade brasileira, fazendo outra leitura, mas sem asfixiar a original.
Nunca gostei de paródias com esses sentimentos. Por isso, nunca gostei da versão que os Mutantes fizeram para Chão de estrelas. Fizeram junto com o Rogerio Duprat, é claro. É a única coisa deles ( Mutantes e Duprat) que eu não curto… Sempre me pareceu óbvia e fácil, com um resultado imediato de escândalo que não me convencia. Mas vale a pena ouvir, né?
Uma noite, em junho, ou julho, fazia um frio terrível. Cheguei de madrugada, tiritando, e vejo o Jorge, encostado na porta, jogado ali no frio degrau, na noite gélida. Muito mal agasalhado.
Não consegui passar em branco, fiz ele entrar em casa. Que sorriso ele deu ao perceber isso, que era pra atravessar a porta lilás, ir pro outro lado, ser recebido, subir os degraus, ser acolhido. O Hermelino estava dormindo, não pedi permissão a ele, mas tinha certeza que ele faria igual.
Bom, como o Jorge estava sujo, dei uma toalha pra ele, e deixei a água do chuveiro bem quente. Ele tomou banho, contente, contente! Não me lembro se dei alguma roupa pra ele ou não… enfim, arrumei um cobertor e ele se deitou num colchão que servia de sofá, na sala.
Fiquei imaginando a cena, quando o Hermelino acordasse, e encontrasse o Jorge dentro de casa…
E, no dia seguinte, o que se há de fazer, o Hermê serviu café pra ele, avisou que ele precisava ir embora. Jorge entendeu. Então o Hermê lhe deu o cobertor, e continuamos nossa convivência usual com o de Guadalupe, aquele do mar das Antilhas, também chamado Jorge.
Ele continuou na porta lilás, incrustado lá … o que é que a gente podia fazer?
Nessa noite, quando eu saí, a lua brilhava cheia no céu.
Dava pra ver direitinho São Jorge em seu cavalo.
A lua, que coisa mais simbólica, não é?
Em 1969, a maior conquista da tecnologia na época, o homem descer e caminhar na lua, foi presenciada por mim e meus colegas no Hotel Barbosa em Curitiba, em uma televisão bastante precária.
O Hotel Barbosa era um muquifo, um pardieiro, sito à Rua Prefeito Moreira Garcez, perto da famosa Riachuelo, rua de perdição, no centro de Curitiba. Morei lá durante todo o ano de 1969, meu primeiro ano fora de casa. Havia um grupo bastante grande de amigos e conhecidos de Londrina morando lá. Éramos uma turma animada e divertida, na maior parte fazendo o cursinho para prestar vestibular. Lá vivemos muitas histórias, que espero um dia ter a chance de relatar.
No hotel, havia uma pequena portaria, um balcão de madeira. Depois do balcão, uma cadeira, uma prateleira com as chaves dependuradas, e uma cama, onde o porteiro da noite, conhecido por Palmeira, dormia. Havia ali uma pequena televisão preto e branco. Bom, era tudo branco e preto naquela época. A televisão em cores só chegou no ano seguinte, 1970, quando o Brasil foi tricampeão no México. Naquela televisão diminuta, quase sempre era necessário colocar bombril nas antenas, que saiam em V do corpo do aparelho, para conseguir a sintonia.
Era lá que nos reuníamos quando havia algum evento imperdível em transmissão televisiva. Um bando de estudantes espremidos, apoiados na portaria, e ao fundo, naquela telinha, a imagem do astronauta descendo a escada e pisando na lua. Com aquela roupa que lembrava um pouco um escafandro, de qualquer forma poderíamos pensar, talvez, em uma armadura. Uma armadura como a de São Jorge! Ah! Excelso santo guerreiro, astronauta da minha imaginação!
No Hotel Barbosa, havia um amigo, meu vizinho em Londrina, o Jorge Bastos. No ano anterior, havíamos furado os volume 2 e 3 do Chico Buarque. E quase furado o 1º LP do Gilberto Gil.
No volume 2 do Chico, havia uma canção muito interessante, A televisão, que tinha uma visão crítica das mudanças acarretadas pelo hábito cada vez mais esmagador de assistir tevê. E no do Gil, havia Lunik 9, uma canção indagadora, talvez ingênua, sobre a conquista da lua, eram momentos de iminência do mundo de hoje.
Nesse mesmo ano, 1969, um pouco mais tarde, assistimos ali a um festival de música, onde o Jorge Ben apresentou Charles Anjo 45. Lembro como o Jorge Bastos ficou entusiasmado com essa música, percebendo antes que eu, a genialidade de Jorge Benjor.
Tantos Jorges.
Um dia o Jorge sumiu da porta lilás. O Jorge, aquele, de Guadalupe, do mar das Antilhas.
Agora estou falando do Jorge-sem-chances, desafortunado, desditoso, incrustado na porta lilás. Foi esse Jorge que sumiu, desapareceu. Sumiu de repente, sumiu assim, desaparecido. E eu e o Hermelino imaginando o que será que aconteceu com ele? O que será que aconteceu….
Uma tarde, voltando do cine Comodoro, lendária sala de projeção em São Paulo, cinerama, onde havia ido assistir uma reprise de 2001 uma Odisséia no Espaço, estava ainda sob o impacto causado por essa obra, encantado com a forma como a música era utilizada no filme, especialmente a música de Gyorgi Ligeti. Pensando nos mistérios, envolvido por astronautas, naves, antas, ossos e um computador enlouquecido, retornava para casa, nessa tarde, ainda impregnado por essa grandeza, essa porta para o infinito.
Já da esquina vislumbro um vulto, sentado junto da porta de casa, a porta lilás. Pensei, é o Jorge, ele voltou, o Jorge. Onde será que esteve? Onde será…
Vou me aproximando, e sinto que alguma coisa está diferente. Me precipito, e percebo que ele teve sua perna amputada, aquela que vivia enfaixada. Que coisa triste.
Mas ele me recebe com o mesmo sorriso de antes. E ele sabe que, embora ele tente me oferecer seu sorriso, o mesmo de antes, ele, o Jorge de Guadalupe, xará do santo guerreiro, ele sabe, que seu sorriso, já não é mais o mesmo.
Pô amar é importante (Hermelino Neder) com Hermelino Neder e a football music
Noite cheia de estrelas (Candido das Neves) com Vicente Celestino
Chão de estrelas (Orestes Barbosa/Silvio Caldas) com Os Mutantes
A televisão (Chico Buarque) com Chico Buarque (gosto muito dessa canção)
Lunik 9 (Gilberto Gil) com Elis Regina…não encontrei a gravação original com o Gil…
Charles anjo 45 (Jorge Benjor) interpretação antológia de Caetano Velos e Jorge Benjor.
Partes de movimentos Kyrie e Dies irae de Gyorgy Ligeti Requiem, com fotos de Stanley Kubrick 2001 – Uma Odisséia no Espaço, e com alguns retratos de Kubrick, e de Ligeti ?Esta versão de 1963 é interpretado por: Chor des Bayerischen Rundfunks; Sinfonie Orchester des-Hessischen Rundfunks Frankfurt. Dirigent: Michael Gielen.
Comecei escrever na madrugada de segunda-feira, 23 de abril. Tarde da noite, insone, ligo a TV, e vejo no jornal que era dia de São Jorge! Está explicado.
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