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Jornalismo cordial

Imprensa é oposição?

Rafael Cariello | 06 nov 2018_07h30
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“Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos & molhados.” A frase de Millôr Fernandes tem sido repetida nas últimas semanas até por gente que ganha a vida publicando notícias, numa reação compreensível a gestos e declarações recentes do presidente eleito Jair Bolsonaro – capaz de fazer ameaças de retaliação ao jornalismo crítico, de cercear o acesso a entrevistas coletivas de quem lhe desagrada, e de insuflar ódio aos jornalistas entre seus seguidores mais radicais. Utilizada no tempo da ditadura, a tirada talvez fizesse algum sentido. Hoje, é um equívoco.

Imprensa não é oposição. Tampouco é situação, governismo. Jornalismo é – deveria ser – fiscalização do poder, busca da verdade. Não é seu papel servir a partidos, governos de turno ou forças políticas quaisquer, estejam elas no Planalto ou fora dele. Qualquer veículo ou jornalista que, nos próximos anos, se alinhe em sua atividade profissional ao PT, por exemplo, certamente fará oposição a Bolsonaro. Não se pode dizer que estará fazendo bom jornalismo.

No tempo em que havia armazéns de secos e molhados, é bem verdade, quase tudo que passava por jornalismo costumava se organizar segundo essa lógica dual. Ao escrever sobre o “tribuno da imprensa” Carlos Lacerda, nesta piauí, o jornalista Otavio Frias Filho notou ter sido no ambiente político crispado de meados do século passado “que Lacerda começou a brilhar no jornalismo de oposição e se destacar na política partidária, atividades compatíveis pelos hábitos da época”.

O político fluminense, continuava Frias Filho, “legou à linguagem corrente o termo ‘lacerdismo’, que resume um moralismo seletivo, praticado contra os adversários do momento, sobretudo na forma de campanhas jornalísticas devastadoras, baseadas em indícios frágeis e conclusões precipitadas”. Quase todos à época de Lacerda cometiam o mesmo pecado, afirmava no texto o diretor de redação da Folha, embora todos eles com menos paixão e talento que o Corvo.

“Há quem considere o jornalismo dos nossos dias engajado, parcial, faccioso, mas a imprensa do século passado não somente incidia nesses atributos, como costumava ostentá-los com desenvoltura. As apurações eram mais levianas, as reportagens eram opinativas, os jornais tomavam partido acintosamente e admitiam pouca ou nenhuma divergência em suas páginas.”

A Folha, como se sabe, teve papel decisivo na história da imprensa brasileira, contribuindo para tentar superar esse estado de coisas. Em nenhum outro jornal do país se constata tamanha pluralidade de opiniões como em suas páginas. Foi lá que, semana sim, na outra também, o cientista político Steven Levitsky nos alertou para os perigos de eleger o capitão reformado do Exército. “Retórica catastrofista”, “profetas do caos”, escreveu também na Folha o colunista Fernando Schüler, colega de disciplina do professor norte-americano, sobre os que viam riscos à democracia na eleição do candidato do PSL.

Uma semana antes do primeiro turno, o jornal cobrava com a mesma ênfase, de Haddad e Bolsonaro, compromissos democráticos, num editorial de primeira página. Dias depois, em sua coluna, Marcelo Coelho levantou a questão: qual seria a melhor maneira de manter o apartidarismo do jornal? “Significa isso tratar os dois candidatos como equivalentes e como igualmente descompromissados com a democracia?” Difícil encontrar outro veículo de comunicação no Brasil mais aberto à crítica e ao debate interno.

 

Ao implementar nos anos 80 o seu projeto moderno de jornalismo, a Folha certamente tinha como modelo o que se fazia nos melhores diários norte-americanos, ainda hoje menos ideologizados do que a imprensa europeia. Contava também com o exemplo de precursores de boas práticas entre nós, como o Jornal do Brasil e a revista Veja.

Gosto de imaginar, contudo, que Frias Filho, leitor de Sérgio Buarque de Holanda, estivesse à sua maneira se rebelando contra os hábitos de cordialidade na nossa profissão. A cordialidade é uma hipertrofia das relações pessoais, dos laços afetivos, que organizam o mundo e os comportamentos em detrimento da impessoalidade das leis, das formalidades, das regras de etiqueta. Nela cabem tanto a gentileza quanto a agressividade e a violência – umas e outras circunstanciais, alheias aos direitos e deveres que contêm os cidadãos e os individualizam.

O problema da cordialidade é que nas suas relações personalizadas sempre se inserem desequilíbrios de poder. Quem abre mão de regras impessoais corre o risco de se submeter aos caprichos daquele com quem se relaciona – ou, alternativamente, pretende fazer valer as suas vontades, as suas idiossincrasias, sem respeito pela individualidade alheia.

O jornalismo cordial se baseia em relações personalizadas, e por isso oscila. Pode num determinado momento dar a impressão de ser “de oposição”. Importa a aparência, e ele será severo com todos os candidatos à Presidência, por exemplo, mal lhes dando chance de apresentar suas ideias, durante uma entrevista – e nesse caso o leitor ou o telespectador sairá mal servido, sem conseguir saber exatamente o que pensa o político que acaba de ser interrogado. Mas esse mesmo entrevistador, quando surgir a oportunidade e mudarem as circunstâncias, saberá ser gentil com o poder, afável com o candidato vitorioso nas eleições.

A imprensa tem deveres – deveria ter – com seus leitores e telespectadores. Seu contrato é com os consumidores de notícias. É esse o melhor antídoto contra a cordialidade, contra as alianças políticas, perpétuas ou de ocasião. Um procedimento que foi bem sintetizado numa antiga campanha publicitária, em que a Folha anunciava ter “rabo preso com o leitor”. Não bastava a declaração de princípios, obviamente, e o jornal procurou criar mecanismos de freios e contrapesos internos para garantir o cumprimento de seus valores de jornalismo crítico, apartidário e plural: a obrigação de se ouvir o “outro lado”, a seção “erramos”, a vigilância do ombudsman, entre outros.

Ocorre que todo esse mecanismo é delicado. Precisa de certas condições, digamos, ambientais, condições que o ultrapassam, para continuar funcionando. E nada garante que elas continuarão a existir.

 

O problema, para um jornal como a Folha, não é apenas o das dificuldades econômicas que surgiram quando aquilo que no passado era escasso e ela vendia – espaço publicitário – se tornou incrivelmente abundante e barato, com o advento da internet. O problema é que a ambição de falar para um público amplo, uma comunidade política nacional relativamente unificada, relatando fatos que serão a princípio aceitos por todos, interferindo num debate político democrático e racional, hoje parece uma ideia fora do lugar.

As bases materiais e, na falta de uma palavra melhor, espirituais de um jornalismo moderno, como o defendido pelo Projeto Folha, estão em crise. A balcanização do mundo da opinião, promovida pelas redes sociais, incentiva a criação de veículos de comunicação ideologicamente mais marcados, que falem para um público específico. É o caso do Intercept e do Antagonista, para ficar em apenas dois exemplos. Uns e outros, cada um à sua maneira, se distanciam do tipo de jornalismo praticado pela Folha e pelo New York Times. São, de resto, mais baratos.

Como escreveu a jornalista Juliana Cunha, ao tratar do esgotamento das “condições de reprodução” da imprensa, estamos diante de “um daqueles casos quase bonitos em que Marx vem com uma pá de cal e logo avista Hegel chegando com as flores”.

Talvez a hora desses dois profetas não tenha chegado ainda – e quem sabe a melhor imprensa que conhecemos, cujo período de vida no Brasil mais ou menos coincide com o da Nova República, sobreviva. Mas talvez, também, não seja apenas um mal-entendido que tenha feito a frase de Millôr Fernandes voltar a circular. O mundo parece estar se tornando cada vez mais propício para os Lacerdas da vida do que para os Frias Filho – e isso é um problema para a democracia.

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