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    Ação do Kwai no BBB: há menos de um ano, os funcionários do app no Brasil tiveram de se demitir sem direitos para reiniciar sob outro CNPJ no dia 1º de abril (Imagem: Reprodução/TV Globo)

questões empresariais

Kwai fez funcionários pedirem demissão para não pagar direitos

Há um ano, a rede social chinesa orientou seu time no Brasil a pedir o desligamento para que fosse recontratado em um novo CNPJ

Pedro Pannunzio | 08 fev 2024_09h05
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No dia 23 de fevereiro de 2023, quinta-feira pós-Carnaval, todos os funcionários da rede social chinesa Kwai no Brasil (na época, perto de uma centena de pessoas) foram convocados para uma reunião. A empresa é a maior concorrente do TikTok no mundo e tem aqui seu maior público internacional: 48 milhões de inscritos, segundo a plataforma ComScore.

Parte da equipe participou de forma remota, pela internet, e a outra estava presente em uma sala na antiga sede da empresa, um prédio de coworking localizado entre as avenidas Faria Lima e Juscelino Kubitschek, o coração financeiro da cidade de São Paulo. O anúncio causou alvoroço. Era uma orientação para que todos pedissem demissão de forma voluntária da Adecco Recursos Humanos SA, uma terceirizada de origem suíça usada para iniciar a operação brasileira em outubro de 2019, para depois serem recontratados pela recém-criada Joyo Brazil. Com isso, abririam mão dos direitos trabalhistas que teriam se fossem demitidos por iniciativa do empregador.

A medida é ilegal. A CLT garante ao trabalhador a possibilidade de sacar o valor acumulado no FGTS, além de receber uma multa equivalente a 40% do montante, em caso de demissão sem justa, entre outros direitos. Quando a saída é voluntária, o valor fica retido na conta. Ou seja, os funcionários do Kwai estavam abrindo mão do que lhes é garantido por lei. Segundo dois profissionais que estavam presentes na reunião, alguns colegas logo levantaram questionamentos sobre a legalidade da decisão.

No mesmo dia, todos receberam um e-mail enviado pelo remetente institucional Global HROps. A piauí teve acesso a uma mensagem dirigida a todos os funcionários, que informava, em inglês, que a carta de demissão voluntária mencionada mais cedo na reunião deveria ser entregue em até cinco dias.

As datas tinham sido escolhidas a dedo no fim do ano anterior. Um documento que circulou entre o alto escalão da empresa no Brasil e na China traçava um cronograma, que foi de fato cumprido: “Considerar o feriado de Carnaval (18-22 de fevereiro); primeiro reunião geral, depois notificação por e-mail com mais detalhes.” Os questionamentos dos empregados também já tinham sido previstos. Para amenizar a revolta geral, um acordo deveria ser (e foi) proposto. Uma vez na nova empresa, em caso de demissão em um período de até seis meses depois da assinatura do novo contrato, o valor da multa do FGTS incluiria o montante acumulado pelos vencimentos relativos ao contrato anterior.

Em outros termos, se fosse desligado nesse período o trabalhador não poderia acessar todo o FGTS, mas, ao menos, receberia os 40% da multa de forma integral. “Os serviços prestados junto à Adecco Brasil serão reconhecidos pela Joyo Brazil por meio da assinatura de uma side letter [acordo paralelo] para não prejudicar os interesses dos empregados”, diz outro trecho do documento a que a piauí teve acesso. Ali também havia o pedido complementar feito aos funcionários: “Esperamos que todas as pessoas entrem de forma voluntária na Joyo Brazil.”

Outra mensagem obtida pela piauí mostra orientações específicas sobre o processo: o pedido de demissão deveria ser datado para o dia 1º de março, de modo que o aviso prévio fosse cumprido entre os dias 2 e 31 do mesmo mês. No dia 1º de abril, os funcionários foram registrados na Joyo Tecnologia. A piauí teve acesso a uma cópia da minuta do novo contrato de um profissional, que não será divulgada neste texto para preservar sua identidade. Todos funcionários e ex-funcionários ouvidos pela reportagem pediram que seus nomes não fossem revelados, pois temem retaliação.

A rede social Kwai chegou ao Brasil no final de junho de 2019, como parte do plano de internacionalização do aplicativo, que já estava consolidado como um gigante na China, onde o grupo Kuaishou foi fundado. 

Atualmente, a empresa experimenta sua fase de maior visibilidade no país, com o patrocínio da atual (e bem-sucedida) edição do Big Brother Brasil, da TV Globo, em um pacote de 34 milhões de reais, de acordo com o site Meio&Mensagem, que dá direito a envelopar provas cruciais para a dinâmica do reality show. A operação brasileira só se tornou uma prioridade para a companhia asiática em 2021, quando uma estratégia agressiva de crescimento foi adotada, culminando nesses 48 milhões de inscritos, que representam o dobro de usuários do X, o antigo Twitter, no país. Até agora, a adesão está mais concentrada nas classes C e D, nas regiões Norte e Nordeste. O BBB faz parte do plano para expandir esse mapa demográfico.

Para reforçar sua equipe, o Kwai recrutou do mercado nomes consolidados em outras empresas de tecnologia. Profissionais que trabalhavam em empresas como o Google e, principalmente, o TikTok foram atraídos com ofertas salariais atrativas, em boa parte dos casos 30% a 40% maiores.

Como parte desse crescimento, era preciso resolver uma questão formal, com um CNPJ próprio, que facilitaria o acordo com parceiros brasileiros, como as marcas que quisessem anunciar na plataforma. A abertura da Joyo, a empresa nacional, só aconteceu em 2023, e com isso a indenização prevista para os funcionários cresceu. De acordo com um executivo ouvido pela piauí que trabalhava na empresa naquela época, estimava-se internamente que o valor das indenizações somadas girasse na casa dos 500 mil dólares, com os quais a companhia não quis arcar, optando pela ilegalidade da a orientação para a demissão “voluntária” em massa.

A piauí teve acesso a um arquivo de texto que foi criado para que os funcionários depositassem suas dúvidas e questionamentos em relação ao processo em curso. Havia uma coluna para que o empregado se identificasse e outra destinada às perguntas. “Kuaishou está nos pedindo para solicitar uma demissão para, depois, sermos contratados pela Joyo. Vocês percebem que isso é ilegal?”, questionou uma gerente de vendas. “E aqueles que não aceitarem essa imposição?”, questionou um profissional, de forma anônima.

Um ex-diretor da empresa contou à piauí que fez a mesma pergunta a sua superior hierárquica, baseada em Pequim. A resposta, segundo ele, foi algo na linha: “Assine ou você está demitido.” Outro trabalhador que trabalhava como executivo da empresa naquela época disse que questionou o vice-presidente de recursos humanos, também baseado na China, sobre a ilegalidade da ação. Mais uma vez, não houve margem para discussão: quem não se demitisse não seria recontratado pela Joyo Tecnologia.

Menos de quatro meses depois do início do novo contrato, uma leva de funcionários com salários altos foi demitida. A piauí conversou com um desses profissionais, que está preparando uma ação trabalhista contra a empresa. “Saí de um emprego em que estava bem estabelecido e fui demitido por falta de planejamento deles [Kwai]. Eu me senti enganado”, disse.

Nas trocas de e-mails em que os trâmites burocráticos eram discutidos, um profissional da Adecco aparece em cópia. Procurada pela piauí, porém, a empresa declarou: “Ao recebermos as cartas de demissão apresentadas pelos empregados, legítimas expressões voluntárias de vontade, não nos restava outra alternativa do que o processamento das referidas demissões.” Em outras palavras: se todo mundo decidiu sair ao mesmo tempo, só poderia acatar esse desejo.

O Kwai enviou a seguinte resposta:

“No início de suas operações no Brasil, o Kwai utilizou a Adecco para a formação de seu time local, cumprindo estritamente a legislação vigente, que permite esse tipo de contratação. Após constituir sua figura legal e estabelecer de forma concreta sua operação no País, a companhia ofereceu aos colaboradores a possibilidade de se transferir para a nova empresa e manifestar a forma de rescisão que seria adotada junto à Adecco, recebendo todas as verbas rescisórias conforme determinado em lei. Esse tipo de ação é comum a empresas estrangeiras que se estabelecem no Brasil e foi feita absolutamente de acordo com a legislação vigente, de forma a assegurar um melhor ambiente de trabalho e uma gestão mais próxima e eficiente. A companhia considera má-fé qualquer inferência contrária a este fato.”

Como a nota não diz se houve demissões a pedido ou por decisão da empresa, a reportagem voltou a fazer esse questionamento e perguntou também se foram pagas as multas, quantas pessoas foram demitidas, quantas foram recontratadas, se foram pagas as verbas indenizatórias, como a multa de 40% relativa ao valor acumulado no FGTS, e se os funcionários puderam acessar o valor que tinham acumulado no FGTS. A assessoria de imprensa do Kwai respondeu, falando em “decisão voluntária”:

“Sim, todos os funcionários receberam indenização obrigatória conforme exigido pelas leis aplicáveis ​​no Brasil e com base em sua decisão voluntária”.

A professora de direito da PUC-SP e advogada trabalhista Fabíola Marques, diz que o ato foi “ilegal porque vai contra os princípios básicos do direito do trabalho. Você está fraudando um pedido de demissão que, na prática, não existe. Se não existe vontade do empregado em rescindir o contrato, você não tem um pedido de demissão, mas uma fraude.”

O Kwai é alvo de um inquérito no Ministério Público Estadual de São Paulo para apurar os fatos levantados por reportagem da edição de janeiro da piauí, corroborados por uma denúncia que recebeu, que apontam uma série de irregularidades da multinacional em sua operação brasileira.

A reportagem detalhou essas práticas, como a encomenda para agências de conteúdo de posts viralizantes que incluíam notícias falsas a respeito de eleições presidenciais e de vacinas e material sabidamente pirata. Mostrou que a rede social clona contas de apps como o TikTok, reproduzindo em sua plataforma perfis e posts que usuários nunca pretenderam veicular no Kwai. E também que impulsionou em 2022 candidatos à Presidência da República, o que contraria as regras do Tribunal Superior Eleitoral – fez isso primeiro com Jair Bolsonaro e depois com Lula. Procurado, o Kwai disse que a reportagem, baseada em documentos e entrevistas, não apresentou provas sobre os apontamentos, mas não negou ter cometido qualquer dessas atitudes. Anos atrás, o aplicativo foi banido nos Estados Unidos pela App Store e pelo Google Play por uma dessas práticas: reproduzir conteúdo clonado de outras plataformas.

Em 24 de janeiro, o site Núcleo publicou uma reportagem que mostra que o aplicativo está “infestado de conteúdo que sexualiza menores”, a partir de dois meses de monitoramento da plataforma. No dia 29 do mesmo mês, uma reportagem do site da agência Aos Fatos trouxe a manchete: “Investigado pelo MPF, Kwai lucra com lives que expõem crianças a assédio e chantagem.” A matéria registra uma série de casos de menores que aparecem em vídeos ao vivo, muitas vezes em interações de teor sexual com homens adultos.

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