ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO
Laudos, versões e milícia
Documentos e imagens da casa onde miliciano Adriano da Nóbrega foi morto contradizem relato de policiais sobre operação
Pouco antes das 9h da manhã do domingo (9), a polícia baiana alcançou o ex-capitão da PM do Rio Adriano Magalhães da Nóbrega, miliciano foragido havia um ano. Acusado de comandar o Escritório do Crime, braço armado da milícia de Rio das Pedras, na Zona Oeste carioca, e investigado no inquérito do assassinato da vereadora Marielle Franco, Nóbrega estava escondido num sítio em Palmeiras, distrito de Esplanada, norte da Bahia. Ao avistar a aproximação da tropa formada por setenta policiais do Bope, o Batalhão de Operações Especiais da Bahia, Nóbrega entrincheirou-se dentro da casa, fechando a porta. A partir desse momento, as incongruências entre a versão dos policiais, o laudo cadavérico e as imagens da cena da morte fazem a narrativa oscilar entre falhas operacionais e indícios de execução.
Na versão da polícia, três dos setenta homens que participavam da operação invadiram a casa utilizando um aríete para arrombar a porta. Um deles estava com um escudo blindado, e os outros dois portavam um fuzil e uma espingarda. Nóbrega teria atirado duas vezes no escudo com uma pistola calibre 9 milímetros. Os policiais revidaram o que consideraram uma “injusta agressão”, como relataram no boletim de ocorrência. Dois disparos atingiram o ex-capitão, um no pescoço e outro no tórax.
Os manuais policiais preveem que, para casos em que o alvo está completamente cercado, sem possibilidade de fuga, a melhor estratégia é vencê-lo pelo cansaço, forçando-o a se entregar. “Invasão tática, apenas quando há refém, o que não era o caso”, diz o coronel reformado da PM paulista José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Não foi o que ocorreu. Para Silva, a invasão do imóvel foi precipitada e desnecessária. “Polícia não tem prazo nem pressa, [precisa] tão somente fazer serviço legal, técnica e eticamente correto.”
Analisado por um perito sob a condição do anonimato, o cenário da morte revela outra história. Há uma grande poça de sangue na sala da casa, próxima à porta de acesso aos quartos, indicando onde Nóbrega foi assassinado. Também há sangue borrifado na parede branca, mas a uma altura pequena, de poucos centímetros. No chão, uma trilha de sangue, indicando que um corpo foi arrastado, e gotas de sangue em uma única direção, da esquerda para a direita, são sinais de que o ex-capitão estava deitado quando foi morto. Fotos do cadáver divulgadas pela revista Veja indicam que os disparos foram efetuados a curta distância; também revelam um ferimento na cabeça e marcas do lado esquerdo do peito, sinais que poderiam indicar um coronhada – os ferimentos não constam no relatório da perícia divulgado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Em nota, o Departamento de Polícia Técnica negou que os disparos tenham sido feitos a curta distância e que o ferimento na cabeça possa ter sido causado pela queda de Nóbrega após ter sido atingido.
Embora os dois projéteis que atingiram Nóbrega tenham transpassado o seu corpo, só um deles foi localizado e apreendido – os projéteis são importantes para definir a distância entre os policiais e a vítima e também as posições de cada um na cena. Por fim, como o ex-capitão “aparentava estar vivo”, o Bope optou por levá-lo para o hospital São Francisco, em Esplanada, onde, segundo os policiais, ele já chegou morto. Para o legista consultado pela piauí, porém, é certo que Nóbrega teve morte instantânea devido à quantidade de sangue no chão – no laudo do Instituto Médico Legal consta que ele morreu em decorrência de anemia aguda. Por isso o corpo deveria ter sido mantido intacto, para facilitar o trabalho da perícia.
Além de investigado no caso Marielle Franco, Nóbrega também foi incluído na investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro que apura se houve “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro na época em que ele era deputado estadual. Segundo o MP, contas bancárias de Nóbrega foram usadas para transferir dinheiro para Fabrício Queiroz, então assessor de Flávio e suspeito de comandar o esquema de devolução de salários. Além disso, pelo menos dois familiares de Nóbrega trabalharam no gabinete de Flávio.
A pouco mais de cem metros do sítio onde Nóbrega estava escondido, de propriedade do vereador Gilson Lima, o Gilsinho de Dedé (PSL), um vizinho acompanhou a operação – a polícia disse que era um cerco a um assaltante de banco em fuga. O vizinho contou que minutos depois, enquanto dialogava com dois policiais encapuzados, ouviu a primeira sequência de disparos, com “cinco ou seis tiros”. Neste momento, os agentes se deslocaram para a casa onde Nóbrega estava escondido. Cerca de dois minutos depois, outra sequência de tiros foi ouvida e, “mais um ou dois minutos depois disso”, a terceira sequência seria disparada, afirmou o vizinho. “Sentaram o dedo [no gatilho]. O que houve foi uma simulação de reação. Com esse tempo [entre uma rajada de tiros e outra], não teve troca de tiro”, disse o morador à piauí, sob condição de anonimato, na última quinta-feira, 13. Outro vizinho também afirmou que houve “um tempo grande entre os tiros”, mas disse ter escutado apenas duas rajadas de disparos, sendo “uma fraca com dois ou três tiros e depois uma forte com vários tiros”.
No sítio do vereador foram encontrados 13 aparelhos celulares, usados pelo miliciano para se comunicar. Completamente violada pela circulação de curiosos e jornalistas por lá nos últimos dias, a cena da operação que eliminou Nóbrega só foi isolada na quinta-feira (13) de manhã. A pedido do delegado do caso, um funcionário do vereador do PSL fechou o portão que dá acesso ao local.
Depois da operação policial, o medo paira sobre Esplanada. A maioria dos moradores, abordada em suas casas, reage com aspereza e evita falar sobre o caso. Esse medo, disse um deles, é fruto de ameaças que estariam sendo feitas aos vizinhos por policiais locais. “Disseram que vamos ter o mesmo fim do miliciano se falarmos demais para a imprensa toda hora”, afirmou.
Na tarde desta sexta-feira, dois jornalistas da Veja foram detidos por policiais militares da Bahia quando tentavam localizar o fazendeiro Leandro Guimarães, testemunha fundamental para esclarecer a morte de Nóbrega. Segundo a revista, os jornalistas foram abordados e revistados por policiais de armas em punho. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública afirmou que moradores avisaram sobre dois homens rondando a região. Disse que eles foram levados até a delegacia e, após se identificarem como jornalistas, liberados.
Guimarães é importante para a investigação porque, segundo a polícia, a primeira investida da operação foi numa propriedade sua, o Parque de Vaquejadas Gilton Guimarães, a cerca de 15 km do centro de Esplanada. Só depois os policiais foram até o sítio em Palmeiras. Guimarães foi preso por porte ilegal de três armas encontradas pelos policiais, mas teve a prisão relaxada após pagar fiança e está em liberdade mediante utilização de tornozeleira eletrônica. Em depoimento à polícia, admitiu que conhecia Nóbrega há dois ou três anos. Guimarães disse à polícia que não sabia da relação de Nóbrega com o crime e que o abrigou por causa do interesse do ex-capitão de adquirir propriedades na região. Contou que, entre as alternativas de compra, apresentou o sítio do vereador e que o miliciano o obrigou a levá-lo até lá, adotando o local como esconderijo.
O delegado Marcelo Sansão, diretor do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco), aguarda o resultado do laudo residuográfico, que dirá se Nóbrega de fato disparou arma de fogo naquela manhã de domingo. Também espera os exames feitos no escudo do Bope e nas armas apreendidas, além das conclusões do laudo feito no local no dia da operação, após a remoção do corpo do miliciano. “Vamos confrontar as informações testemunhais com os laudos para entender se houve legalidade na ação daquele dia”, afirmou Sansão.
A polícia investiga se Nóbrega estava lavando dinheiro na Bahia. Os investigadores solicitaram a diversos órgãos informações sobre movimentações financeiras do miliciano, considerando que o interesse dele em adquirir propriedades rurais em Esplanada aparece em vários depoimentos. A hipótese da migração do Escritório do Crime ou outro grupo criminoso para a Bahia também é analisada pela polícia, disse o delegado. “Estamos investigando se há lavagem de capital em curso. A movimentação de novos grupos criminosos na Bahia nos preocupa. Estamos de olho em movimentações mais expressivas de recursos, porque no dia a dia Adriano costumava pagar tudo em dinheiro vivo para que não houvesse registro em cartão de débito ou crédito”, explica Sansão. O promotor que acompanha o caso, Dario José Kist, não quis se pronunciar.
Diversos indícios apontam que Nóbrega já tinha a informação de que era alvo de uma operação conjunta entre as polícias fluminense e baiana. A polícia da Bahia trabalha com a hipótese de vazamento da operação devido à relação que Nóbrega, ex-capitão e atirador de elite do Bope do Rio, tinha com policiais. O miliciano já havia sido localizado pela polícia baiana no dia 31 de janeiro em Costa do Sauípe, região luxuosa do Litoral Norte da Bahia, mas conseguiu fugir, deixando a mulher e a filha para trás. O corpo de Nóbrega foi transferido para o Rio de Janeiro, mas ainda não houve enterro. A família solicitou a cremação do cadáver, mas é necessária autorização judicial para cremar qualquer corpo de alguém morto por causas violentas. A Justiça proibiu a cremação.
Conhecido por circular diariamente pelos estabelecimentos comerciais de Esplanada, o vereador Gilson Lima não tem sido visto na cidade desde a operação policial. Funcionários do vereador informaram que ele não estava em casa no final da manhã de quinta-feira. No sítio, a vizinhança relata que, antes mesmo da morte de Nóbrega, dificilmente o vereador era visto por lá. A movimentação na propriedade costuma ser restrita a dois empregados que alimentam o gado e transportam animais para comercialização. Na quinta-feira, após a entrada do sítio ser fechada a pedido do delegado, o local permaneceu sem movimento. O vereador não atendeu às ligações da equipe da piauí nem respondeu às várias mensagens. Em nota, afirmou que não conhece Nóbrega e não sabia que ele estava escondido em seu sítio. Disse ainda que solicitou à Secretaria de Segurança Pública da Bahia brevidade nas investigações. “É importante esclarecer o que fazia um criminoso procurado pela justiça na minha propriedade”, afirmou, dizendo-se à disposição das autoridades para esclarecer o caso.
É jornalista freelancer na Bahia
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
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