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Leviatã e os lobos

O que o discurso de vitória revela sobre a estratégia de manutenção no poder de Bolsonaro

Miguel Lago | 29 out 2018_12h22
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O pensador Thomas Hobbes é conhecido por formular a tese segundo a qual, no estado natural, em que todos somos livres, “o homem é o lobo do homem”, ou seja, o homem está disposto a massacrar o outro para sobreviver e prosperar. Por essa razão, afirma que para viver em sociedade é essencial que cada homem delegue sua liberdade a um soberano – o Leviatã – que garantirá a segurança de todos os homens, evitando portanto que um devore o outro.

A fundamentação teórica do Estado westphaliano, modelo ocidental, baseado em instituições, corresponde ao soberano descrito por Hobbes e garantidor dos direitos fundamentais dos indivíduos. De acordo com essa lógica, são as instituições estatais que impedem que venhamos a cair na barbárie completa do “estado natural”. A dualidade do discurso da vitória de Bolsonaro feito ontem à noite dá sinais de que teremos tanto o Leviatã quanto o “homem lobo do homem”.

O discurso não parecia ser o de um chefe de Estado, mas de um youtuber comentarista da vida política nacional. Reiterou seus ataques à “grande mídia” e a seus adversários políticos, citou mal e porcamente o único versículo da Bíblia que conhece e fez declarações nacionalistas vazias. Esse foi o primeiro discurso de Bolsonaro, transmitido pela internet, distribuído em seus canais nas redes sociais. No vídeo, agradece aos “internautas” que o acompanharam nos últimos quatro anos. Trata-se de um vídeo para a militância ou – em termos bolsonaristas – para seus seguidores.

Seu segundo discurso foi para a televisão, radicalmente diferente do primeiro, em que afirma seu compromisso com a Constituição, a democracia, a liberdade e compromisso com o mercado. Discurso vazio e superficial, mas que deu a impressão de Bolsonaro ser um político qualquer, sem muitas radicalidades. O Bolsonaro da tevê não dá medo. O da internet sim. E qual Bolsonaro irá governar? Ambos.

 

A dualidade de discurso aplicada ao longo da campanha – ódio nas redes sociais/respeito declarado às instituições na imprensa – ao que parece será mantida de agora em diante. Do equilíbrio tênue entre as duas instâncias de comunicação – broadcast e multicast – dependerá a longevidade de seu governo.

Para não ganhar a antipatia de todo o establishment, será fundamental aparentar ser um político como outro qualquer que não representa uma ameaça direta às instituições, ao mercado, às liberdades individuais. Ao mesmo tempo, se quiser manter os seguidores e militantes apaixonados à sua disposição precisará manter o discurso de ódio.

Um governo que não tem propostas, nem pessoas qualificadas para resolver os problemas do país, precisar nomear inimigos da nação, aos quais imputa responsabilidade pelas mazelas do país, e combatê-los fortemente do ponto de vista discursivo. O governo não poderá perseguir judicialmente os “inimigos” declarados e correr o risco de ser repreendido pelas instituições. Mas, ao demonizá-los nas redes diante de seguidores fanáticos, caberá a estes a liquidação dos ditos “inimigos”. Será a porta aberta para a violência política descentralizada debaixo do pleno respeito às instituições. Seus seguidores serão os lobos, enquanto o Leviatã é respeitado.

No discurso dirigido aos internautas, Bolsonaro insiste repetidas vezes na questão da “verdade”. Após citar o Evangelho de São João fora de contexto, ele diz: “Nós temos que nos acostumar a conviver com a verdade.” Prossegue: “Não existe outro caminho se quisermos realmente a paz e a prosperidade.” E, enfim, termina: “A verdade tem que começar a valer dentro dos lares.” Apesar de confuso, o que ele parece nos anunciar é a emergência de um novo regime de verdade, onde a única fonte é a autoridade: a autoridade dentro do lar – do homem sobre sua família – e do Presidente sobre a nação. É claro que esse tipo de analogia só funcionaria em regimes autoritários que obedecem ao culto de personalidade do soberano.

Ora, para uma parcela significativa da população – seus seguidores – existe um culto à personalidade equivalente aos das grandes ditaduras.  A prova está em que Bolsonaro tem um título equivalente ao de qualquer outro ditador, coisa nunca vista antes no Brasil. Se Franco era chamado de “generalíssimo”, Hitler era o “Führer”, Mussolini era o “duce” e Mao era, “o grande timoneiro”, Bolsonaro é o “mito”. Nenhum de nossos ditadores teve um apelido, nem Getúlio, nem os militares, nem os oligarcas da República Velha.

Essa parcela da sociedade continuará sendo alimentada pelas fake news, pelos seus discursos de ódio, tendo na figura do “mito” a sua única fonte de verdade. Portanto, para essa população, pouco importa a qualidade das políticas, pois Bolsonaro sempre terá uma explicação para sua incompetência, e a horda de fãs acreditará mais nele do que nos jornais.

É fundamental que Bolsonaro não expanda seus tentáculos mediáticos para a integralidade daqueles que votaram nele. Se tiver um canal direto e constante por WhatsApp com os mais de 50 milhões de brasileiros que nele votaram, terá a capacidade de converter todos esses ao seu culto à personalidade e garantirá sobrevivência política indefinida.

Para manter-se no poder, Bolsonaro não precisará fazer um bom governo. Terá apenas de saber equilibrar o respeito ao Leviatã com o insuflamento dos lobos, um discurso insosso de respeito às instituições no broadcast e um discurso de ódio aos adversários no multicast.

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