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    Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

questões orçamentárias

O homem que diz “dou” não dá

Arthur Lira acusa o Supremo Tribunal Federal de descumprir o acordo para a liberação de emendas parlamentares. Mas o que acontece é o contrário

Breno Pires, de Brasília | 05 dez 2024_17h26
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Em seus treze anos de Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) cultivou a fama de cumpridor de acordos. Mas os acontecimentos recentes de Brasília mostram que, se tem essa qualidade, o presidente da Casa a reserva somente para os companheiros do Centrão.

Patrono do orçamento secreto, Lira participou em agosto de uma reunião no Supremo Tribunal Federal. Dias antes, o ministro Flávio Dino havia mandado suspender o pagamento de todas as emendas “pix” e impositivas aprovadas pelo Congresso, diante da constatação de que bilhões de reais estavam sendo distribuídos sem que se soubesse quem os havia solicitado e com qual objetivo. A decisão causou enorme chiadeira, e a reunião foi combinada para colocar panos quentes na crise. Estavam lá, além de Lira, todos os ministros do STF, alguns ministros do governo Lula e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Lira, confrontado com uma série de escândalos orçamentários, topou um esboço de acordo para imprimir maior transparência ao uso do dinheiro público. Uma nota conjunta divulgada naquele 20 de agosto anunciou que, dali em diante, as emendas de comissão (isto é, aquelas aprovadas nas comissões temáticas do Congresso) seriam “destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos de comum acordo entre Legislativo e Executivo, conforme procedimentos a serem estabelecidos em até dez dias”. Já as emendas de bancada (no caso, as bancadas estaduais) precisariam ser “destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição da bancada, vedada a individualização”.

Dino, relator das ações que tratam do orçamento secreto no STF, considerava fundamental que o Congresso aprovasse uma lei para cumprir o que foi combinado. Há poucos dias, foi em tese o que aconteceu. Deputados e senadores aprovaram, e Lula sancionou, a Lei Complementar 210, que estabelece novas regras para a execução de emendas. Dino, diante disso, liberou o pagamento das emendas que estavam suspensas desde agosto. Impôs, no entanto, algumas condições para garantir maior transparência na aplicação dos recursos.

Foi o suficiente para que Lira voltasse à carga. “O Congresso aprovou uma lei, que foi sancionada dando transparência e rastreabilidade. Logo em seguida veio uma outra decisão remodelando tudo o que foi votado. Causa muita intranquilidade legislativa”, disse o presidente da Câmara, num evento do portal Jota. Seus confrades do Centrão ameaçam não aprovar o pacote fiscal de Fernando Haddad se as exigências de Dino continuarem de pé.

Basta folhear a Lei Complementar 210, no entanto, para perceber que as exigências não são mero capricho. O texto, na prática, institucionalizou mecanismos do orçamento secreto. Deu verniz de legalidade a práticas que, nos últimos três anos, o Supremo reiteradamente enquadrou como inconstitucionais. O tribunal, nas ações que tratam do orçamento secreto, determinou que as indicações desse tipo devem ser feitas pelos integrantes das respectivas comissões, devidamente identificados, depois de um debate coletivo. Já a lei aprovada diz:

Art. 5º As indicações das comissões, nos termos regimentais, terão o seguinte rito:

I – após a publicação da lei orçamentária anual, cada comissão receberá as propostas de indicação dos líderes partidários, ouvida a respectiva bancada partidária, as quais deverão ser deliberadas em até 15 (quinze) dias.

Ou seja: quem escolherá os beneficiários das emendas de comissão serão os líderes partidários, que não fazem parte das comissões e são mais próximos, pela natureza do cargo, do presidente da Câmara. A nova lei tira o poder de decisão dos integrantes das comissões e não resolve o repisado problema da transparência, pois não prevê a identificação do deputado ou senador que solicitou o repasse a seu líder partidário. Lira, portanto, descumpriu o acordo e o fez com anuência de Pacheco e do governo.

A lei perpetua o esquema revelado na reportagem O sequestrador, publicada pela piauí em novembro. O deputado José Rocha (União-BA), que preside a Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara, afirmou à revista que quem decide as emendas de sua comissão é Lira. “Eu apenas retransmito a relação que recebi do presidente”, disse Rocha. “Eu recebo dele, os ofícios… Tudo foi feito de lá. A planilha… Eu sou contra isso.” A deputada Adriana Ventura (Novo-SP), integrante da Comissão de Saúde da Câmara, relata experiência similar. “Nas comissões que eu participo, como na saúde, nunca houve nenhum tipo de deliberação colegiada”, afirmou. “O que eu sei, objetivamente, é que vem de cima um ofício com várias indicações, e quando eu falo de cima, eu digo da presidência da Casa, junto com os outros líderes. A lista chega pronta, o presidente da comissão assina, e ponto.”

Rocha relatou ter sido achacado por Lira para redirecionar verbas a Alagoas, domicílio eleitoral do presidente da Câmara. Rocha diz que, a certa altura, Lira ameaçou removê-lo do cargo caso não fizesse o que lhe era pedido. A depender da lei aprovada pelo Congresso, assim continuará sendo com Rocha e com os presidentes das demais 46 comissões permanentes da Câmara e do Senado.

 

Dino, na decisão de segunda-feira (2) que liberou as emendas, apontou o problema. Afirmou que a lei aprovada pelo Congresso “cria uma espécie de ‘reserva de autoria’ para as ‘emendas de comissão’, atribuindo exclusividade aos líderes partidários para a sua indicação”. E ressaltou: “Por óbvio, não há qualquer óbice a que os líderes partidários sugiram emendas às comissões da Câmara e do Senado. No entanto, não há fundamento constitucional para que detenham monopólio na indicação.” O ministro fez uma exigência: que toda indicação de emenda feita às comissões contenha o nome do parlamentar ou da instituição que a indicou. Além disso, condicionou a liberação das emendas pix (isto é, emendas individuais sem finalidade definida) à aprovação de um plano de trabalho pelo ministério responsável.

Dino também criticou o fato de que, até hoje, o Congresso diz não ser possível identificar quem indicou o quê no orçamento secreto ao longo dos últimos anos. “Cogitando ser verdadeira a reiterada afirmação das advocacias do Senado e da Câmara de que é impossível recompor plenamente o itinerário percorrido para a execução pretérita de parte expressiva das emendas parlamentares, temos a gravíssima situação em que BILHÕES DE REAIS [grifo do ministro] do Orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos, na medida em que tais informações, até o momento, estão indisponíveis no Portal da Transparência ou instrumentos equivalentes.” E depois: “Registro ser pouco crível que a execução de bilhões de reais do dinheiro público tenha se dado sem ofícios, e-mails, planilhas, ou que tais documentos existiram e foram destruídos no âmbito dos Poderes Legislativo ou Executivo.”

O ministro citou, inclusive, a reportagem da piauí. Afirmou que “uma possível explicação” para não divulgarem os nomes é “o mecanismo relatado recentemente em matéria da Revista Piauí, em que há declaração dos deputados José Rocha (União Brasil – Bahia) e Adriana Ventura (Novo – São Paulo), no sentido de que as Comissões não têm autonomia para, de fato, aprovar os destinos das ‘emendas de comissão’, configurando curioso paradoxo”.

Mas esse não é o único problema da lei. O acordo firmado em agosto previa a “vinculação das emendas parlamentares à receita corrente líquida, de modo a que elas não cresçam em proporção superior ao aumento do total das despesas discricionárias”. Essa medida, que funcionaria como um freio para o crescimento dos gastos com emendas, foi ignorada pelo Congresso. Tudo continua igual. Além disso, a lei complementar não atende o pedido do Supremo de identificar cada deputado e senador que propõe as emendas de bancada. Dino escreveu, na decisão tomada esta semana, que “todo o processo orçamentário precisa estar devidamente documentado para o integral cumprimento das regras constitucionais de transparência e de rastreabilidade, o que inclui: o(s) parlamentar(es) ‘solicitante(s)’ e os votos que resultaram na decisão colegiada”.

A Lei Complementar 210, aprovada sob a espada de Lira, afronta a autoridade do Supremo. E ao que tudo indica, o governo, emparedado pelas chantagens do Congresso, não fará muito para garantir o cumprimento do que foi combinado. Pelo contrário: a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou um recurso pedindo a revisão de trechos da decisão de Dino – entre eles, os que tratam da aprovação de um plano de trabalho para liberação das emendas e da identificação dos parlamentares que as indicaram. Jorge Messias, ministro da AGU, argumenta que a lei aprovada pelo Congresso já fez o suficiente. “Nós entendemos que a lei, que sempre foi fruto do diálogo entre os Poderes, reflete o que discutimos durante o processo de negociação. Pedimos que o STF esclareça tudo isso, sem sobressalto. Nossa expectativa é que o Dino se manifeste sobre nosso pedido”, afirmou, em entrevista ao jornal O Globo.

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