Era início da noite do dia 14 de março, quando Milena Martins chegou em casa. Ela passara o dia na casa de um amigo sem o carregador de celular e havia horas não acessava a internet. Foi direto para o computador, entrou no Twitter e tomou conhecimento da morte da vereadora Marielle Franco no bairro do Estácio, no Centro do Rio. “Algumas pessoas diziam ‘morreu pelas mãos dos bandidos que ela defende’”, lembrou. Ela conta ter se enfurecido com as críticas contra a vereadora e disparado de volta na rede social: “Marielle morreu depois de denunciar abuso dos militares e a galera tá falando ‘morreu pelas mãos dos bandidos que ela defende’. Acho que ela morreu pelas mãos dos bandidos que você defende, amigo”, escreveu. Depois, Martins tomou um banho, desligou o computador e foi dormir.
Milena Martins é carioca e tem 17 anos. Entre os amigos, é conhecida apenas pelo apelido Mia. Na internet, se apresenta como @badgcat, “bad girl cat”, uma referência ao Instagram da cantora Rihanna, “bad girl Riri”, cantora negra de música pop. Martins é natural de Queimados, na Baixada Fluminense, e mora com os pais, os dois entre os 60 anos de idade. No dia seguinte à morte de Marielle Franco, ela acordou para descobrir que seu tuíte sobre o assassinato da vereadora fora replicado mais de 34 mil vezes pelos outros usuários. Era o tuíte mais citado entre os 3,573 milhões de comentários na rede sobre o assunto.
Na manhã seguinte, um ato na Câmara dos Vereadores fora marcado para homenagear Marielle durante o seu velório. Milena Martins não pôde ir, cuidava em casa da avó de 95 anos e estava também sem o dinheiro da passagem. Cinco dias depois um novo ato estava programado na Cinelândia. “Eu precisava ir em algum”, Martins falou. Acompanhada de uma amiga, enfrentou as mais de duas horas de trem que separam Queimados do Centro do Rio de Janeiro.
“Eu me sinto em um outro país quando ando na Zona Sul!”, exclamou Martins para a amiga, enquanto atravessava depressa a avenida Rio Branco em direção ao ato. Em seguida, corrigiu-se: “e olha que aqui nem é Zona Sul ainda”. Ela é negra e tem os cabelos e a sobrancelha tingidos de vermelho. Vestida com camiseta, short e tênis, cabelo amarrado em um turbante e usando óculos escuros, ela caminhava atenta aos prédios e às pessoas ao redor. “As estruturas, a cor da pele das pessoas, muda muito” explicou.
A jovem nasceu na Maternidade Bom Pastor, em Queimados. Sua mãe biológica, uma moça negra de Ubá, Minas Gerais, foi ao Rio para dar à luz a Martins e entregá-la para adoção. Os pais adotivos são um casal de brancos. O pai é aposentado e estudou até a sétima série; a mãe é dona de casa e estudou até a segunda série. Ela também interrompeu os estudos, por opção, ela explica. “Não sentia que a escola colaborava em nada para mim, eu decidi estudar em casa e me encontrar sozinha. Meus pais entenderam”, disse.
É ela quem escolhe as matérias que vai pesquisar. Em casa, tem um caderno onde anota os assuntos que acha que precisa se aprofundar. No momento, a diferença entre o feminismo negro e o feminismo branco e as questões de gênero, classe e raça são os tópicos que tem se dedicado. “Coisas que eu não vou aprender na escola e que são muito importantes”, falou. A ferramenta que usa para estudar é a internet. “Aprendi a falar inglês sozinha usando a cultura americana como referência”, contou.
O ato na Cinelândia foi o primeiro que conseguiu comparecer. Se considerava ainda muito jovem, em junho de 2013, para participar de protestos. Sobre orientação política, afirma não se identificar nem com a esquerda nem com a direita cariocas. “Não dizem nada sobre mim, são todos burgueses da Zona Sul, lá na favela tem a nossa lei”, disse. Até 2018, nunca tinha votado em um pleito eleitoral (“e nem pretendia!”).
Este ano, contudo, completa 18 anos e, obrigada a fazer sua estreia nas urnas, entende que precisa estudar política para saber em quem votar. O maior obstáculo, explica, é o palavreado político. “O Michel Temer aparece na televisão e fala que vai ‘reduzir o teto’, você não entende nada. As palavras são difíceis. O que é Previdência? Nunca ouvi essa palavra”, disse rindo.
A todo tempo, a jovem checa o celular por novas mensagens. Ela faz cerca de vinte postagens por dia no Twitter, a rede social que mais utiliza. Além do perfil @badgcat, ela também usa o Instagram, um aplicativo de fotos e vídeos, e o Medium, onde publica textos sobre engajamento político. Há algum tempo, ela abandonou o Facebook. Martins explica que entre seus amigos a rede social é considerada ultrapassada. “As notícias chegam muito antes no Twitter. A página inicial do Facebook não me interessa, tudo que leio ali já sei pelo Twitter que está acontecendo”, disse. Ela mantém, contudo, o aplicativo Messenger, a caixa de mensagem do Facebook que atualmente pode ser usada separadamente.
Sua conta no Twitter está ativa desde 2012, no entanto ela só começou a utilizar mais frequentemente a rede depois de 2015. Ela tem cerca de mil e quinhentos seguidores, centenas de vezes menos do que os perfis do @midianinja e do @psoloficial, costumeiros polos de concentração do debate político na internet. Um estudo publicado na piauí do professor Fabio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo, constatou que, nas discussões sobre o assassinato de Marielle Franco, o acontecimento político mais comentado nas redes sociais do país, os comentários extravasaram as bolhas ideológicas tradicionais e trouxeram ao centro perfis periféricos como o de Milena Martins.
Até pouco tempo, ela não conhecia a vereadora Marielle Franco. Soube dela quando surgiram as denúncias da vereadora contra os abusos da Polícia Militar no Rio de Janeiro. Encantou-se com a identificação da vereadora com o movimento feminista negro. Martins conta não militar há muito tempo contra o machismo e o racismo. “Eu não me entendia como uma mulher negra por meus pais serem brancos e terem tido dificuldade de me ensinar sobre o racismo”, explicou.
Quando era pequena, no colégio, sofreu com outras crianças que implicavam com seu cabelo e tom de pele. A solução dos pais foi alisar o cabelo da menina de 6 anos. O episódio é assunto até hoje nas conversas de família. No ano passado, em uma terapia com a mãe, uma psicóloga avaliou que, toda vez que Martins quisesse falar sobre racismo, os pais deveriam ouvir. “Foi muito importante, nossa relação está muito saudável agora”, ela explicou.
No ano passado, depois de anos alisando o cabelo, ela resolveu raspar a cabeça. Não gostava dos cabelos alisados e ainda precisava evitar ir à praia para não estragar o tratamento. “Raspei e meu cabelo começou a crescer duro. Virei negrinha”, contou com um sorriso. Passou a estudar também a história da África e conta ter se identificado ao ponto de começar a usar roupas tradicionais africanas, como o turbante.
Há pouco tempo, ela se relacionou pela primeira vez com um homem negro. “Eu só me atraía por homens brancos mais velhos, que me olhavam como se eu fosse a Globeleza”, disse. O rapaz era um jovem estudante da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ela conta ter se sentido à vontade com ele. “Quando eu ficava com brancos, sentia vergonha da cor do meu corpo, se iriam gostar. Com ele, não teve nada disso”, falou. Ela diz agora se relacionar majoritariamente com homens negros.
Na noite em que tuitou sobre Marielle Franco, a @badgcat conquistou mais de 800 novos seguidores. Mais usuários começaram a interagir com seu perfil e doze meninas brancas convidaram Martins para um grupo de WhatsApp para aprenderem com ela tudo que tinha a dizer sobre o racismo. “Eu expliquei o que significava cada coisa, a conversa está rolando até agora”, disse. O grupo é uma amostra do que ela gostaria de fazer no futuro. “Eu quero poder levar informação para pessoas sem acesso”, afirmou.