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Louise Brooks – paixão de montador

Estiveram em São Paulo, participando do simpósio A Pós-Produção Criativa, um grupo de montadoras e montadores cujos créditos incluem, entre outros, filmes de Ingmar Bergman, François Truffaut, Bernardo Bertolucci, Terry Gilliam e Kevin Macdonald – diretores que contaram com a colaboração decisiva de profissionais que continuam, em certa medida, anônimos. Quem saberia que Sylvia Ingemarsdotter, Yann Dedet, Roberto Perpignani, Mick Audsley e David Charap montaram filmes como Sonata de outono, Fanny&Alexander, Saraband, A história de Adele H., A noite americana, O último tango em Paris, Os 12 macacos, O mundo imaginário do Dr.Parnassus e A vida em um dia.

| 02 dez 2011_08h50
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Estiveram em São Paulo, participando do simpósio A Pós-Produção Criativa, um grupo de montadoras e montadores cujos créditos incluem, entre outros, filmes de Ingmar Bergman, François Truffaut, Bernardo Bertolucci, Terry Gilliam e Kevin Macdonald – diretores que contaram com a colaboração decisiva de profissionais que continuam, em certa medida, anônimos. Quem saberia que Sylvia Ingemarsdotter, Yann Dedet, Roberto Perpignani, Mick Audsley e David Charap montaram filmes como Sonata de outono, Fanny&Alexander, Saraband, A história de Adele H., A noite americana, O último tango em Paris, Os 12 macacos, O mundo imaginário do Dr.Parnassus e A vida em um dia.

Além deles, outros tantos profissionais estrangeiros e brasileiros estiveram reunidos na Cinemateca Brasileira, de 9 a 12 de novembro, transmitindo sua experiência e debatendo os desafios da era digital, nesse encontro idealizado e coordenado por Maria Dora Mourão, professora de montagem da Escola de Comunicações e Artes da USP, e Roger Crittenden, montador e consultor da National Film and Television School, em Londres. 

Foi uma ocasião excepcional, sequência de encontros anteriores havidos na Polônia, Cuba, Yokohama, e em Londres, na qual, além de acompanhar em pessoa, foi possível assistir ao vivo, via streaming, palestras e debates que abrangeram desde rememorações nostálgicas até relatos de experiências pessoais e análises de viés teórico ou técnico.

No dia da abertura, Roger Crittenden, também autor de Fine Cuts:The Art of European Editing (Oxford: Focal Press, 2006), reunindo entrevistas de cerca de 20 montadores e diretores, falou da “relação virtual” existente entre montadores e atores – tema inesperado, que tratou de forma original, procurando suprir a falha dos simpósios anteriores que, segundo ele, “deixaram de reconhecer um aspecto sem o qual nossa vida na ilha de edição seria não só redundante mas sem sentido. Esse aspecto é o trabalho, a contribuição dos artistas”. 

Crittenden falou em “artistas” (“performers”), categoria mais ampla do que a dos atores e atrizes, referindo-se a “todo ser humano diante da câmera, quer seja profissional, amador ou esteja simplesmente representando a si mesmo em um documentário. Sejam atores, cantores, dançarinos, comediantes, políticos ou criminosos sem importância – às vezes até animais.” O que Crittenden reconheceu e procurou definir foi “o que o ator, em sentido amplo, nos dá de presente para fazermos o que quisermos – ou em total confiança, ou simplesmente sacrificando a si mesmo para o bem maior do filme. Muitas vezes, ignoram o que nós editores somos capazes de fazer para o trabalho deles, para bem ou para mal.”

A questão dos editores, para Crittenden, é saber o que “usar como indicador ou medida de ‘autenticidade’, ‘consistência’ ou mesmo de tom adequado e qualidade correta para evitar que os espectadores rejeitem o que veem e ouvem, e continuem dispostos a acreditar na ficção de todo filme, uma vez que mesmo o melhor documentário é apenas uma verdade parcial. Até mesmo editores experientes são seduzidos pelas máscaras diabolicamente sedutoras que as pessoas apresentam, quer sejam atores treinados profissionalmente ou não. É difícil não ser inebriado pela mágica da atuação, perdendo aquela margem de distanciamento necessária para julgar o que vai também seduzir a plateia.”

Tomando Louise Brooks (1906-1985) por referência, Roger Crittenden contou ter ouvido dela que os melhores atores são dançarinos por que “o processo de aprender a contar histórias com o corpo todo, como eles são treinados a fazer, resulta numa atuação interna completa do ser corporal, não apenas através da fala e da expressão facial.”

Depois de um ano de correspondência e de ter conquistado a confiança de Louise Brooks, Crittenden foi primeira viagem aos Estados Unidos com o projeto de fazer um filme sobre ela. Recebido calorosamente em Rochester, onde vivia semi-reclusa, “o dia que se seguiu”, ele conta, “foi uma montanha-russa emocional especialmente depois que dividimos um litro de gin que ela me mandou buscar meia hora depois que cheguei. A enorme tigela de spaghetti à bolonhesa que cozinhou para mim ajudou a absorver o gin, mas ainda assim achei difícil manter a lucidez no jôgo da verdade que ela insistiu em jogar. Ainda tenho respeito demais pela memória dela para revelar outros detalhes do nosso encontro.”

Crittenden saiu dessa visita convencido que o filme planejado nunca seria feito. “Anos antes ela tinha escrito sua autobiografia, Naked on My Goat, e a jogara no incinerador. Sentia que revelava demais e se não podia ser totalmente honesta, achava que não valia a pena”. Crittenden sentiu o mesmo com relação ao projeto do seu filme sobre ela, apesar de Richard Leacock tê-la filmado depois (Lulu em Berlim, de 1984), falando principalmente da relação com G.W.Pabst, e dela ter escrito artigos sobre pessoas que conheceu e com as quais trabalhou” (Lulu in Hollywood. Arrow Books, 1987).

Inteligente e autoconfiante demais para ser aceita pelos chefes dos estúdios, quando voltou a Hollywood, aos 24 anos,  depois de ter feito dois filmes com Pabst, Caixa de Pandora e Diário de uma perdida, ambos em 1929, Louise Brooks acabou sendo escalada para um pequeno papel em Overland Stage Raiders (Bandidos encobertos), um western B, com John Wayne, lançado em 1938. Para ela foi o sinal de que deveria encerrar a carreira. “Fomos privados”, disse Crittenden, “das atuações de que ela era capaz por chefes de estúdio arrogantes e de antolhos”. 

De todas as personalidades daquela era, porém, segundo Kevin Brownlow (The Parade’s Gone By…, University of California Press, 1968) foi Louise Brooks quem “emergiu triunfante. Ela se tornou objeto de idolatria para milhares que são moços demais para se lembrarem dela nos filmes silenciosos, e que baseiam sua admiração em mostras de cinematecas e cineclubes. Os fã-clubes de Louise Brooks surgiram no mundo todo. Seus jovens admiradores veem nela uma atriz brilhante, uma personalidade luminosa, e uma beleza sem paralelo na história do cinema.” 

Em A tela demoníaca (Paz e Terra, 2003), num trecho sempre citado, Lotte H. Eisner se refere ao “milagre de Louise Brooks […] uma atriz que não precisava ser dirigida, mas era capaz de atravessar a tela fazendo surgir a obra de arte graças à sua mera presença”.

Foi vendo Caixa de Pandora e Diário de uma perdida, além de muitos outros filmes, que Crittenden “gradualmente absorveu a verdade mais profunda sobre o ritmo – editar na verdade é uma questão de dar conta de vários ritmos simultaneamente. Em retrospecto, vejo que na maioria das minhas montagens eu me satisfazia em conseguir criar o que chamaria de mono-ritmo, tomando em geral minha deixa do ator e me apoiando em cortes suaves. Percebo agora que isso provavelmente era contraproducente. […] trabalhar com essa variedade de ritmos visuais e sonoros só é possível através de uma percepção aguda que é incorporada à sensibilidade do editor e é preciso ficar vigilante para evitar ser tragado por um ritmo dominante que pode ser errado usar. Também sem essa percepção de todos os aspectos se torna mais difícil alterar os ritmos internos sem fazer cortes ruins, tanto estéticos quanto dramáticos. Não resta dúvida que a base dessa compreensão depende de sensibilidade para dramaturgia e atuação.”

 

Crittenden encerrou sua palestra lamentando estar afastado há anos demais da edição, por sentir que “poderia se dedicar a um trabalho sério com nova percepção”. E antes de exibir um trecho do último e pouco conhecido filme europeu de Louise Brooks, Prix de Beauté (1930), pediu que a plateia observasse “os ritmos dela e se a edição os apoiava ou não. Tomem esse pequeno exemplo do trabalho do ator para lembrar quanto a edição depende deles,” concluiu.

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