minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    O deputado federal Doutor Luizinho (Progressistas-RJ) durante sessão na Câmara dos Deputados Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

anais do parlamento

Luizinho, o generoso

Nome do Centrão para o Ministério da Saúde, deputado destinou 300 mil reais de dinheiro público para empresa de amigo

Luigi Mazza | 03 jul 2023_12h00
A+ A- A

Quando 2023 começou, Rafael Licurci perdeu uma de suas fontes de renda. O advogado carioca é dono da Gávea Locações, uma empresa de aluguel de carros sediada no Rio de Janeiro. Nos últimos quatro anos, teve um faturamento sólido alugando sedãs e SUVs para o deputado federal Dr. Luizinho (Progressistas-RJ), por um preço que variava entre 5 mil e 6 mil reais por mês. Mas tudo acabou quando, convidado a assumir a Secretaria de Saúde do estado do Rio, Luizinho se licenciou da Câmara dos Deputados em janeiro. Hoje, por pressão de seu partido, ele é cotado para assumir o Ministério da Saúde, pasta que entrou na mira do Centrão e atualmente é comandada pela pesquisadora Nísia Trindade.

Num Congresso de 594 parlamentares, cada qual com dezenas de assessores, o deputado fluminense foi o único até hoje que contratou a Gávea Locações. Nunca procurou outra locadora em seus quatro anos de mandato. Tinha preferência por Corollas e pelo imponente Toyota Hilux SW SRX. Entre 2019 e 2022, destinou 328,5 mil reais de sua cota parlamentar – que custeia as atividades do dia a dia no Congresso – para alugar os carros oferecidos pela empresa de Licurci.

Licurci, por coincidência, é amigo de Luizinho há anos. Trabalhou inclusive como advogado em sua campanha a deputado federal, em 2018. Também por obra do acaso, Licurci abriu a locadora de carros em 25 de outubro daquele ano, duas semanas depois do primeiro turno, quando Luizinho foi eleito. Essa história foi relatada pela piauí em 2020, como um entre tantos casos de deputados que beneficiam amigos e parentes com dinheiro da cota parlamentar. No momento em que a reportagem foi publicada, Licurci tinha faturado em torno de 100 mil reais alugando carros para Luizinho. Nos anos seguintes, 233 mil reais se somariam à fatura.

Licurci e Dr. Luizinho se conheceram em Nova Iguaçu, onde o deputado começou a carreira. Enquanto fazia seu ganha-pão como ortopedista e dono de clínica, Luizinho era cooperado da Unimed Nova Iguaçu, empresa para a qual Licurci advogava. Em 2013, o médico foi convidado pelo então prefeito Nelson Bornier para assumir a Secretaria de Saúde da cidade. Pesou a influência familiar: Luizinho – que se chama Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior – é filho de Luiz Antônio de Souza Teixeira, cidadão ilustre de Nova Iguaçu que já foi vereador e presidiu a Câmara Municipal.

Dali em diante, por onde Luizinho andou, carregou Licurci consigo. Em 2016, o jovem político deu um salto na carreira: trocou a secretaria municipal, em Nova Iguaçu, pela secretaria estadual de Saúde, nomeado pelo então governador Luiz Fernando Pezão. Em seu primeiro mês à frente da pasta, Luizinho indicou Licurci para um cargo comissionado, onde ele permaneceu até agosto de 2018. Depois disso, o advogado trabalhou na campanha de Luizinho e, em seguida, resolveu que era hora de alugar carros. O negócio prosperou nos anos seguintes – mas não foi o único.

 

Não é ilegal que parlamentares contratem empresas de amigos. Na Câmara, por exemplo, só há restrições quando se trata de familiares ou servidores: um deputado não pode usar a cota parlamentar para contratar empresa na qual ele próprio, ou algum de seus parentes até o terceiro grau, ou um servidor da Casa tenha participação. Quanto aos amigos, vale tudo. Essa brecha facilita a ocorrência de esquemas como a rachadinha, em que o parlamentar contrata serviços fictícios ou superfaturados só para receber de volta parte do dinheiro.

Não por acaso, casos como o do Dr. Luizinho são muito comuns. Um de seus conterrâneos, o deputado Juninho do Pneu (UNIÃO-RJ), é campeão na modalidade. Gastou, em 2020, 51 mil reais alugando um Toyota Hilux na empresa de um ex-assessor com quem trabalhou em Nova Iguaçu. Além disso, o pai e o cunhado de Juninho têm suas próprias locadoras e faturaram 522 mil reais alugando veículos para outros deputados federais entre 2019 e 2020.

Diante desse descontrole do uso da cota parlamentar, a Câmara decidiu, tardiamente, endurecer as regras: em agosto de 2020, proibiu também o nepotismo cruzado – ou seja, deputados não poderiam mais contratar empresas de parentes de outros deputados. Desde então, o pai e o cunhado de Juninho do Pneu não conseguiram novos contratos. Depois da reportagem da piauí, o deputado também não voltou a contratar a empresa de seu ex-assessor. Mas poderia. Não há, até hoje, regra ou fiscalização que impeça o uso da cota parlamentar para favorecer empresas de amigos.

Exemplo disso é Joel Novaes da Fonseca. Homem de confiança de Jair Bolsonaro, até o ano passado ele era assessor especial no Palácio do Planalto. Enquanto esteve na função, sua mulher e sua filha, proprietárias da Locar1000, fizeram uma pequena fortuna alugando carros para deputados – a maioria deles da base bolsonarista, como Bia Kicis (PL-DF) e Hélio Lopes (PL-RJ). Em 2021, a empresa mudou de nome (passou a se chamar NovaCar), mas manteve a fidelidade dos clientes. Nos últimos quatro anos, faturou 1,8 milhão de reais de cota parlamentar. Hoje, que não tem mais cargo no governo, Fonseca passou a empresa para seu próprio nome. Continua ganhando milhares de reais por mês.

 

Se deixou de faturar com o aluguel de carros, tudo indica que Rafael Licurci, amigo de Luizinho, já encontrou outras fontes de renda. O advogado tem um portfólio variado de investimentos: é proprietário de quatro empresas que prestam serviços diversos, de consultoria empresarial a aluguel de imóveis. Em 2016, ele fundou a Ralic, uma distribuidora que, segundo a descrição apresentada à Receita Federal, faz de tudo um pouco: comercializa roupas, água, cerveja, alimentos, remédios, equipamentos odontológicos e até produtos de informática.

A criação da Ralic coincide com a chegada de Dr. Luizinho – e, por tabela, do próprio Licurci – à secretaria estadual de Saúde do Rio. Dali em diante, a empresa prosperou. Faturou ao menos 2 milhões de reais vendendo remédios para cidades fluminenses. Entre 2018 e 2019, por exemplo, fechou três contratos com a prefeitura de Búzios que, juntos, somavam 1,4 milhão de reais. Com a prefeitura de Quissamã, foram 547 mil reais no mesmo período. Em Queimados, em 2020, foram 571 mil reais.

Depois de tanto faturar, Licurci vendeu a Ralic em janeiro de 2022. A partir desse momento, a empresa viveu um novo boom de negócios, agora diretamente com a Secretaria de Saúde do Rio. Firmou 106 contratos desde o ano passado, num valor total estimado em 5,3 milhões de reais. A boa fase continuou este ano, quando Luizinho assumiu a pasta. Desde janeiro, a Ralic abocanhou 1,2 milhão de reais em contratos com o governo.

Há poucas semanas, uma reportagem da TV Globo revelou que a Polícia Federal está investigando a Relic por lavagem de dinheiro. Segundo a emissora, um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) aponta que, entre 2017 e 2018 – quando Luizinho ocupava o cargo de secretário de Saúde do Rio –, entraram 11 milhões de reais na empresa de Licurci. No mesmo período, a empresa repassou 2,8 milhões para a conta de Licurci, valor incompatível com a renda do advogado, segundo o Coaf. Parte expressiva do dinheiro – quase 1 milhão de reais – foi sacado em espécie.

Além disso, segundo a TV Globo, Licurci teria atuado como representante do Instituto de Medicina e Projeto (IMP), uma OS (organização social) que obteve milhões de reais em contratos com prefeituras do Rio. Em março, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro anunciou a abertura de inquéritos para investigar duas empresas contratadas pelo município de Nova Iguaçu com dispensa de licitação – entre elas está o IMP.

Procurados pela piauí, Dr. Luizinho e Rafael Licurci disseram não ter conhecimento sobre as investigações. O advogado alegou, por meio de nota, que não responde mais pela Ralic e que nunca teve relações com o IMP. Já Dr. Luizinho, a despeito de sua evidente proximidade com o advogado, respondeu: “posso afirmar categoricamente que nunca tive conhecimento de que o sr. Rafael Licurci possuía uma empresa de medicamentos.” O deputado reconheceu que Licurci é seu amigo, mas disse: “não tenho como ter ciência sobre toda a vida comercial de um amigo”.

Licurci não respondeu à piauí se acha adequado receber centenas de milhares de reais de dinheiro público alugando carros para seu amigo deputado. Dr. Luizinho, por outro lado, foi mais claro: disse não ver “qualquer tipo de conflito de interesse” em contratar a empresa do amigo. A Gávea Locações, segundo Licurci, tem uma frota de sete veículos e continua apta a prestar serviços em todo o país. Até agora, porém, nenhum outro deputado se interessou em contratá-la.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí