Eduardo Castelo, criador da festa V de Viadão, no evento que produziu para homenagear Madonna Crédito: Victor Curi
Madonna, a mãe
O que explica a relação dos homens gays com a rainha do pop?
Era final de tarde no Recife, em algum momento da década de 1990. Um jovem, de pé diante da televisão, tentava imitar os movimentos das mãos de Madonna no videoclipe de Vogue. Seu corpo estava completamente entregue à música, suando sobre o tapete da sala, quando percebeu o barulho da porta sendo aberta. A figura que apareceu em seguida foi a do seu pai, com o rosto exprimindo surpresa e constrangimento. “Ele soltou uma risada meio sem jeito e eu, em absoluto silêncio, pausei a música”, lembra o funcionário público Maurício Carvalho, de 50 anos.
Essa cena foi reproduzida, com variações de tempo e de espaço, em muitos lares brasileiros. Os protagonistas sempre foram esses meninos um pouco diferentes que depois se tornariam adultos e idosos homossexuais. O choque de ser flagrado dançando na infância fica na memória de tantos homens gays porque a situação expõe impiedosamente o que eles tentam esconder de suas famílias: os seus quadris soltos, pulsos desmunhecados, ombros que se movem com delicadeza. Nessas lembranças, geralmente, o silêncio constrangedor é antecedido pela voz feminina de uma diva da música. E foi a voz dela, Madonna, que levou tantos garotos a ficarem absortos em algum nível de transe.
Aconteceu pela primeira vez para Maurício Carvalho quando ele tinha 15 anos. A Rede Globo transmitia o show Ciao Italia: Live from Italy, no qual Madonna apresentava o repertório do disco True Blue e os sucessos da sua até então curta carreira. Primeiro, o que chamou a atenção do adolescente foi a imagem daquela mulher de corpo sublime, com músculos saltando das pernas e braços e roupas coloridas contrastando com a pele pálida ao ponto da fosforescência. Só depois Maurício passou a se interessar pela música. Foi bem na época em que Madonna lançou Like a Prayer. “Eu era um menino muito solitário e reprimido”, diz Maurício. Em muitas noites, Madonna foi a sua única companhia.
A solidão começou quando ele tinha 5 anos de idade. Sua mãe, funcionária pública, saiu de casa numa manhã e não retornou. O núcleo familiar de Maurício ficou restrito ao pai, ao irmão e ao espaço vazio da autoridade feminina. “Eu precisava me agarrar a alguma coisa, nem que fosse a uma imagem.” E a figura que escolheu tinha os cabelos loiros e olhos verdes iguais aos da sua mãe, só que usava sutiãs em formato de cone. “Era incômodo para o meu pai saber que o seu filho gostava da Madonna”, ele diz. “Nas reuniões familiares, sempre chegava aquele momento constrangedor em que os tios faziam a pergunta que deixava todos nós sem jeito: ‘E aí, Maurício, como vai essa paixão pela Madonna?’”
Eram os anos finais da década de 1980, e a disseminação da Aids causava pavor no Brasil. Maurício escutava histórias sobre primos de amigos que desapareciam repentinamente. Um dia, seu professor de história faltou à aula e rumores sugeriram que ele tinha falecido pela doença. Esses assuntos eram discutidos em tom discreto. “Eu tinha medo de explorar a minha sexualidade e ficar doente”, relembra Maurício. Ele costumava passar tempo com outro menino do prédio por quem nutria carinho. Quando o pai descobriu, chamou-o para uma conversa franca: “Se você pegar Aids, eu te largo num hospital e você nunca mais vai me ver.”
Nesse momento em que a homossexualidade era associada a uma praga terrível, Madonna colocou homens gays no primeiro plano do seu trabalho visual. Eles a inspiraram a criar Vogue. Em 1990, durante a turnê Blond Ambition, a cantora percorreu diversos países acompanhada por dançarinos gays de origem negra e latina. O convívio entre Madonna e esses dançarinos está registrado no documentário Na Cama com Madonna. Durante a apresentação da música Like a Virgin no show, Madonna surgia ajoelhada em uma cama vermelha, sugerindo uma cena de masturbação feminina, enquanto dois homens, usando sutiãs de cone, interagiam com ela e entre si. Por essa cena, a igreja católica excomungou Madonna de novo (a primeira vez foi por causa do clipe de Like a Prayer), e o papa João Paulo II descreveu a turnê Blond Ambition como “um dos shows mais satânicos da história da humanidade”.
As notícias chegavam a Pernambuco principalmente através de revistas. Foi assim que Maurício ficou sabendo do lançamento do quinto disco de Madonna, Erotica, a aposta mais provocativa da sua carreira. Ao cantar sobre temas como sexo, liberdade feminina e os impactos da epidemia de Aids, Madonna incorporou o alter ego Dita, uma dominatrix criada por ela. Depois de ouvir o disco, alguma coisa nova surgiu dentro de Maurício. “Eu quis sair, conhecer outros gays e dizer para o meu pai que aqueles eram os meus amigos.” Ele se entregou às batidas do Erotica nas boates de Recife e em festas que outros homens gays promoviam em suas casas.
Assim, quando estava prestes a concluir os estudos em um colégio tradicional no bairro de Boa Viagem, Maurício tinha apenas Madonna em mente. Ao sair da escola um dia, encontrou sua mãe esperando-o na calçada. Mais de uma década havia se passado desde que ela partira sem deixar rastros. A mãe levou o filho para tomar um sorvete e quis saber do que ele gostava. Maurício respondeu: “Sou fã da Madonna.”
A história de Maurício encontra paralelo na história de sua musa, na ausência da figura materna. Na mais recente biografia de Madonna, traduzida para o português pela editora BestSeller, a jornalista Mary Gabriel mostra que a fome de amor e reconhecimento de Madonna Louise Ciccone deriva da perda precoce de sua mãe, que morreu de câncer de mama em 1963, quando Madonna tinha 5 anos. Presa em uma casa caótica e super católica, sufocada pela dor e cercada de crianças – depois de se casar novamente, o pai de Madonna adicionou dois filhos aos seis que já tinha –, a garota procurou saídas para a raiva que crescia dentro dela. A cidade de Rochester Hills, no Michigan, para onde a família se mudou em 1969, era odiável para uma menina como Madonna. O período de dor marcou o início de sua carreira artística. No show anual de talentos da escola, em seu último ano, Madonna e uma amiga dançaram Baba O’Riley, da banda The Who. O pai, Tony Ciccone, ficou horrorizado com a apresentação de Madonna.
A garota trocou Michigan por Nova York quando tinha 19 anos e, aos trancos e barrancos, iniciou a carreira musical que já dura quarenta anos e será celebrada neste sábado (4) na Praia de Copacabana. Foi Madonna quem inventou a figura da estrela feminina pop de vanguarda, criando para si uma nova personagem a cada disco. Enquanto os críticos debatiam sobre até onde sua versatilidade poderia chegar, os fãs se encantavam com a determinação de Madonna em não se deixar definir. Ela era contraditória e sabia que essa era uma condição essencial do seu tempo. No final das contas, a razão do seu trabalho era colocar todos – conservadores, liberais, acadêmicos, jovens bêbados em mesas de bar – diante de suas próprias liberdades, mesmo que isso despertasse medo ou fascínio.
Em Niterói, 1998, o estudante Eduardo Castelo recebeu da mãe a notícia de que eles iriam se mudar para Portugal. Em seus últimos dias no Brasil, o garoto de 13 anos juntou algumas moedas e comprou o disco mais recente de Madonna, Ray of Light. “Fazer 13 anos é uma merda, e eu ainda estava em outro país, deslocado de tudo. A música da Madonna foi a minha companhia”, diz Eduardo, agora com 37 anos. Ele tem uma teoria: “Todo menino gay, aos 13 anos, escolhe uma cantora para chamar de sua, e o dever dele pelo resto da vida será enaltecer e seguir essa igreja.” (Soltei uma risada quando o ouvi dizer isso porque, quando eu tinha 13, fiquei completamente obcecado pela Lady Gaga e acompanhei a carreira dela pelo resto da minha adolescência.)
No último 20 de abril, estive na festa que Eduardo produz desde 2013, a V de Viadão. O evento é o ponto central da vida noturna LGBTQIA+ no Rio de Janeiro, e aquela edição na Gamboa, região central da cidade, foi uma homenagem à discografia de Madonna. Segundo Eduardo, que também atua como DJ e artista visual, cerca de 2.600 pessoas compareceram à festa.
Houve um momento de euforia coletiva quando a música parou e Eduardo convocou ao palco os participantes dos concursos de melhor e pior fantasias de Madonna. Pessoas queer desfilaram pelo palco com trajes que a cantora usou ao longo de sua carreira. Essa competição segue a tradição do ballroom, originada em Nova York nos anos 1980 e inspirada num movimento ocorrido no Harlem na década de 1960, onde mulheres transexuais e homens gays, em sua maioria negros e latinos, competiam pelos prêmios de melhor roupa ou melhor visual. Foi nesse contexto que surgiu o estilo de dança voguing, apresentado a Madonna por membros do House of Xtravaganza, uma fraternidade do ballroom nova-iorquino.
“Existe essa ideia de que um artista pode mudar a vida de uma pessoa. É clichê, mas é verdade. Literalmente muda”, diz Eduardo. “Muitos meninos gays nutrem o desejo de ser o bom garoto da mamãe. Você é inadequado, então tem que agradar os pais e ser bem-sucedido para compensar a sua inequação de alguma maneira. Eu também vejo isso na Madonna. Ela era inadequada em algum nível no lugar de onde veio e se empenhou para desafiar as normas.”
Escutando Erotica, Maurício Carvalho quis ser desobediente. Passou a usar gel com glitter nos cabelos, a fumar cigarro e vestir as roupas que lhe agradavam e perturbavam seu pai. Um dia chegou em casa dizendo que viajaria sozinho ao Rio de Janeiro para assistir ao show de Madonna. Após uma jornada de três dias de ônibus, estava no Maracanã, cercado de gays e travestis com peitos de fora. O sol ardia sobre as cabeças de todos. Foi a primeira vez que Maurício pôde viver plenamente sua identidade gay à luz do dia, longe dos limites das boates.
Isso foi há três décadas. Agora, o funcionário público assiste pela televisão os jovens gays em frente ao Copacabana Palace, dando entrevistas sobre como Madonna os incentivou a serem corajosos, livres, apaixonados, e pensa: “É isso mesmo. É exatamente isso.”
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