Ilustração: Carvall
Madrugada de fome a meia hora do Planalto
Desempregados dormem na fila da assistência social em busca de ajuda; Distrito Federal é unidade da federação com o maior aumento de crianças abaixo do peso e de famílias na pobreza
Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Marcos Amorozo (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).
Não são nem oito da manhã e mais de cem pessoas esperam na fila diante do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da Estrutural, no Distrito Federal. Na terça-feira, 19 de julho, uma mulher de cabelos escuros, chinelo de dedo nos pés, é a primeira da fila. Só conseguiu essa proeza porque chegou cedo, muito cedo: Sulamita do Nascimento, de 28 anos, desempregada, mãe de três filhos, dormiu na fila. “Tô aqui desde às sete da noite de ontem. Só tinha eu e mais umas dez pessoas até umas nove da noite, depois foi juntando essa gente toda aí. Infelizmente, tenho que dormir na fila, correndo o risco de acontecer algo perigoso, para ser atendida”, completa. Como ela, quem espera na fila do Cras busca algum tipo de ajuda, qualquer ajuda, para tentar colocar comida na mesa. “Aqui tá todo mundo desempregado”, conta Nascimento.
Ela trabalhava como empregada doméstica até janeiro deste ano, quando a patroa se mudou do Brasil e a demitiu. Nascimento se inscreveu no Auxílio Brasil e está recebendo cerca de 400 reais mensais. “É a minha única renda atual. Vim aqui na cara e na coragem ver se consigo mais alguma coisa.” Nascimento cria sozinha os três filhos. Teve de deixá-los sozinhos na casa em que mora de favor, construída num terreno que pertence ao pai dela. A filha mais velha, de 12 anos, ficou responsável por cuidar dos irmãos. “Não trouxe os meninos, pois nesse frio eles iam ficar doentes e eu não tenho dinheiro pra comprar remédio. Fiz a janta com o que tinha em casa, deixei tudo separadinho para eles na mesa e fiquei conversando com minha filha pelo celular a noite toda. É errado? Sim, mas não tive outra solução”, afirma.
A Cidade Estrutural, que com o tempo passou a ser chamada só de Estrutural, é uma das regiões administrativas mais pobres do Distrito Federal. A 16 km do Palácio do Planalto – cerca de meia hora de carro –, a comunidade surgiu em meados da década de 1960, quando foi criado o antigo Lixão da Estrutural, e muitos catadores e trabalhadores em situação de vulnerabilidade social migraram para a região. Com o passar dos anos, a região foi se expandindo, com ocupações irregulares, sem planejamento urbano nem estruturas de serviço público suficientes para atender a população. O Lixão foi desativado. A pobreza ficou.
A situação se tornou ainda mais difícil depois da pandemia, e a fome se espalhou pelo Distrito Federal nos últimos dois anos. Dados do Ministério da Saúde compilados pela piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo mostram que, entre 2019 e 2021, o Distrito Federal foi a unidade federativa em que mais cresceu a proporção de crianças abaixo do peso. Em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos. Os dados têm como base o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), do Ministério da Saúde, criado para acompanhar crianças atendidas pelo SUS, incluindo as mais vulneráveis, usuárias de programas sociais. A série de reportagens Má alimentação à brasileira, publicada no site da piauí, mostra como a fome persistente convive com uma crescente epidemia de obesidade infantil, e como isso afeta a faixa mais pobre da população.
Nos últimos dois anos, o Distrito Federal foi a unidade federativa onde a população pobre mais cresceu, mostra uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre). Entre o primeiro trimestre de 2019 e janeiro de 2021, a população pobre do DF, cuja renda familiar não passa de 450 reais per capita por mês, cresceu de 12,9% para 20,8%, segundo os dados compilados. A Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) contabiliza que cerca de 2,9 mil pessoas vivem em situação de rua. Além disso, 206,3 mil famílias estão em situação de insegurança alimentar, de acordo com dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) publicada neste ano.
Na noite em que Sulamita Nascimento dormiu na fila diante do Cras, os termômetros marcaram 12ºC – mas o vento, o sereno e a fome deixavam a sensação térmica ainda mais baixa. As pessoas que aguardavam ao relento sobre a calçada fizeram uma fogueira com pedaços de pau que encontraram por ali. Passaram a noite conversando, comendo biscoitos e tomando café. “Passamos o tempo numa conversa de lamento, um tentando consolar o outro. Todas as mulheres e homens que estão aqui estão sem emprego e precisando de ajuda”, resumiu Sulamita Nascimento.
“Foi uma noite inteira muito fria, foi muita madeira para manter a fogueira acesa”, contou Manuela Marcolino dos Santos, de 25 anos, uma das desempregadas na roda de conversa que varou a madrugada. Assim como Sulamita Nascimento, Manuela chegou na noite anterior e acampou ali mesmo. Desempregada há dois anos, grávida de seis meses e mãe de uma menina de 9 anos, ela passou a noite deitada num colchão no chão, enrolada em cobertores. Seu objetivo era conseguir se registrar no Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico), que unifica os dados da população mais pobre e é o primeiro passo para entrar nos programas de transferência de renda. “Só levantei para usar o banheiro, quer dizer, ir num cantinho escondido na rua mesmo. Ainda levei uma queda e me ralei numa peça de azulejo que tinha lá”, disse, enquanto mostrava os ferimentos ralados nas pernas. Quando as portas do Cras se abrem, as pessoas ficam agitadas. Manuela entra e se senta numa cadeira da recepção. A espera vai continuar.
Ketlyn Rayssa, de 20 anos, não dormiu na fila, mas chegou por volta das 5h da madrugada, com o bebê de três meses num carrinho, enrolado em três cobertores. Desempregada, ela mora de aluguel e recebe ajuda dos pais para sustentar o filho. Essa não é a primeira vez que está no local para tentar se inscrever no CadÚnico e conseguir receber algum benefício. “Eu já vim umas três vezes e não fui atendida. Hoje eu tive que dar um jeito de chegar ainda mais cedo para ver se conseguia.” Para chegar ali nesse horário, ela e uma vizinha saíram de casa antes do sol nascer e caminharam por cerca de 30 minutos nas vielas escuras do bairro. “Aqui é perigoso, né. Então a gente veio juntas e andando rápido para correr menos perigo”, afirmou Ketlyn.
Mais pro final da fila está Leiliane Lopes, de 26 anos. Ela chegou ali perto das 7h30 da manhã em busca de fazer o CadÚnico. “Eu não tinha condições de vir mais cedo e dormir aqui na fila com duas crianças, uma de 6 anos e uma bebê de só 1 ano e 9 meses”, justifica. Para estar ali, ela precisou antes deixar os filhos numa creche e numa escolinha da comunidade, ambas gratuitas. “Nenhuma delas do governo”, reforça. Seu marido está preso, e Leilane faz bico num escritório. Sem vínculo empregatício, não tem salário fixo nem certeza de permanência no trabalho. “Tô numa situação bem complicada, depois dessa pandemia eu perdi o emprego, ferrou tudo. Eu tenho que ser atendida hoje. Se não der, eu volto amanhã, mas espero que dê certo.” Antes das 9 horas recebe a informação de que as senhas de atendimento daquele dia já acabaram. Terá de voltar outro dia, pegar outra fila, esperar mais um pouco.
Com a pobreza nas ruas do Distrito Federal, a demanda por atendimentos nos Cras explodiu. O que se vê na Estrutural se repete em todos os outros centros de assistência social espalhados pelas regiões administrativas. “É muito chocante encontrar essa situação na porta do trabalho. Isso reflete a crise que a gente vive. Muitas pessoas que não sabiam o que é o Cras passaram a procurar pois não viram outra saída”, conta Olga Jacobina, que trabalha como psicóloga no Cras do Guará, região administrativa a 8 km da Estrutural. “A gente não tá dando conta de atender a todos. Além disso, a pessoa que é atendida pela gente pode demorar até dois meses para conseguir algum auxílio, até mesmo uma cesta básica”, completa. Sua rotina é atender gente que tem a fome como companhia diária: “Atendi dois jovens durante a tarde que me disseram que não haviam comido nada no dia. As famílias ficam mais envergonhadas de dizer que sentem fome e que estão sem comer nada. Elas não gritam: ‘tô com fome’.”
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) solicitou à Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-DF) documentos sobre o planejamento da pasta para atendimento da população que procura os serviços de assistência. Também cobrou a criação de um plano emergencial para o atendimento dos Cras. Até o fechamento desta reportagem o governo do Distrito Federal não respondeu aos questionamentos da piauí sobre a situação no atendimento. O espaço segue à disposição.
Gilvanete Soares Santos, de 45 anos, precisou acampar na porta do Cras da Estrutural por quatro noites, entre os dias 14 e 18 de julho, para conseguir ser atendida e renovar o CadÚnico vencido. “Tentei diversas vezes o agendamento pelo telefone 156 e nada, só resolveu a situação quando acampei”, conta. Catadora de recicláveis, mãe de dois filhos, um menino de 5 e uma menina de 2 anos e 11 meses, Gilvanete se revezava com outras mulheres para garantir o lugar na fila quando precisava ir em casa olhar os meninos, tomar banho e buscar comida. “Eu trouxe a minha tenda na quinta-feira, botei colchão e fiquei esperando. Só fui atendida na segunda de manhã, porque não distribuíram nenhuma senha na sexta e no fim de semana o Cras não abre”, afirma. “Eu queria que tivesse vaga na creche para minha filha e saber que ela está bem cuidada, assim eu poderia ir trabalhar, e isso melhoraria a minha situação.”
A catadora conta que há uns dias ela passou no mercado para comprar o café da manhã dos filhos, mas o dinheiro não deu. “Eu queria comprar melancia para minha filha comer, ela ama melancia, mas só consigo comprar suco em pó. Eu sei que não é a melhor opção, que não vai dar a nutrição pro meus filhos, mas não tem muito o que se fazer. Pelo meu gosto, eu compraria um leite, um pão, uma fruta”, diz com o rosto abaixado.
Em Brasília, uma melancia de 10kg custa cerca de 30 reais e faz, no máximo, oito litros de suco; com o refresco em pó, oito litros de suco custam menos de cinco reais. “A última vez que ela comeu melancia foi há mais de semana, quando levei ela na na feira e um homem percebeu que ela olhava a fruta e deu a ela um pedaço. Foi coisa de Deus. Com o preço das coisas, tenho que cortar tudo. Carne, nem lembro qual a última vez que eu comprei. A gente passa mesmo necessidade.”
Isabela Lourenço Nascimento também depende da ajuda de outras pessoas para alimentar os filhos. Mãe de quatro crianças entre 3 a 11 anos de idade, ela está acampada num terreno na Asa Norte, próximo à sede da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Iate Clube e da Universidade de Brasília (UnB), para buscar ajuda. Ela e o marido estão desempregados desde o começo da pandemia. A família mora numa casa de aluguel em São Sebastião, região administrativa a 21 km dali, e, apesar de receberem do Auxílio Brasil, eles não conseguem comprar o básico. “Os 800 reais que a gente ganha do governo não dá. Só de aluguel gasto 750 reais. Tem vez que lá em casa não tem nada pra dar pras crianças”, diz.
No mesmo acampamento estão muitas famílias como a de Isabela, que vêm de locais mais distantes do Centro de Brasília em busca de ajuda. Como as casas improvisadas em madeiras e lonas pretas e azuis estão próximas a uma avenida de grande circulação, fica mais fácil receber doações. “Aqui a gente consegue, às vezes, ganhar uma cesta básica, uma roupa, um brinquedo. Coisas que eu não posso pagar, que eu não posso dar para meus filhos”, afirma. “Na verdade, o que eu queria era um emprego para sair dessa situação. Só tenho até a quarta série, mas eu sei trabalhar de auxiliar de limpeza, de cuidadora, mas ultimamente não aparece nada.”
Isabela conta que um de seus filhos pediu para tomar leite, mas ela estava sem dinheiro. “O menino disse: ‘eu queria tanto que caísse leite do céu…’ Aí quando ele fechou a boca, um senhor apareceu aqui de carro e deu leite pra gente”, conta. “Aí eu falei pra ele: ‘tá vendo como Jesus é bom?’”
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