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    Foto: Aurelien Meunier/PSG/Getty Images

questões político-futebolísticas

Mais um gol de letra

Ídolo na França, Raí obteve mestrado na Sciences Po mesmo sem ter feito a graduação no Brasil. No doutorado, sonha transformar pequena cidade do Nordeste em um “grande Sesc”

Sandra Soares Sibaud, de Paris | 25 jul 2024_09h26
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Na França, quando alguém diz ter sido aluno da Universidade Sciences Po, seu interlocutor responde levantando as sobrancelhas. Estudar na instituição significa integrar uma elite acadêmica planetária, ao lado de alunos da Universidade  Harvard e da London School of Economics (na categoria ensino superior de ciências sociais, essas três escolas se revezam, ano a ano, nas três primeiras posições de uma das classificações internacionais mais respeitadas no mundo, a QS World University). Desde 30 de maio, o ex-jogador Raí, 59 anos, campeão do mundo com o Brasil na Copa de 1994, faz parte desse outro coletivo ilustre. Com uma monografia em que defende o acesso às atividades culturais, esportivas e de lazer como um direito básico do cidadão, Raí recebeu o diploma de mestre em políticas públicas pela Sciences Po. 

Ele segue em campo para buscar o doutorado, o segundo de seu currículo. Em 2019, a Universidade de Paris-Nanterre lhe premiou com o título de docteur honoris causa, uma das mais altas distinções universitárias do país, concedida a personalidades de nacionalidade estrangeira pelo “percurso excepcional, exemplaridade, qualidade, força do seu trabalho e pelos valores que defendem”.

Por trás dessas conquistas está o trabalho social desenvolvido desde 1998 em sua fundação, a Gol de Letra, concebida em parceria com o também ex-jogador Leonardo. O projeto que oferece programas educativos, esportivos, artísticos e de lazer a crianças e adolescentes carentes (cerca de 4500 jovens por ano) coleciona aplausos e prêmios no país que inventou os termos “esquerda” e “direita” (a partir da Revolução Francesa de 1789, os assentos da Assembleia Nacional se dividiram entre os partidários da monarquia, à direita, e os simpatizantes da Revolução, à esquerda). A inspiração para criar o projeto, aliás, surgiu no período em que ele atuou no país, entre 1993 e 1998, quando defendeu o Paris Saint-Germain. “Quando joguei pelo PSG, minha segunda filha, a Raíssa, frequentava a mesma escola e o mesmo médico que a Isadora, a filha da moça que trabalhava lá em casa”, lembra ele (do casamento com a primeira mulher, Cristina de Oliveira, nasceram Emanuella, 40, e Raíssa, 35; ele também é pai de Noáh, 19, filha do relacionamento com Danielle Dahoui). “Compreendi que justiça social passa por disponibilizar as mesmas oportunidades para todas as crianças, independentemente de sua origem.”

Se a França inspirou a criação da Gol de Letra, o projeto, por sua vez, influenciou a pesquisa de mestrado na Sciences Po. Os mais de 25 anos de presença da fundação em bairros periféricos de São Paulo e do Rio de Janeiro permitiram a Raí comprovar a diferença que as atividades que ele chama de “lúdicas” (artísticas, esportivas, de lazer) fazem na vida dos jovens. “Elas ajudam na sociabilidade, no desenvolvimento das funções cognitivas, ensinam como resolver situações de conflito, fortalecem valores como respeito, cooperação, tolerância…”, enumera ele, que credita ao esporte sua capacidade para driblar a timidez e exercer liderança nos anos como jogador e ao se aposentar. 

Em francês, a monografia recebeu o nome de Ludicité (ludicidade). É o que propõe o trabalho: a criação de uma cidade lúdica, ou uma ludi-cidade. A ideia é transformar, na prática, um pequeno município brasileiro em um “grande Sesc”, em alusão ao Serviço Social do Comércio, instituição privada sem fins lucrativos mantida com o imposto recolhido compulsoriamente das empresas do setor e reconhecida por oferecer atividades esportivas e culturais a baixo custo. “Meu objetivo é desenvolver uma política pública de gestão de cultura, esporte e lazer. Não basta, por exemplo, sair construindo infraestrutura. É preciso garantir que elas sejam frequentadas e utilizadas com propósito.” 

O mestrado ajudou a estabelecer o plano piloto a ser aplicado na próxima fase. Raí está em busca da cidade ideal, um lugar “com ‘escala humana’”, de no máximo 15 mil habitantes, de forma a garantir que o programa atinja a totalidade do território escolhido, com a oferta de ações esportivas, culturais e de lazer. Ele já visitou três municípios candidatos, todos no Nordeste, mas não revelou quais foram. Suas redes sociais vêm sendo bombardeadas de sugestões. Até o cantor Chico César já propôs que Catolé do Rocha, na Paraíba, sua cidade natal, seja a escolhida. A região Nordeste ganhou a preferência de Raí porque, na opinião dele, “oferece mais cidades vocacionadas” a receber o projeto. A região mais desigual do Brasil concentra a maior porcentagem de brasileiros (43,5%) em situação de pobreza, segundo dados divulgados no ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A escolha se baseia também em um critério afetivo. Embora tenha nascido em Ribeirão Preto, no interior paulista, Raí se identifica com a cultura do Norte e Nordeste, já que seu pai, Raimundo Vieira, era cearense, e sua mãe, Guiomar de Oliveira, paraense. Ambos já morreram.

Raí sempre manteve uma relação próxima com a França. Em 2013, o presidente François Hollande premiou-lhe com a medalha da Légion d’Honneur, uma das mais importantes condecorações francesas. “Raí não é apenas um jogador de futebol, mas um homem engajado com a educação, principalmente dos mais frágeis”, afirmou o presidente, referindo-se à criação da Gol de Letra. Três anos depois, o brasileiro ganhou a nacionalidade francesa mesmo sem tê-la requisitado, durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. A honraria foi entregue novamente por Hollande, que destacou o fato de Raí “ter sido um jogador muito amado” nos anos em que jogou em Paris, “dentro e fora de campo”. Encarando o homenageado, o então presidente afirmou: “Sabemos que seu coração ficou conosco.” Em 2020, no aniversário de cinquenta anos do PSG, uma votação envolvendo 2500 pessoas (jornalistas esportivos, ex-jogadores e sócios do clube) elegeu Raí como o melhor jogador da história da agremiação. 

Nesse momento em que França e Brasil trabalham para restabelecer os laços de amizade interrompidos nos anos do governo de Jair Bolsonaro (ao longo de todo o seu mandato, o ex-presidente não poupou críticas e ofensas a Emmanuel Macron), o ex-jogador tem sido bastante convocado para compromissos oficiais, de ambos os lados. Em 2022, integrou, a convite de Lula,  a equipe de transição entre o seu governo e o de Bolsonaro, no grupo dedicado ao esporte. Mais recentemente, em março deste ano, acompanhou Macron na visita dele ao Brasil. Embarcou de volta a Paris no avião presidencial francês e passou parte do trajeto em reunião com o chefe da nação. “Conversamos sobre a ‘Saison Croisée’ entre França e Brasil, prevista para 2025”, conta ele, referindo-se aos eventos popularmente conhecidos como “Ano do Brasil na França” (de abril a setembro) e “Ano da França no Brasil” (de setembro a dezembro)”. Raí será padrinho das programações. 

Na manhã de 30 de março, um sábado, parte da comunidade brasileira de Paris acordou cedo para ir a Saint-Ouen, cidade na periferia da capital, prestigiar a inauguração da Rue du Dr Socrates, homenagem ao irmão mais velho de Raí, falecido em 2011. Celebrado na França tanto por seu futebol quanto por sua militância política, Sócrates foi um dos fundadores da Democracia Corintiana, movimento que, entre 1982 e 1984, em plena ditadura militar brasileira, conseguiu implementar no clube um sistema democrático de tomada de decisões, do qual participavam, através do voto, dos faxineiros ao presidente — na França, a Democracia Corintiana serviu de inspiração para a série La Fièvre (A Febre), lançada este ano pelo Canal+. 

A Rue du Dr Socrates atravessa a vila olímpica recém-construída em Saint-Ouen para as Olimpíadas deste ano, compondo um bairro novo que ao final do evento terá 25% das moradias destinadas a programas de alojamento social. Na inauguração, o prefeito da cidade, Karim Bouamrane, do Partido Socialista, contou que há cinquenta anos ele próprio morava na região hoje repaginada. “Aqui havia casas insalubres, parecidas com as das favelas brasileiras. E nessas casas viviam meninos que, como eu, se sentiam inspirados por Sócrates.” Quando chegou a vez de Raí discursar, uma imensa bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, cobriu parte da plateia. 

“O Raí nunca teve medo de se posicionar politicamente. Além de ser um cara generoso, ele é e um representante importantíssimo do Brasil democrata na Europa”, diz Erika Campelo, cofundadora da Associação Autres Brésils e do Observatoire de la Démocratie Brésilienne, organizações atuantes na França há duas décadas realizando eventos, debates políticos e festivais culturais sobre o Brasil contemporâneo. Em 15 de junho, Raí e Erika participaram da manifestação contra o avanço da extrema direita na França – naquele momento, o partido Rassemblement National (RN), de Marine Le Pen, era o favorito nas pesquisas para as eleições legislativas. 

Usando um boné do MST, ele se encontrou com outro brasileiro com o acessório vermelho: o cantor e compositor Chico Buarque, que estava em Paris para comemorar seu aniversário de 80 anos. Os dois se abraçaram, posaram para fotos e confirmaram presença em um jogo de futebol organizado por amigos em comum para o dia seguinte. Quase três semanas depois, em 4 de julho, Raí voltou a fazer campanha contra o RN, discursando no palco de uma manifestação organizada pela coligação dos partidos de esquerda: “A extrema direita é o fim dos direitos humanos, do humanismo, é o fim do mundo!”, bradou ele no palco. No segundo turno das eleições, em 7 de julho, o jogo virou e o RN saiu derrotado, contrariando pesquisas prévias. Das 577 cadeiras existentes no Parlamento, 182 foram conquistadas pela esquerda; 168, pelo bloco governista, de centro; 143 ficaram com a extrema direita e 46 com o partido Republicano, de direita.

O emblema “liberdade, igualdade e fraternidade”, criado no século XVIII durante a Revolução Francesa, reúne valores que Raí reconhece na educação que recebeu da família, o que, na opinião dele, explicaria sua grande afinidade com a França. Na infância, ele costumava acompanhar o pai, Raimundo, nas visitas à cidade natal deste — Messejana, na periferia de Fortaleza. Seu Raimundo fazia questão de que os filhos convivessem com realidades diferentes daquela de Ribeirão Preto, onde a família vivia, e de que se conscientizassem da importância de lutar para que os mais pobres tivessem acesso às necessidades básicas. Raimundo cresceu numa casa sem saneamento, trabalhou vendendo rapadura numa feira e venceu a miséria através dos estudos, que seguiu de maneira autodidata. Era um leitor voraz, especialmente de filosofia clássica. 

Prestou vários concursos públicos e, graças a eles, morou em diferentes cidades. Em Belém do Pará, conheceu a esposa, Guiomar, também funcionária pública. Casaram-se e tiveram seis filhos. Em ordem de chegada: Sócrates, Sóstenes, Sófocles, Raimundo, Raimar e Raí. Todos bons de bola, ao contrário do pai, que era “um grande perna de pau”, brinca o caçula. Em 1960, Raimundo conquistou o posto de auditor fiscal da Receita Federal depois de superar cerca de 15 mil candidatos na disputa por uma das 36 vagas. “Meu pai ficou entre os primeiros e teve prioridade na escolha de onde gostaria de trabalhar”, conta o filho. O patriarca dos Vieira rumou com a família para Ribeirão Preto. 

“Costumo dizer que meu pai deu aos filhos nomes de filósofos gregos para provocá-los intelectualmente. No mínimo meus irmãos teriam de saber quem foi a pessoa que lhes emprestou o nome e conhecer a localização da Grécia”, afirmou Raí que, reza a lenda, escapou de ser batizado como Xenofonte graças à recusa da mãe. “Essa é uma fake news histórica”, desmente. 

Hoje, o filho mais novo é também um embaixador informal do Brasil na França e da França no Brasil. São muitos os que lhe mandam pedidos pelo telefone ou pelas redes sociais. A documentarista baiana Fernanda Vareille, criadora de um programa de entrevistas com brasileiros em Paris, ficou impressionada com a simpatia com que o brasileiro recebeu sua ligação. Ela conta: “O meu pai estava num restaurante, viu o Raí e foi lá dizer ‘sou seu fã e a minha filha adoraria entrevistar você’. Quando ele me passou o número do celular, eu liguei com a certeza de que seria falso. Mas o Raí atendeu e de cara aceitou participar.” Dias depois, durante a gravação pelas ruas do bairro do Marais, a conversa entre a cineasta e seu entrevistado foi interrompida por um… noivo. Fã de Raí, ele abandonou seu posto na fila de cumprimentos da própria cerimônia de casamento assim que viu o ex-jogador gravando do outro lado da rua. Durante o encontro com a piauí, um fã francês de ascendência árabe, Maamar Benaissa-Tahar, pediu licença e se apresentou dizendo: “Te admiro muito e por isso faço questão de vir aqui contar que fui o primeiro filho de imigrantes argelinos a estudar em Harvard.” Uma reportagem de 2006 do jornal Le Figaro confirma a história.

Viviane Lescher, casada com Raí há seis anos, já perdeu a conta de quantas vezes fez fotos do marido com algum fã. A atividade de “fotógrafa atendendo a pedidos” faz parte do seu cotidiano desde que os dois se conheceram, em Londres, em 2007. “O Raí nunca se recusa a tirar foto ou a dar autógrafo”, conta. O namoro à distância durou mais de uma década, num vai e vem de viagens entre São Paulo e Londres. Durante a pandemia, o casal tomou a decisão de alugar um apartamento numa terceira cidade: Paris. Vivi, que é publicitária e trabalhava em uma grande agência na capital inglesa, decidiu fazer uma “reconversão profissional”, termo que os franceses usam para designar a mudança de profissão. Ela especializou-se em vinhos franceses na Wine & Spirit Education Trust, referência do setor, e hoje comanda aulas e degustações para grupos. Raí, que sempre foi de cerveja, já havia se iniciado nos vinhos em seus primeiros anos na França, mas hoje “bebe melhor”, segundo a professora. Melhor, mas não tão bem quanto Vivi, responsável por provar a bebida à mesa nos restaurantes que o casal frequenta. 

Próximo de completar 60 anos, em maio de 2025, o ex-jogador vive e trabalha entre seus dois países. No Brasil, é sócio da Raí+Velasco, empresa de consultoria para marcas e talentos. Na França, bate ponto como conselheiro do Paris FC, o primo pobre do ricaço PSG na capital francesa. O dinheiro que ganhou nos anos de futebol serve para garantir aquilo que ele mais preza: autonomia para escolher com quais projetos se envolver e liberdade para ocupar seu tempo como quiser. 

Apesar do envolvimento em vários setores da sociedade e da titulação em uma universidade conhecida por fabricar presidentes (Emmanuel Macron, François Hollande, Jacques Chirac, François Mitterrand), Raí não tem ambição política. Quando questionado, ele responde com um categórico não. “Posso colaborar muito mais atuando dentro da sociedade civil, como venho fazendo há mais de vinte anos, do que num cargo político. Se voltei a estudar, é porque acho importante que a cabeça trabalhe. No passado, por causa do futebol, não consegui terminar o curso de História e o de Educação Física.” Mesmo sem ter concluído o ensino superior no Brasil, Raí foi aceito no mestrado francês através de um dispositivo intitulado “validação de aquisição de experiências”, que avalia se a experiência profissional dos candidatos pode substituir o diploma.

Raí não é político, mas tem a agenda igualmente atribulada. Debates, homenagens, premiações e… desfiles de moda. Em junho, ele desfilou na Paris Fashion Week, como um dos convidados do Vogue World. A presença do brasileiro é sempre tão requisitada em eventos na França que não é incomum ele ser convidado duas vezes para a mesma cerimônia. Ele foi chamado para carregar a tocha olímpica em dois pontos do percurso: na capital, a convite da Prefeitura de Paris, e em Versalhes, por iniciativa do Comitê Olímpico. Atendeu ao pedido que chegou primeiro: na terça-feira (23), foi uma das personalidades responsáveis por levantar a chama durante a passagem dela por Versalhes. A presença fez sucesso. “Raí é uma lenda”, disse Valentin, de 22 anos, ao jornal Le Parisien. “É sempre bom ver na vida real grandes jogadores que não tivemos a oportunidade de  assistir no estádio”.

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