Ilustração de Carvall
“Mamadeira de piroca” versão 2020
Monitoramento em oito capitais mostra como candidatos conservadores acusaram adversários usando “ideologia de gênero”
Em 26 de novembro, na transmissão ao vivo feita da biblioteca do Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro declarou seu voto em Marcelo Crivella (Republicanos) para a Prefeitura do Rio de Janeiro. Também pediu à audiência que não votasse em partidos que defendessem “ideologia de gênero” ou “desgaste de valores familiares”, citando nominalmente o PT, Psol, PCdoB, PDT. “Esse é o apelo que eu faço porque o futuro do seu filho vai passar pelas mãos desse prefeito”, argumentou Bolsonaro, para, em seguida, afirmar que a Secretaria de Educação no Rio estaria prometida para o Psol pelo concorrente de Crivella, Eduardo Paes (DEM), e que ninguém poderia reclamar quando os filhos apresentassem “o lixo aprendido em sala de aula”.
Não é de hoje que campanhas eleitorais recorrem à estratégia de produção de pânico moral e divulgação de notícias falsas. Na última década, esses ataques se voltaram para temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos sob o argumento de que se trata de uma forma de proteção à “família” e à “infância”, ambos supostamente ameaçados pelo que chamam de “ideologia de gênero”.
Cunhada entre as décadas de 1990 e 2000, no contexto da oposição do Vaticano aos avanços em políticas de gênero estimulados pelas Conferências da ONU Mulher, a expressão foi abraçada por evangélicos e encampada por pessoas de diferentes classes sociais, grupos religiosos e até mesmo não religiosos. Jair Bolsonaro, por exemplo, vangloria-se por ter atuado efetivamente contra a distribuição do material educativo anti-homofobia, pejorativamente apelidado de “kit gay”, quando ainda era deputado e nem mesmo se apresentava como religioso. Paulatinamente, a pauta “antigênero” ganhou força na política e foi associada ao padrão heteronormativo de família. Apareceu nas eleições de forma direta e exitosa em 2016, 2018 e retomada em 2020.
Para políticos como Flávia Borja (Avante), ligada à Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, a mesma da ministra Damares Alves, a participação na política institucional é uma forma efetiva de impedir que crianças sejam “induzidas à homossexualidade”, erotizadas e, portanto, expostas à pedofilia, interpretada como um resultado direto da implantação de educação sexual por governos de esquerda. Gilberto Nascimento Jr. (PSC), vereador eleito em São Paulo, entende que tais ameaças também ocorrem de forma silenciosa por meio “de roupas, músicas e danças aparentemente inofensivas”.
Durante a campanha eleitoral de 2020, o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia pediu aos fiéis que praticassem a “cidadania terrena” para evitar o que chama de “destruição da infância e dos valores cristãos”. Segundo ele, a educação sexual não deve ficar a cargo das escolas porque afronta o direito dos pais de educarem seus filhos.
Como justificativa, o pastor alterna o uso de argumentos científicos, a classificação biológica (e, segundo ele, natural) dos sexos, e jurídicos para defender a ideia de que (um tipo de) família é a base da sociedade e deve ser protegida pelo Estado. Recorre à Constituição Federal (Art 226, caput e parágrafo 3º) para legitimar sua concepção heteronormativa de família, embora doutrina e jurisprudência brasileira considerem o rol do artigo meramente exemplificativo. O que parece um paradoxo é, na verdade, um jogo discursivo que se aproveita da preocupação legítima dos pais em relação aos filhos, ao mesmo tempo em que abusa de argumentos falaciosos. Apesar disso, Malafaia elegeu seus candidatos a vereador no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte. Isso significa que tal discurso garante votos?
A resposta é sim, mas também não. O monitoramento de candidaturas em oito capitais feito pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) identificou que o apelo a esse e outros temas morais relacionados apareceram de formas diferentes no processo eleitoral em candidaturas que se autoidentificam como conservadoras. Durante o primeiro turno, o debate sobre “ideologia de gênero” foi mais mobilizado por candidatos às Câmaras Municipais, sobretudo aqueles já trabalhavam com essa identidade, como Rute Costa (PSDB-São Paulo), Alexandre Isquierdo (DEM-Rio), Gilberto Nascimento Jr. (PSC-São Paulo), Lorena Brandão (PSC-Salvador).
Em campanhas majoritárias, a temática foi mais acionada por quem estava em baixa nas pesquisas, como Crivella, Joice Hasselmann (PSL-SP), Russomanno (Republicanos-SP) e Vavá Martins (Republicanos-Belém).
Já o segundo turno se tornou uma “guerra de facção” em várias capitais, em especial Porto Alegre, Fortaleza, Recife e Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro e no Recife, panfletos com conteúdo e estética semelhantes atacaram as candidaturas de Eduardo Paes e Marília Arraes (PT-PE). De um lado, eram expostos candidatos apresentados como defensores das pautas em defesa da família, autodenominados conservadores. Do outro, aqueles que seriam a favor do aborto, da legalização das drogas, da “ideologia de gênero” e da pedofilia, classificados como “esquerdistas”, mesmo quando não eram – caso de Eduardo Paes. Os desmentidos do próprio Paes e do Psol, no Rio, de que estariam negociando a Secretaria de Educação, além da decisão judicial que determinou o recolhimento do material de campanha que vinculava o candidato do DEM e Marcelo Freixo, não impediram a contínua divulgação de fake news, inclusive pelo próprio presidente da República.
Em Fortaleza, o panfleto que atacava a candidatura de José Sarto (PDT-CE) era direcionado diretamente a evangélicos e trazia as seguintes perguntas: Por que meu pastor não vota no Sarto? Sou evangélico, por que não devo votar no Sarto? A resposta, claro, era outra, acusando o candidato de ser a favor de políticas gays para crianças e de implantar o ensino da “ideologia de gênero, que visa erotizar nossos filhos” nas escolas de Sobral. Já em Porto Alegre, a campanha difamatória contra Manuela D’Avila (PCdoB – RS) explorou seu espectro ideológico à esquerda e alertava que a cidadade se tornaria “uma Venezuela” caso a candidata ganhasse, atribuindo a ela uma falsa declaração sobre aborto: “Abortar é a única saída para não criar filho de vagabundo sozinha!”
A campanha eleitoral 2020 indica que a cruzada de alguns políticos, seja daqueles com identidade religiosa, seja dos que se identificam como conservadores, têm a educação como alvo. Muitos candidatos circularam por escolas, se encontraram com professores, demonstraram especial disposição em debater temas na área, mesmo que a seu modo. A postura antigênero aparece nesse pleito travestida de preocupação com a educação.
A centralidade em torno da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668, nas duas semanas anteriores ao primeiro turno, corrobora esse ponto. Como foi proposta pelo Psol, ela endossa e legitima os argumentos de Malafaia e de outros atores políticos, como no caso do vice-prefeito de Bruno Covas (PSDB), o vereador católico Renato Nunes (PL), de que essa é uma pauta progressista e de esquerda.
“Vencemos uma batalha, mas a guerra está longe do fim! Para continuar o trabalho em defesa das nossas crianças, peço seu voto!”, apelava Alexandre Isquierdo (DEM-RJ) em suas mídias sociais.
O uso do termo “cruzada” nesse artigo não é uma metáfora. Primeiro, porque se trata de um movimento observado também internacionalmente, a exemplo do Movimento Con Mis Hijos no te Metas, nascido no Peru e ampliado por Colômbia, Chile, Equador, Argentina e Paraguai. No Brasil, atores políticos de tendência conservadora têm usado essa mesma retórica para interferir nos Planos Nacionais de Direitos Humanos, e nos planos de educação nacionais, estaduais e municipais.
Segundo, porque o debate sobre “ideologia de gênero” é justificado a partir de argumentos aparentemente democráticos, sobretudo por políticos que se autointitulam cristãos. Reivindicam sua cidadania, a defesa dos direitos humanos e das liberdades individuais, mas de forma restritiva.
Assim como o apelo à cidadania já foi uma pauta do campo progressista e agora é disputada por atores conservadores, o mesmo acontece atualmente em relação à educação a partir do argumento de “defesa da família”. A ideia de que estamos em uma guerra esteve muito presente nos discursos dos candidatos engajados nessa cruzada, onde o outro é visto como inimigo a ser destruído sem qualquer possibilidade de diálogo. Com a eleição de parcela significativa deles, ela parece muito longe de acabar.
Doutora em Ciências Sociais, pesquisadora da UFRJ e do ISER (Instituto de Estudos da Religião)
Doutora em Ciências da Comunicação
Historiadora e pesquisadora no ISER
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