A cacica Jamopoty, líder da aldeia de Olivença, visitando o manto no Museu Nacional. “Fomos usurpados. Tiraram o nosso direito de viver, de falar nosso idioma. Hoje estamos aqui dizendo: ‘nós somos tupinambás, nós queremos o nosso manto’.” Foto: Leo Otero/Ministério dos Povos Indígenas
As provações do manto tupinambá
Antes de aterrissar no Brasil, a relíquia do século XVII passou por negociações sigilosas, inseticidas e brigas com a direita dinamarquesa
“Nós nos despedimos em silêncio”, conta Christian Sune Pedersen, diretor de pesquisa do Nationalmuseet. Na última semana de junho, um manto vermelho confeccionado por indígenas tupinambás há mais de 350 anos deixou o museu, em Copenhague. Foi retirado com cuidado da vitrine de vidro onde repousava em pé. Jan Bruun Jensen, conservador especialista em material orgânico, montou um ninho de papelão para acomodá-lo dentro de uma caixa de madeira feita sob medida para a viagem. O manto foi coberto com uma espuma preta de polietileno, semelhante ao material costumeiramente usado para embalar vidro. “Meu maior desafio foi o manejo das penas e das fibras vegetais”, explica Jensen. “Foquei em garantir o menor estrago possível, porque se cai uma pena é praticamente impossível recolocá-la no lugar. Já vi peças frágeis assim se desfazerem.”
Terminada a montagem do pacote, o manto foi submetido a um processo de descontaminação de insetos que durou por volta de uma semana. Em seguida, embarcou no bagageiro de um avião comercial rumo ao Rio de Janeiro – tudo em absoluto sigilo, por razões de segurança. Nem a data de aterrissagem foi confirmada. O que se sabe é que o manto chegou ao Brasil nos primeiros dias de julho, pondo fim a um litígio que se arrastava havia 24 anos, quando tupinambás brasileiros tiveram conhecimento do paradeiro dessa relíquia, dada até então como perdida. Trata-se de um dos mais bem preservados entre os onze mantos tupinambás remanescentes dos séculos XVI e XVII. Os outros dez de que se tem notícia também estão na Europa. Quatro deles se encontram no mesmo Nationalmuseet, em Copenhague, mas armazenados em caixas metálicas na reserva técnica, longe do público.
Os mantos, considerados sagrados pelos tupinambás, eram vestidos em ocasiões especiais, como assembleias, enterros de pessoas queridas e rituais antropofágicos. Tornaram-se uma imagem recorrente na arte brasileira, ganhando releituras de Lygia Pape, a escultora neoconcreta, e de Glicéria Jesus da Silva, a Célia Tupinambá. Um dos mantos confeccionados por Célia está em exibição na Bienal de Veneza, na instalação Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam. Para os tupinambás, quem veste o manto se transmuta em pássaro. Ele era considerado um luxo, um sinal de divindade.
Ninguém sabe ao certo como aquele exemplar específico, confeccionado com mais de 4 mil penas vermelhas de guará, foi parar na Dinamarca. O primeiro registro de sua presença em Copenhague data de 1689. É provável que fizesse parte da coleção de Frederico III, tataravô do atual rei da Dinamarca, Frederico X, que assumiu o trono em janeiro. Agora o objeto está em posse do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Teve início nesta terça-feira (10) uma cerimônia oficial de três dias, no museu, para celebrar a chegada do manto. Os dois primeiros dias foram reservados para rituais exclusivos dos tupinambás. O terceiro, esta quinta-feira (12), contará com presença de várias autoridades, entre elas o presidente Lula e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
A devolução do manto, celebrada no Brasil, foi objeto de controvérsia na Dinamarca. O jornal Berlingske registrou o descontentamento de funcionários do Nationalmuseet com o diretor do museu, Rane Willerslev, que manteve em segredo a negociação com a embaixada brasileira. Na reportagem, uma fonte anônima lamentou a “depenação” do patrimônio cultural dinamarquês e disse que a devolução do manto ameaçava a “ideia do que é um museu”. Dias depois, o mesmo jornal publicou um artigo da pastora Kathrine Lilleør com um título preconceituoso: “Não dá para falar com uma capa feita de penas, mesmo que você seja um índio brasileiro. Nosso ministro da Cultura foi ingênuo.” Lilleør referia-se ao fato de que, na cosmologia tupinambá, o manto comporta um espírito ancestral.
A direita entrou de cabeça na briga, colocando-se imediatamente contra o que considerou ser uma concessão ao decolonialismo. O deputado conservador Nikolaj Bøgh defendeu no jornal Kristeligt Dagblad que, após 334 anos em Copenhague, o manto havia se tornado patrimônio cultural dinamarquês. Segundo ele, a devolução ao Brasil havia sido decidida sem “um diálogo democrático” com toda a sociedade. Outros conservadores prometeram contestar, no Parlamento, a devolução da relíquia tupinambá. Mas ficou por isso mesmo. O ministro da Cultura, Jakob Engel-Schmidt, respondeu às críticas deixando claro que a devolução do manto não abria precedentes para outras repatriações, por se tratar de um caso especial. A Grécia, por exemplo, teve negado em fevereiro o pedido de devolução de três esculturas retiradas do Partenon e levadas à Dinamarca em 1688 e 1835.
“O elemento principal para nós foi o fato de que a capa de penas será exposta no novo Museu Nacional brasileiro”, explicou Engel-Schmidt durante um debate no Parlamento, em janeiro deste ano. “O valor comunicativo da peça aumentará significativamente, em parte porque será o único do gênero no acervo do museu e porque, entre outras coisas, estará disponível para os rituais tradicionais.”
Quando o manto pousou no aeroporto do Galeão, no Rio, surpreendeu a quase todos. A discrição sobre a data da chegada havia sido um pedido do Nationalmuseet. O museu receava que, se ela fosse tornada pública, o manto correria o risco de cair nas mãos de piratas a serviço de colecionadores de relíquias. Do aeroporto, o manto foi transportado de carro para a Quinta da Boa Vista, sede do Museu Nacional. Embora seu valor seja inestimável, ele teve o preço fixado em 1 milhão de reais para o seguro de viagem. Os dinamarqueses bancaram a viagem; os brasileiros, os 20 mil reais do seguro.
Célia conta que foi informada em sonho sobre a chegada do manto – ou do ancestral, em suas palavras. Enquanto dormia, ela se viu descalça, com uma mochila nas costas, em frente a uma praia na baía de Copenhague. A capital dinamarquesa é banhada pelo mar Báltico. “Outros vão voar, mas entre no mar porque você alcançará a corrente a favor e chegará ao seu território”, instruía uma voz.
É provável que, nessas noites de sonho, o manto, com seu 1,2 metro de altura por 60 cm de largura, estivesse parado na alfândega. O Ibama exigiu do Museu Nacional uma licença específica de importação por conta das centenárias penas de guará. O pássaro da espécie Eudocimus ruber está na lista de 5.950 espécies de animais protegidos pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, a Cites, da qual o Brasil é signatário.
Entregue ao museu, a caixa foi aberta sem cerimônia na presença de dois representantes da empresa de transporte e dois conservadores. O diretor do museu, o paleontólogo Alexander Kellner, foi chamado para assinar o recibo na chegada. O manto então descansou dentro da caixa por três dias, como recomendava o protocolo de conservação. No quarto dia, foi inserido numa bolha de plástico para que se fizesse a anóxia, um tipo de tratamento contra pragas, operado por equipamentos de alta sensibilidade e controle calibrado de temperatura e umidade. O confinamento durou dois meses. O manto então foi transferido para sua nova vitrine, na biblioteca central do museu. Ali ficará até 2026, data prevista para a reabertura do museu, que está em reformas desde o incêndio de 2018.
Os tupinambás habitam o Brasil desde tempos imemoriais e dominavam uma extensa faixa da costa brasileira, de São Paulo ao Ceará, quando os portugueses despontaram no horizonte em 1500. Alguns pesquisadores estimam que a etnia somava 189 mil indivíduos no final do século XVI; outros calculam em torno de 1 milhão. Os colonizadores, quando não os matavam, os convertiam ao catolicismo e deixavam de considerá-los indígenas. Disso resultou que, por muito tempo, a historiografia brasileira dissesse que os tupinambás haviam desaparecido. Isso só mudou em 2001, quando a Funai reconheceu como membros desse povo os habitantes de uma terra indígena no Sul da Bahia. Batizada de Terra Indígena Tupinambá de Olivença, ela se espalha por três municípios (Ilhéus, Buerarema e Una) e abriga hoje 4,6 mil pessoas, distribuídas em 23 aldeias, sob a liderança de catorze caciques.
No prefácio da edição de 1950 de A Religião dos Tupinambás, livro do antropólogo suíço Alfred Métraux, o tradutor Estevão Pinto se esforçou para encontrar o significado original do nome Tupinambá. Recorreu aos escritos de Francisco Adolfo de Varnhagen, militar, diplomata e historiador brasileiro do século XVIII. “Dizia Varnhagen que, se alguém perguntasse a um índio a que ‘raça’ pertencia, fosse esse índio do Maranhão ou do Pará, da Bahia ou do Rio de Janeiro, a resposta era invariável – índio tupinambá. Tupinambá era, assim, como um nome geral que se modificava logo que havia o fracionamento do grupo”, escreveu Pinto. “Tal nome, no dizer de Rodolfo Garcia [outro historiador], significava etimologicamente ‘a gente atinente ou aderente ao chefe dos pais,’ os ‘pais principais’, ou melhor, os descendentes dos fundadores da nação”. Mais adiante no prefácio, ele afirma que, ao menos desde o século XVII, os tupinambás não existiam mais “em estado de pureza”.
“Os livros dos gananciosos diziam que a gente já estava extinto, mas o manto voltou para nos dar respeito”, diz Maria Valdelice Amaral de Jesus, a cacica Jamopoty, líder da aldeia de Olivença, uma das 23 que compõem a terra indígena, na Bahia. Ela é avó de trinta netos e filha de Nivalda Amaral de Jesus, mais conhecida como Amotara, morta (ou encantada, na visão dos tupinambás) em 2018.
Foi Amotara quem divulgou ao mundo, por meio da imprensa, que os tupinambás ainda estavam vivos. O ano era 2000, e, por ocasião dos 500 anos do “descobrimento”, o governo federal promoveu uma série de eventos celebratórios. Indígenas de todo o país protestaram – o que estava sendo tratado como festa era, para eles, a lembrança de um genocídio. Contrapondo-se à agenda oficial, eles organizaram um movimento paralelo, chamado Brasil, Outros 500, que se reuniu em Porto Seguro.
A antropóloga Patrícia Navarro de Almeida Couto, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana, compareceu ao evento. Ela lembra que os indígenas subiam no palanque e enunciavam suas etnias no microfone. “Eu sou Terena”; “eu sou Camaiurá”, “eu sou Pataxó”. Amotara, quando chegou sua vez, não titubeou: “Eu sou Tupinambá”. Causou espanto em todo mundo. “Até então, que eu saiba, eles não tinham falado isso publicamente. Era uma identidade submergida”, explica Couto.
A declaração fez com que a Folha de S.Paulo convidasse Amotara para a Brasil + 500: Mostra do Redescobrimento, exposição que acabara de ser inaugurada no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Entre os objetos expostos estava justamente o manto tupinambá, emprestado pela Dinamarca para uma estadia provisória no Brasil. Ao se deparar com ele, Amotara, com 67 anos na época, ficou atônita. “Me deu um remorso tão grande”, ela relembrou numa entrevista a Couto, publicada três anos mais tarde em uma etnografia dos tupinambás de Olivença. “As lágrima corria dos meus olho sem eu sentir, e eu disse: É esse! E botei a mão assim no vidro. E o jornalista me disse: ‘a senhora tem certeza?’ E eu disse ‘tenho certeza que é este manto!’ Quando desapareceu o manto a aldeia se acabou, porque o manto era sagrado. O manto, quando uma moça ia casar, ela botava. O pajé botava aquele manto.”
A capa da Folha em 1º de junho de 2000 estampou uma declaração de Amotara: “Somos Tupinambás. Queremos o manto de volta.” No mês seguinte, os indígenas de Olivença enviaram à Procuradoria da República de Ilhéus um procedimento preparatório pedindo que o manto fosse retido em território brasileiro. Basearam-se no artigo 216 da Constituição, que define como patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. O pedido tramitou durante anos e nunca foi atendido. O manto, com isso, retornou para Copenhague.
A piauí obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação, a íntegra do processo. Os autos mostram que, ainda em 2000, a procuradoria pediu pareceres técnicos a duas antropólogas: Maria Rosário de Carvalho e Aldeneiva Fonseca. Ambas concordaram com o pleito dos tupinambás. Recomendaram, no entanto, que o manto fosse abrigado em um museu que tivesse estrutura adequada para preservá-lo. Sugeriram o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em São Paulo, e o Museu do Índio, mantido pela Funai, no Rio. As duas instituições, porém, disseram não ter condições de recepcionar o objeto.
A discussão se arrastou ainda por alguns anos. Em 2008, a diretora interina do Departamento Cultural do Itamaraty, Eliana Zugaib, deu um novo argumento para frustrar a ideia. Segundo ela, como não havia um tratado internacional para casos como esse, o pedido de devolução do manto poderia ser considerado irregular pelos dinamarqueses, “além de afetar a disposição de museus estrangeiros em emprestarem obras de seus acervos para instituições brasileiras, inviabilizando a promoção de mostras temporárias no Brasil e prejudicando o acesso à cultura no país”. O processo foi arquivado em 2009.
Mais de dez anos se passaram sem que nada fosse feito. O pleito dos tupinambás só voltou à tona em novembro de 2021, com a publicação da reportagem Longe de Casa, na piauí_182. Depois de se informar pela revista, o então embaixador do Brasil na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos, entrou em contato com representantes do Nationalmuseet e do governo dinamarquês para solicitar formalmente a devolução. Foi quando as engrenagens finalmente se moveram em favor dos indígenas.
À esquerda, Amotara, numa fotografia da Folha de S.Paulo em 2000; à direita, Célia Tupinambá visitando o manto em Copenhague, em 2021 (Créditos: Flávio Florido/Folhapress; Elisangela Roxo)
Desde o primeiro encontro com a equipe da Embaixada do Brasil, em 2022, o diretor do museu, Rane Willerslev, se mostrou aberto a colaborar. Ciente da burocracia monstruosa que teria de enfrentar, ele impôs na largada duas condições. Primeiro, precisava receber uma requisição formal assinada por representantes dos tupinambás. Segundo, os indígenas deveriam deixar claro se concordavam com o envio do manto para o Museu Nacional. Essa tarefa coube à cacica Jamopoty e a Rosivaldo Ferreira da Silva, o Babau, cacique da Serra do Padeiro, uma das aldeias do Sul da Bahia, e irmão de Célia Tupinambá. Os dois escreveram cartas apoiando a ideia. As missivas, traduzidas para o dinamarquês, foram entregues a Willerslev.
Batido o martelo, o Museu Nacional criou o Grupo de Trabalho de Acolhimento ao Manto Tupinambá. Participavam dessa força-tarefa antropólogos do museu e duas representantes indígenas: a cacica Jamopoty e Célia Tupinambá, que além de artista é uma liderança da Serra do Padeiro ao lado de seu irmão. O GT fez oito encontros online nos últimos sete meses, marcados por trocas entre os servidores do museu e as indígenas. Os antropólogos tomaram notas das tradições dos tupinambás, que, por sua vez, foram informados dos procedimentos técnicos que precisariam ser adotados.
Jamopoty e Célia queriam ir a Copenhague para agradecer pessoalmente à equipe do Nationalmuseet e preparar o manto espiritualmente antes do traslado. O Museu Nacional, no entanto, explicou que não tinha dinheiro para a viagem. Elas então fizeram um pedido: que o manto, ao ser recebido no Brasil, fosse mantido em pé, da mesma forma como era exibido no museu dinamarquês. Receberam o ok dos técnicos, embora o mais recomendado, para garantir sua durabilidade, fosse deixá-lo deitado.
As duas tupinambás também explicaram aos integrantes do GT os pormenores ritualísticos que envolvem o manto. Era preciso fazer um ritual antes que o voo decolasse, na Dinamarca, e outro depois da aterrissagem, no Brasil. Pediram também que o Museu Nacional lhes permitisse organizar uma vigília espiritual ao lado da relíquia sagrada antes que ela fosse exposta ao público pela primeira vez. O objetivo era “assentar a energia” do manto. O museu, segundo elas, acatou os pedidos. Mas nada saiu como planejado: devido ao sigilo combinado com os dinamarqueses, a relíquia chegou ao Rio de Janeiro sem que os tupinambás soubessem e, portanto, sem que o ritual fosse respeitado.
Na Bahia, os indígenas tomaram um susto ao serem informados de que o manto já estava no Brasil. A cacica Jamopoty considerou um desrespeito o fato de ter sido avisada por meio de um aplicativo de mensagens. Célia, igualmente indignada, foi à desforra. “Nós estamos na luta contra o marco temporal, como é que a chegada do manto vai ficar em sigilo? Não pode haver uma nova narrativa em que o homem branco seja protagonista”, ela argumenta. “Fui consultar os encantados [seres místicos da cosmologia tupinambá] e, por orientação deles, procurei jornalistas da Folha de S.Paulo e do Jornal Nacional para vazar a informação. Quis ver até onde a gente ia nessa história.”
A indignação dos tupinambás virou notícia, produzindo um constrangimento para o Museu Nacional. O antropólogo e líder do GT, João Pacheco de Oliveira, diz que ele e outros funcionários do museu também foram pegos de surpresa pela chegada do manto. “Essa confusão afeta o projeto primordial estratégico do museu, que é refazer a coleção com curadores e intelectuais indígenas, com o que seja significativo para a memória deles. Temos buscado construir coletivamente, fora do mercado de coleções, a memória que eles mesmos querem que seja guardada no museu”, explica Oliveira.
Para conter a crise, o diretor do museu, Alexander Kellner, foi pessoalmente à aldeia de Olivença. Voou do Rio para Porto Seguro, com passagem paga do próprio bolso, e de lá pegou um carro até a oca comunitária, onde chegou na tarde de 6 de agosto. O encontro foi filmado, e trechos da gravação foram publicados no Instagram. Trajando calça jeans e camisa branca em meio aos anfitriões de cocar e vestes tradicionais, Kellner tentou acalmar os ânimos: “O Museu Nacional não é o inimigo.” Apresentou-se, dizendo ter dois filhos e três netos, e afirmou que, embora tenha nascido no principado de Liechtenstein e sua aparência seja de “colonizador”, vive no Brasil desde os 4 anos e se naturalizou brasileiro. Ele defendeu a equipe do museu. Alegou que, se informasse a data à sua equipe e pedisse a eles sigilo, obrigaria os antropólogos a mentir para os indígenas, e foi isso o que quis evitar.
À piauí, Kellner disse entender “a enorme frustração deles [os tupinambás], que transcende a questão do manto”. Ele se refere ao fato de que, há pelo menos quinze anos, os indígenas tupinambás reivindicam a demarcação de terras na Bahia, no Pará e no Maranhão. A que está em estágio mais avançado é a Terra Indígena de Olivença, onde vivem Jamopoty e Célia. A reserva tem cerca de 47 mil hectares e foi delimitada pela Funai em 2009, o que significa o reconhecimento formal do território. A demarcação, contudo, não foi concluída até hoje. Depende da iniciativa do governo Lula.
Segundo o mais recente relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com dados de 2023, há registro de extração ilegal de areia na terra indígena na Bahia e ao menos 30 hectares de Mata Atlântica já foram degradados pela mineração.
Célia esteve com o manto sagrado pela primeira vez em 2021, em Copenhague. Viajou a convite do Taking Care, um consórcio formado por museus nacionais europeus para discutir o futuro de suas coleções etnográficas. Na Dinamarca, como em boa parte do continente, museus que guardam os objetos dos antigos “gabinetes de curiosidades” – em geral, extraídos de países do Sul Global – têm sido pressionados a rever seus acervos e devolver peças obtidas no contexto violento da colonização. Célia visitou novamente o manto, dessa vez no Museu Nacional, enquanto ele passava pela anóxia. Ela e seus conterrâneos da Serra do Padeiro, no entanto, optaram por não participar das cerimônias desta semana. “Teve muita coisa errada. Não me cabe ir a esse lugar”, disse à piauí o cacique Babau.
A cacica Jamopoty conta que, antes de ver o manto, já tinha sentido a proximidade de sua energia. Foi no dia 21 de agosto, quando participou de um evento nos jardins da Quinta da Boa Vista, a poucos metros do Museu Nacional. “O manto fala do nosso jeito”, afirma Jamopoty. “Diz o diretor do museu que ele ainda está se recuperando da viagem, perdeu três penas. Ainda está fraquinho.” À piauí, Alexander Kellner, diretor do museu, confirmou a perda das penas, ocorrida segundo ele na Dinamarca. Elas foram guardadas, mas não devem ser recolocadas para evitar o manuseio do manto.
Poucas semanas depois, Jamopoty pôde vê-lo presencialmente pela primeira vez, acompanhada das irmãs e outros tupinambás. Depois da visita, discursou, emocionada. “Fomos usurpados. Tiraram o nosso direito de viver, de falar nosso idioma. Hoje estamos aqui dizendo: ‘nós somos tupinambás, nós queremos o nosso manto’”, afirmou, ecoando a frase de Amotara publicada em 2000 na Folha de S.Paulo. “Era desejo de Amotara que esse manto chegasse para nossa reafirmação. Todos somos filhos de Amotara.”
Jamopoty gostaria que toda sua aldeia comparecesse à celebração no Museu Nacional, nesta quinta-feira (12). Como o Ministério dos Povos Indígenas não teve dinheiro para bancar esse plano, os tupinambás angariaram recursos por conta própria para pagar três ônibus, saindo de Ilhéus com destino ao Rio. A comitiva reuniu cerca de 170 indígenas, incluindo crianças e anciãos. O ator e artista circense Marcos Frota se disponibilizou a abrigar os indígenas enquanto estiverem no Rio.
A celebração no museu foi marcada inicialmente para os dias 29, 30 e 31 de agosto. Lula, porém, não poderia participar do convescote marcado para o último dia, porque já havia confirmado presença na Conferência da Diáspora Africana nas Américas, realizada em Salvador. Como o presidente mostrou interesse em comparecer ao museu, as datas foram rearranjadas então para 10, 11 e 12 de setembro.
Funcionários do Museu Nacional, em reunião com integrantes do governo federal e estadual, deixaram claro que o manto tupinambá, grande homenageado do evento, não poderá sair de seu lugar – no caso, a vitrine onde está disposto, na biblioteca central do museu. Pequenos grupos de no máximo vinte pessoas são organizados para vê-lo, um de cada vez. A regra se aplica até a Lula.
Em uma das reuniões, irrompeu um debate de natureza etimológica: o termo correto a ser divulgado na imprensa é doação ou repatriação? Alguns participantes argumentaram que o primeiro termo, mais simpático, poderia facilitar novas negociações para a devolução de objetos retidos na Europa. Outros destacaram a conotação política do segundo termo. “Repatriação”, afinal, sinaliza uma interpretação mais clara de que a colonização, na verdade, foi um processo de exploração dos povos colonizados. “Há lugares em que se discute hoje a rematriação”, acrescentou Sandra Benites, antropóloga da etnia guarani que hoje ocupa o cargo de diretora de artes visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Para Benites, não faz sentido usar a palavra doação, porque o manto na verdade “foi roubado”.
Enquanto isso, no reino da Dinamarca, um dos quatro mantos tupinambás remanescentes dos séculos XVI e XVII foi colocado na vitrine de vidro onde, até pouco tempo, estava o manto repatriado ao Brasil. Não há novas negociações em curso para a devolução dos objetos indígenas que estão em Copenhague. Duas pesquisadoras do Nationalmuseet estão preparando um livro acadêmico, já em processo de revisão, sobre os objetos da coleção com origem no Brasil, a ser lançado em 2025.
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