Marília e Theodoro: “Eu devia essa peça a mim mesma porque precisava tirar o Theodoro dessa coadjuvância cruel que resolveram entregar a ele em vida" (Foto: Bob Wolfenson)
Marília Gabriela, de frente com o espelho
Culpas, boatos, controvérsias e outras lembranças encontram a jornalista no palco, ao lado do filho caçula
Julio Maria | 25 abr 2024_13h02
“Envelhecer é uma merda”, diz Marília Gabriela, 75 anos. “Uma merda”, ela reforça com um tom mais incisivo enquanto interpreta a si mesma durante um ensaio de seu novo espetáculo, A Última Entrevista de Marília Gabriela, com estreia marcada para o dia 3 de maio, no Teatro Unimed, em São Paulo. A fala vem logo depois de seu filho, o ator Theodoro Cochrane, 45 anos, que também faz o papel de si mesmo, dizer para a plateia que eles vão ler o texto o tempo todo porque Marília, por idade, e Theo, por Covid, não têm mais a memória que um dia tiveram para decorar tantas páginas.
Mãe e filho contracenam um texto de fatos biográficos reais levantando traumas de infância, rupturas familiares, condenações públicas, injustiças profissionais e reflexões existenciais com uma impetuosidade que levam Marília ao limite. Cada vez em que repassa o texto do instante em que rompe com a indulgência materna e explode diante do filho inquisidor, sente que seu corpo é tomado por algo que nem é mais teatro. “Eu não aguento e choro. Choro em todos os ensaios.”
Marília e Theodoro interpretaram um trecho do espetáculo com exclusividade para a piauí e, em seguida, falaram com a reportagem. Tudo parece se manter vivo por um tempo mesmo depois que a interpretação termina. Marília diz ao repórter que a peça é uma espécie de justiça ao filho, invisibilizado justamente por sua condição de “filho de Marília Gabriela” e alvejado por boatos de que ele tinha um caso secreto com Reynaldo Gianecchini enquanto ela estava casada com o ator, de 1999 a 2006. “Eu vou dizer uma coisa: eu devia essa peça a mim mesma porque eu precisava tirar o Theodoro dessa coadjuvância cruel que resolveram entregar a ele em vida. Foi uma loucura o que aconteceu.” Theo responde: “Eu entendo, mas esse discurso que você está fazendo agora não existia antes. Se existisse, eu nem teria feito (a peça). Eu já não tenho paciência para isso. Eu entendo o que você fala, mas eu já fiz as pazes com relação a esses desgastes, eu fui escancarado do armário antes da Pabllo Vittar existir. Sou uma das primeiras bichas que saíram do armário, em 2015. E me fuderam por isso.”
Pode estar aí a origem da força teatral percebida quando mãe e filho estão em cena: eles são de verdade. Marília, diga Theo o que quiser, ainda sente o peso da dívida: “Eu sempre carreguei culpa com relação aos meus filhos, por tê-los abandonado, por não querer renunciar ao meu trabalho. Você não sabe o número de vezes que eu já pedi desculpas a eles.” Seu outro filho, que hoje vive nos Estados Unidos, é Christiano, 52 anos, fruto do primeiro casamento da jornalista com o empresário Reinaldo Haddad, morto em 1974.
O espetáculo é dirigido por Bruno Guida e tem texto de Michelle Ferreira, que fez longas entrevistas com os atores antes de elaborar os diálogos. Depois do início visto pela reportagem, a peça, diz Marília, fica ainda mais pesada. “Você não viu nada”, ela diz à reportagem. Mesmo que sob o verniz de um humor autoirônico bem trabalhado por Theodoro, que é filho da jornalista com o segundo marido, o astrólogo Zeca Cochrane, morto em 2021, eles chegam a questões desconcertantes.
Marília lembra da mãe, mulher da qual nunca viu os dentes por jamais vê-la sorrir, passam pela depressão vivida recentemente por Theo em Portugal, “o maior buraco que vivi com a minha mãe ao meu lado sete dias da semana, 24 horas por dia”, e chegam às fraturas expostas publicamente, como a entrevista feita pela jornalista com a cantora Madonna, em 1998, que a levou a ser espezinhada por parte da opinião pública que a considerou despreparada, e pelos boatos envolvendo Gianecchini. “Claro, eu estava lá fingindo que era casada com Gianecchini esse tempo todo”, ela ironiza, com a mesma incredulidade do filho ao falar sobre o assunto.
“Sim, vamos falar sobre isso”, diz Theodoro. “A história clássica que roda nesse lado B aí é que eu era modelo e fui para Paris”, diz. “Contam que eu estava viciado em heroína nessa época. Já fui parado por várias bichas que vieram perguntar isso pra mim. Bem, em Paris, segundo a história, eu dividia um apartamento com um modelo mais velho com o qual me casei, mas o Giane acabou aparecendo e foi meu anjo salvador”, conta, com uma indignação crescente e quase cômica.
A primeira autobiografia de Rita Lee (por sinal, a autora do tema Marília Gabi Gabriela), lançada em 2016, trazia algo que Marília e Theo talvez exerçam sem perceber. Rita conseguiu amenizar traumas e neutralizar boatos falando sobre eles com um humor preciso. A saída dos Mutantes, a prisão por porte de drogas em 1976, os discos que deram errado, as críticas negativas. A graça de sua linguagem torna tudo menor. Teria Marília a necessidade de também dar a sua versão dos fatos, se preciso, rindo deles? “Eu nunca tive pudor a respeito de nada relacionado à minha vida. Eu me continha porque era necessário quando estava trabalhando, mas sempre fui muito liberal. Sempre achei que todo mundo tem uma vida rica de horrores, de maravilhas, de prazeres e de desprazeres. Todo mundo tem direito à sua história, e eu não me importo muito com a opinião dos outros.”
A ideia da peça surgiu há dois anos, depois de Theo dirigir a mãe em uma série de entrevistas no YouTube chamada Gabi de Frente de Novo. Depois de sua longa trajetória na tevê, com destaques em suas passagens pelos programas TV Mulher, na Globo, de 1980 a 1984; Cara a Cara, na Bandeirantes, de 1987 a 1995; e De Frente com Gabi, de 1998 a 2000, 2002 a 2004 e 2010 a 2015, no SBT, Marília estava longe das entrevistas e dos potenciais entrevistados. Com o programa no YouTube, ela se aproximava de uma geração de influencers que não conhecia, como Hugo Gloss, Juliette, Camila Coutinho e Boca Rosa, pessoas com muitos milhões de seguidores. Theodoro, com 120 mil, foi entrevistado no último programa, e algo aconteceu. “A entrevista deu muito mais audiência do que todas as outras. Eram mãe e filho ali, discutindo mesmo”, diz ele. Ali, a peça começou a ser concebida.
Na tevê, Marília mostrava que não havia território proibido naqueles que se sentavam à sua frente. Quando preciso, ela seguia o jogo da entrevista delicadamente, de pergunta em pergunta, até atingir o “ponto de ousadia”. Agora, a mesma regra valeria para si? Estaria pronta para revelar-se diante da plateia? Ela primeiro explica o que pensava quando estava diante de um entrevistado: “Eu sempre tive a maior curiosidade em saber em que aquelas pessoas eram parecidas comigo. Eu não tenho a menor dúvida de que todo mundo tem um pouco de todo mundo. Da simples criatura à mais sofisticada, do maior bandido à maior santidade, do menos privilegiado ao mais privilegiado. Eu tenho certeza, e minha profissão me ajudou a saber disso, de que nós somos todos muito parecidos.” E responde sobre seu estado emocional em cena: “Eu choro todos os dias no ensaio. É mais forte do que eu. Eu estou atuando, óbvio, tenho um tempo, tenho uma marcação, mas a história é nossa, e eu choro.”
Há um momento de acerto de contas em que Marília responde às acusações que o filho Theodoro faz contra ela, de forma dura, mas apropriadamente. A partir disso, depois de tentar contornar as situações levantadas por ele, ela diz que “jorra tudo o que estava preso”. “É quando passo a falar da minha emoção, do que é ser mãe e do quanto ele foi cruel comigo.”
Em 1998, Marília fez uma entrevista com a cantora Madonna para o programa De Frente com Gabi, do SBT. A conversa, gravada em um restaurante de Nova York, foi tensa, como se vê no material largamente divulgado pelo YouTube. Madonna respondia de forma fria, desinteressada, com poucas palavras e, por algumas vezes, dizendo que não havia entendido a pergunta. Marília, atestam as imagens, não desistia nem se abalava com as reações da artista. Trazia temas pertinentes, como a relação de Madonna com os pais ou com o sucesso, mesmo sendo supostamente inconvenientes à artista. Em um determinado momento, a jornalista chegou a pedir que Madonna não fosse tão monossilábica. Quando foi ao ar, parte dos fãs da cantora acusaram Marília de não ter se preparado para ter Madonna como entrevistada. As acusações voltaram recentemente, pelas redes sociais, com as notícias da vinda da cantora, que fará um show em Copacabana para esperadas 1 milhão de pessoas, no Rio, em 4 de maio, um dia depois da estreia da peça de Marília.
“Sim, vamos falar desse fetiche da entrevista com Madonna que virou uma coisa tão maior do que na verdade foi. Ele se tornou uma fantasia malvada, uma fantasia cruel de um público que não me pergunte qual é exatamente, mas que tinha um prazer em acabar comigo”, diz a jornalista. “É uma coisa louca porque esse assunto voltou e hoje há pessoas que nem eram nascidas [em 1998] comentando sobre a entrevista.” Ela comenta o que sente com relação às críticas à sua atuação: “Sendo honestíssima com você: foi chato? Foi chato pra caralho. Mas, querido, não foi uma coisa que me machucasse nesse nível que as pessoas insistem em querer me machucar até hoje. Se eu encontrasse a Madonna, diria: ‘Você não sabe a merda que deu aquela entrevista.’”
Marília aceita submeter-se a um rápido bate-bola, o formato consagrado em seus programas.
Uma entrevista: “A que fiz com a atriz Shirley MacLaine é divertida. Ao chegar a um hotel de Londres, ela fez assim [Marília se levanta para interpretá-la]: ‘Está tudo certo? A luz é essa?’ Dissemos que sim, e ela respondeu: ‘Então, com licença.’ Ela se abaixou, mexeu em algo que havia levado, mandou baixar os refletores, erguer as câmeras e foi mudando tudo. Eu comecei a rir. Ela virou e disse: ‘E você, não ria. É luz baixa e câmera alta.’ Eu nunca mais me esqueci disso.”
Uma esperança: “Que eu consiga achar calmaria no envelhecimento que já deu as caras e eu acho que não, porque minha cabeça continua acelerada. Que eu consiga conviver com esse processo sem me irritar em profundidade. Sem me revoltar.”
Uma frase de otimismo: “‘Só o desejo inquieto, que não passa, faz o encanto da coisa desejada. E terminamos desdenhando a caça pela doida aventura da caçada.’ Mário Quintana.”
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