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    A primeira ilustração de Andrea Ventura, feita com base em foto equivocada, e à direita a versão corrigida

questões de identidade

Mário de Andrade assombrado por sósias e homônimos

A revista americana New York Review of Books se baseia em imagem de outra pessoa para ilustrar resenha sobre três traduções do escritor - mas essa confusão não vem de hoje

Carlos Augusto Calil | 16 jan 2024_10h08
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A revista The New York Review of Books, em sua edição de 5 de outubro, deu uma alentada resenha sobre o lançamento nos Estados Unidos das traduções de Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter, O Turista Aprendiz e Amar, Verbo Intransitivo, obras de Mário de Andrade vertidas para o inglês respectivamente por Katrina Dodson, Flora Thomson-DeVeaux (The Apprentice Tourist) e Ana Lessa-Schmidt (To Love, Intransitive Verb). O artigo veio encimado por uma ilustração de Andrea Ventura, artista italiano radicado em Berlim, para representar o autor. A partir de uma foto obtida na internet, ele reforçou na figura o olhar estrábico e distraído, os lábios carnudos e bem delineados em carmesim, o nariz adunco, a postura adamada que remete a Pasolini. Uma figura queer, perfeitamente sintonizada com os tempos atuais. Só que não é a de Mário de Andrade.

Searching for the true Brazil (Em busca do autêntico Brasil) é o título do comentário assinado por Larry Rohter, ex-correspondente do New York Times no Brasil. No período em que serviu ao jornal, Rohter reportou regularmente a ascensão do país ao cenário internacional, envolveu-se em conflito com o governo Lula, em razão de uma inconfidência sobre o presidente, foi ameaçado de expulsão como persona non grata, mas superou tudo rendendo-se ao fascínio do país que o abrigava.

Como muitos de seus antecessores viajantes ilustres, Rohter procurava desvendar o enigma do país dos contrastes violentos. Quando a Discoteca Oneyda Alvarenga lançou em parceria com o Sesc/São Paulo uma caixa com seis CDs de registros musicais da Missão de Pesquisas Folclóricas, recolhidos no Norte e Nordeste em 1938 por iniciativa de Mário de Andrade, Rohter publicou uma reportagem no New York Times, em 25 de janeiro de 2007, que não teve similar no Brasil. Com o título Long lost trove of music connects Brazil to its roots (Tesouro musical esquecido liga o Brasil às suas raízes), o jornalista ilustra sua matéria com quatro fotografias da missão e não esconde a admiração pela improvável Mr. Andrade expedition. Nenhuma imagem de Mário acompanhava esse texto.

Quem, como o artista italiano, der um Google em Mário de Andrade vai encontrar entre as inúmeras fotos do escritor na galeria virtual um retrato de Bellini Antônio Ferraz, publicado com destaque no Correio Braziliense em 26 de fevereiro de 2020. Essa foto – que às vezes aparece em primeiro lugar – visivelmente destoa de todas as demais, que são autênticas. Apesar de saber-se feio, Mário de Andrade nunca evitou uma câmera fotográfica; ao contrário, deixava-se “fotar” com frequência.

A origem desse equívoco surgiu por iniciativa do Museu Afro Brasil. Para celebrar o Dia da Consciência Negra de 2007, o então diretor do museu, o artista Emanoel Araújo (1940-2022), propôs a João Sayad (1945-2021), então secretário de Cultura do Estado de São Paulo, a realização de uma exposição de rua de banners imensos com fotos de afrodescendentes eminentes como Machado de Assis, Luís Gama, Teodoro Sampaio, André Rebouças, Carlos Gomes, Castro Alves, Chiquinha Gonzaga etc., de cuja origem racial já se perdera a memória. Entre os homenageados estava Mário de Andrade, porém a imagem reproduzida não era a dele, e sim a de um desconhecido, o mesmo que acabou por ilustrar em outubro a resenha da New York Review of Books (que já trocou a ilustração por outra feita sobre uma imagem correta).

Por dever de lealdade, naquela época alertei imediatamente João Sayad sobre o engano; surpreso, ele repassou a questão ao diretor do Museu Afro Brasil. Emanoel Araújo reagiu defensivamente, politizando a disputa, como se o meu objetivo fosse negar a negritude de Mário, um dos trunfos de sua exposição. Insinuava que eu não tinha legitimidade para contestar a imagem.

A questão vazou para a imprensa, e a coluna de Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, resolveu investigar. Por minha sugestão, a repórter entrevistou o crítico e ensaísta Antonio Candido e a professora Telê Ancona Lopez, que confirmaram o engano. Candido declarou que a foto “não é dele”. A reportagem pediu confirmação: “Eu conheci o Mário de Andrade. Não é ele, uai! Eu olho e vejo que não é. Mário de Andrade não era estrábico, como aparece na imagem do governo. E não tinha tanto cabelo”, disse Candido à Folha, em 21/11/2007. Na mesma coluna, Telê Ancona Lopes declarou: “Examinei a foto, dei a pesquisadores, passei também para os meus alunos. Não é o Mário de Andrade. Os olhos, a orelha, o cabelo e o formato do rosto, nada é dele. […] De que revista é essa foto? De que jornal?”

Apesar disso, Emanoel Araújo não reconheceu o erro. Disse que confiava na fonte da pesquisa, o crítico e poeta Oswaldo de Camargo, autor de Negro drama: em torno deda cor duvidosa de Mário de Andrade (2019). Araújo bem que poderia ter observado a capa desse mesmo livro: traz um desenho do rosto verdadeiro de Mário.

Sayad mostrou-se leal ao seu colaborador: “Nós confiamos muito na nossa fonte e por isso pusemos a foto na rua.” Esperava que Oswaldo de Camargo informasse “a origem da imagem”, até hoje não esclarecida. Emanoel Araújo não recuou da posição e manteve o banner errado até o fim da exposição.

João Sayad era um tipo especial de intelectual e político. Economista de profissão, foi secretário do estado e da prefeitura de São Paulo, presidente da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura) e ministro do Planejamento. Para a celebração do Dia da Consciência Negra mobilizou as secretarias de Cultura, de Educação e Saúde, e prefeituras do interior numa jornada de afirmação e provocação, bem ao seu gosto de polemista.

Sua escrita refinada sempre recorria à ironia. Num texto publicado na Folha de S.Paulo em 20 de novembro de 2007, intitulado Bob Dylan, Sayad afirmou: “Não existem raças. São fantasmas. […] Existe racismo.” E fustigava as manifestações de intolerância racial nos Estados Unidos e no Brasil. No país do Norte, os judeus são obrigados a criar nomes artísticos para esconder sua origem: Bob Dylan, Woody Allen, Tony Curtis, Kirk Douglas etc. Entre nós, precisamos reconhecer as “personalidades brasileiras que ou têm pele mais escura, ou cabelo crespo, ou que são descendentes de escravos. Em muitos casos, esquecemos de propósito ou não nos ensinaram que eram negros.”

Sayad fazia questão de acentuar na “foto de Mário de Andrade moço e antes de ficar careca, com a testa larga emoldurada pelo cabelo crespo”, a condição do “intelectual e poeta [que] era negro”. Induzido ao erro pelo Museu Afro-Brasil, ele não podia saber que a testa larga não era a do Mário de Andrade, que por acaso tinha a sua. Ao final, uma provocação generosa: “A ideia é criar confusão; que ninguém saiba no futuro quem é negro e quem não é no Brasil.” Com a foto do sósia de Mário consagrada pela autoridade pública, outro tipo de confusão estava instalada. E viria a colorir as páginas da New York Review of Books.

Mário de Andrade era mulato escuro entre dois irmãos claros. Era o “tira-teima”, na expressão de Antonio Candido. Neto de Ana Francisca Gomes da Silva, a bela e austera negra filha da lavadeira que se tornou esposa de Joaquim de Almeida Leite Moraes, lente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Mário convivia com o retrato de “vovó Aninha” permanentemente exposto na sala de visitas da casa da mãe.

Consta que a avó paterna, Manoela Augusta de Andrade, era também mestiça, mas dela não restou imagem. Seu filho, Carlos Augusto, não foi reconhecido pelo pai, Pedro Veloso, que lhe negou o sobrenome. Uma situação semelhante e inversa à dos avós maternos. Os traços do “bardo mestiço”, que poderia ter se chamado Mário Veloso, provinham das duas avós.

Membro de uma família mestiça, Mário não alardeava sua condição racial. Tinha plena consciência dela e quando foi necessário afirmá-la o fez com firmeza e desprendimento. Em 1942, recusou um convite para visitar os Estados Unidos, alegando que lá não seria bem tratado devido à cor da pele.

O mesmo se pode dizer de sua sexualidade complexa, da sua “monstruosa sensualidade”. Tratou-a com discrição e autocontrole e uma única vez, em carta ao confidente Manuel Bandeira, tratou de sua “tão falada (pelos outros) homossexualidade”. No entanto, deixou traços cifrados ao longo da sua obra. Embora possível, a condição de afrodescendente queer, como propõe a ilustração da resenha da New York Review of Books, sobre ser uma apropriação sintonizada com o Zeitgeist, não interessava a Mário de Andrade.

O efeito de estranhamento dessa imagem, decorrente do anacronismo, é tão mais sugestivo quando recai num rosto de sósia, numa fake face, conforme a novilíngua, como se elaborada por um programa de inteligência artificial.

O assunto permaneceu no ar e, quando Mário se tornou o autor homenageado da Flip, o jornal O Globo repercutiu a polêmica. A matéria Mário de Andrade e seu xará maravilhoso, escrita por Maurício Meireles, foi publicada em 04/07/2015. Na entrevista, eu inadvertidamente especulava sobre a possibilidade do sósia ser o “xará maravilhoso” da Pauliceia desvairada, o jogador Mário Andrada, do Club Athletico Paulistano. Ainda acreditava que a pesquisa do Museu Afro Brasil tinha alguma base histórica; na época, eu embaralhava sósia com homônimo, colaborando para ampliar a confusão.

No mesmo ano, a reabertura da Casa Mário de Andrade, na Rua Lopes Chaves, com a exposição permanente Morada do Coração Perdido, sob minha curadoria, permitiu elaborar uma linha do tempo a partir dos retratos autênticos do escritor para evitar futuros equívocos. Pelo visto, em vão. O site de mesmo título dedica uma caixa ao “xará maravilhoso”, e na documentação fornecida pela família do homônimo, na verdade descendente dos Andrada e Silva, de José Bonifácio, o moço, apresentou outro rosto, que nada tinha de sósia .

O misterioso ser que assombra a identidade de Mário continuava um fantasma, como antecipou João Sayad. 

Recentemente, a jornalista Rita Lunardi, interessada em Mário de Andrade, procurou informação na internet e deparou com a imagem do seu avô, Bellini Antônio Ferraz (1900-73), em destaque junto às fotos do escritor. Funcionário público, Ferraz estava em 1935 lotado na repartição de Águas e Esgotos da capital paulista. Dele pouco se sabe além de ser violinista amador. A neta não faz ideia de como aquela fotografia – que nem a família possui – se tornou pública.

No processo de identificação do sósia surgiu mais um homônimo, este de conhecimento do próprio Mário de Andrade, que a ele dedicou uma crônica afetuosa: “Os numerosíssimos homônimos deste mundo, afinal todos! somos tão parecidos…” Tratava-se de Mário Sobreira de Andrade, educador que conquistou a admiração dos conterrâneos, ao implantar nos anos 1930, no Ceará, seu estado natal, a experiência pioneira da Escola Rural.

A publicação simultânea das cuidadosas traduções de obras de Mário de Andrade em inglês, objeto da resenha da New York Review of Books, suscita a expectativa de que esse escritor tão caro à cultura brasileira venha a receber o reconhecimento internacional que merece, na esteira das consagrações de Machado de Assis e Clarice Lispector. A resenha prova que, mesmo no estrangeiro, ele continua assombrado por fantasmas de sósias e homônimos.

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