CRÉDITO: ALLAN SIEBER_2022
2018, o ano que não terminou
E ainda há quem pense que em 2022 haverá uma eleição normal
Fernando de Barros e Silva | Edição 188, Maio 2022
O risco de ruptura da ordem democrática deixou de ser uma miragem já faz tempo. Os que ainda insistem em dizer que as instituições etc. etc. etc., já não sabem muito bem como explicar isso às crianças. Não sabemos mais se podemos chamar sem ressalvas o que temos hoje de democracia – e a partir de quando será impossível fazê-lo. Esse lusco-fusco ainda ilude otimistas renitentes, confunde a todos e favorece uma única pessoa. Quando anoitecer será tarde demais para descobrir que Jair Bolsonaro cortou a energia da democracia e mergulhou o país na escuridão do autoritarismo.
A eleição de outubro não irá decidir apenas quem governará o Brasil pelos próximos quatro anos. Não é mais uma disputa rotineira entre propostas políticas, algumas mais progressistas, outras mais conservadoras, todas elas enraizadas no solo comum da democracia. Este regime, consagrado pela Constituição de 1988, vigorou entre nós da eleição de 1989 à eleição de 2014. Não existe mais.
Em 2018, as coisas já haviam desandado. O consenso democrático começou a periclitar em 2014, quando Aécio Neves contestou na Justiça o resultado das urnas, e implodiu dois anos depois, quando PMDB e PSDB se aliaram às forças conservadoras para derrubar Dilma Rousseff. A observância às formalidades da destituição cobriu o processo de cinismo, mas não logrou esconder o arbítrio e a violência perpetradas contra Dilma, é claro, mas sobretudo contra a democracia. Esse aspecto essencial ficou gravado na história pela fala de Bolsonaro, figura então periférica, que dedicou seu voto pelo impeachment à memória de Brilhante Ustra, o torturador que fora carrasco da própria Dilma na ditadura militar. Naquela cena abjeta de poucos segundos está condensado o que seria o futuro sombrio do país.
Àquela altura, porém, durante o reinado afônico de Michel Temer, todos fingiam respirar ares democráticos, com exceção da esquerda, obviamente, apeada do poder na mão grande, com o apoio da imprensa e do pato da Fiesp. Dançavam todos no ritmo da Lava Jato, embalados pela papagaiada da Ponte para o Futuro.
Quando o general Walter Braga Netto foi nomeado por Temer interventor no Rio de Janeiro, no início de 2018, o jornal O Globo festejou em editorial a chegada dos militares para pôr ordem na casa. O mesmo Braga Netto que agora, depois dos serviços prestados a Bolsonaro, deve ganhar como prêmio a vaga de candidato a vice-presidente. Numa de suas últimas obras como ministro da Defesa, divulgou, no aniversário do golpe de 1964, um documento em nome das Forças Armadas fazendo a apologia do período ditatorial – “marco histórico da evolução política brasileira”.
Foi também em 2018, durante a encarnação de Braga Netto como interventor, que Daniel Silveira, então candidato a deputado federal, exibiu orgulhoso a placa com o nome de Marielle Franco partida ao meio, logo depois do assassinato da vereadora pela milícia do Rio. Assim como a fala de Bolsonaro dois anos antes, aquela imagem de Silveira exprimia, de forma sintética e brutalmente didática, qual seria o Zeitgeist brasileiro dali em diante.
Agora, Silveira se vê transformado por Bolsonaro em mártir da liberdade de expressão. É o supremo escárnio, mas é o que temos para hoje. Na distopia bolsonarista, é Silveira, e não Marielle, quem simboliza o futuro desta nação. Bastaria isso para entendermos por que outubro não terá uma eleição qualquer. Um segundo mandato para Bolsonaro é um passaporte para a autocracia, como mostra a experiência dos países que inspiram a cartada do presidente.
Existe quase um consenso de que Bolsonaro já comprou seu bilhete para o segundo turno. O outro bilhete está nas mãos de Lula, há tempos num patamar alto e estável. A expectativa de que o presidente pudesse derreter, abrindo o caminho para a soi-disant terceira via, se desfez. Ainda falta chão, mas há pelo menos uma certeza: essa não será uma campanha política normal.
Em 2018, o processo eleitoral já foi marcado por anomalias gritantes. Lula, que liderava todas as pesquisas, foi preso e impedido de concorrer. Bolsonaro, que se elegeu, sofreu um atentado a um mês do primeiro turno. E Sergio Moro, responsável pela prisão do petista, se tornou ministro da Justiça daquele que se beneficiou da ausência do favorito. A presença nociva dos militares na política já se fazia sentir. Em abril, na véspera do julgamento do habeas corpus a Lula pelo STF, o então comandante do Exército, general Villas Bôas, soltou na praça a famosa nota para intimidar a Corte.
As coisas desde então não melhoraram. Em junho passado, o então comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira, resolveu fingir que seu colega de farda, Eduardo Pazuello, não havia participado de um comício ao lado de Bolsonaro no encerramento de uma dessas motociatas mussolinianas que se tornaram um símbolo da virilidade de Bolsonaro. Oliveira fez, por assim dizer, uma graça, concedendo a Pazuello, o mais relapso ministro da Saúde da história republicana, um perdão camarada. Com seu gesto, consagrou o entendimento de que o braço forte e a mão amiga do Exército estavam a serviço de um governante, e não do Estado brasileiro.
Pouco depois, em agosto, realizou-se a pedido de Bolsonaro um desfile de veículos militares na Praça dos Três Poderes, horas antes da votação sobre a incorporação do voto impresso ao sistema eleitoral, medida por fim rejeitada pela Câmara. A exibição do poderio militar naquele dia resultou um tanto cômica, com tanques soltando fumaça negra conforme avançavam do nada a lugar nenhum. A despeito do anticlímax, o brocholão dos blindados configurou o esforço de Bolsonaro para usar as Forças Armadas em benefício de suas intenções antidemocráticas.
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, estava, portanto, coberto de razão quando disse, no final de abril, que há um empenho para se levar as Forças Armadas para o “varejo da política”, orientando-as a “atacar o processo” eleitoral e “tentar desacreditá-lo”, o que seria, segundo ele, “uma tragédia” para o país.
A tragédia está em curso. Pautado por Bolsonaro, o general Paulo Sérgio de Oliveira, agora na Defesa, qualificou a fala de Barroso como “irresponsável”. Viu nela uma “ofensa grave a essas instituições nacionais permanentes do Estado brasileiro” e disse que isso “afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições”. As declarações ecoam o tom intimidador que se tornou regra entre os fardados. Mas, sobretudo, não param em pé à luz da atuação do próprio ministro, que deixou de punir Pazuello quando era comandante do Exército.
A afronta de Bolsonaro ao STF, anulando com uma canetada a condenação de Daniel Silveira, é um gesto provavelmente irreversível na direção da esculhambação do país. A normalização desse episódio gravíssimo não deixa de ser igualmente espantosa e serve como termômetro do momento atual. Apesar das reações indignadas, o que fica como saldo no fim é um misto de paralisia e indiferença, impotência e passividade, como se à legião de aviltados restasse apenas a esperança de que os dias do inominável estão contados. E se não estiverem? Bolsonaro comanda a máquina do Estado, tem o Exército a seu favor, casou em comunhão de bens com o Centrão e entupiu a população civil de armas. Parte do eleitorado – homens, sobretudo – se identifica profundamente com o que ele tem de pior.
Quatro anos de desmanche do país não bastaram para recompor o chamado campo democrático. Ele a rigor não existe. Como em 2018, os candidatos estão tocando o serviço, indiferentes à gravidade da hora histórica. A terceira via – e a imprensa – segue brincando de dois extremos. O PT, por sua vez, não cansa de espezinhar a aliança com Geraldo Alckmin, o que nas atuais circunstâncias é como reclamar do tempero da comida numa casa que está pegando fogo. Com Lula e Bolsonaro no segundo turno, corremos o sério risco de ver os erros de 2018 reeditados em nova versão.
Em 2018, o mercado editorial brasileiro foi inundado por uma série de livros sobre o fim da democracia. Era preciso entender a nova onda autoritária no mundo, conhecer suas causas e seu modus operandi, a despeito das particularidades de cada país. Essa bibliografia segue muito atual, mas deixou de ser uma novidade. O Brasil está escrevendo o seu próprio livro, basta olhar em volta para ver como acaba uma democracia. Se ganhar, Bolsonaro não convidará seus adversários para a noite de autógrafos.
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