53 anos de sobe-e-desce
53 anos de sobe-e-desce num prédio na Cinelândia carioca
Nilton da Silva | Edição 5, Fevereiro 2007
Nilton da Silva é ascensorista do edifício Odeon, na Cinelândia carioca, há mais de meio século. Tudo somado, já realizou mais de 900 mil viagens pelos 13 andares do prédio construído em 1926, pilotando um elevador Otis de 1,5metro x 1,5metro, com portas pantográficas que datam da mesma época. Ganha 1.300 reais de salário e outro tanto como aposentado de 73 anos.
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QUARTA-FEIRA, 4 DE JANEIRO Como o elevador não tem botão, o passageiro entra, diz o andar, e eu tenho que guardar aquilo na cabeça. Tem camarada que entra por último, fica perguntando coisas (“O senhor sabe qual o andar do fulano?”,”Onde fica o escritório do doutor sicrano?”). Aí eu esqueço os andares que me pediram e tenho de perguntar de novo. Também tem gente muito estranha. Às vezes, o camarada desembarca na subida e me pergunta: “Na volta o senhor passa aqui?” Ora, isso é um elevador. Por onde é que eu posso descer, pelos fundos? Hoje subiu comigo o doutor César, diretor de uma companhia de minério de carvão. Gente boa. Aproveitei para pedir emprego para um amigo que mora em Edson Passos, subúrbio do Rio. Sua esposa está grávida e desempregada, e com uma criança chegando tudo se complica.
QUINTA-FEIRA Hoje cedinho, pouco depois de deixar uma funcionária do Sindicato de Exibição Cinematográfica no 9º andar, ela me pede para chamar o síndico. Alguém tinha tentado arrombar a porta de Blindex do sindicato, mas não conseguiu. Dá para acreditar que os ladrões voltaram para arrombar a sede da Sociedade dos Músicos do Teatro Municipal, noutro andar? Levaram um microcomputador, uma máquina de escrever, um arquivo, e ainda deixaram em cima da mesa a ferramenta usada no assalto. A polícia não quis vir uma segunda vez no prédio, mas como a dona da Associação tem conhecimento com a alta patente da Civil, acabaram vindo.
SEXTA-FEIRA Chego ao trabalho por volta das 6h10min. Tomo café num barzinho perto do edifício Odeon. Depois subo até o 13º andar para trocar de roupa e vestir minha farda.
Por volta das 9h30, tive de dar uma saída para ir ao banco receber minha aposentadoria. Enquanto esperava na fila, um senhor ficou preso na porta eletrônica. Antes do guarda perguntar qualquer coisa, ele já foi colocando o celular e as chaves no compartimento transparente, e tentou passar novamente. Não deu. O guarda estava calmo: “O senhor tem mais algum objeto de metal?” “O objeto que tinha já coloquei no compartimento”, respondeu o senhor, já bravo. Tentou passar novamente mas a porta prendeu de novo e começou um bate-boca. A porta acabou se abrindo sem ninguém saber como. A gente fica com medo quando essas coisas acontecem nos bancos. Outro dia, um vigia baleou e matou um rapaz que causava problemas por causa dessa porta eletrônica.
DOMINGO Minha esposa acordou atrasada para a missa e foi pedir à nossa filha para levá-la até a igreja. Mas a menina é evangélica, da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro, e não quis levantar cedo. Por sorte, veio uma Kombi de lotação e acabou tudo bem.
SEGUNDA-FEIRA Por volta do meio-dia, eu estava no térreo do Odeon, esperando passageiros, quando escutei tiros. Acho que vinham do outro lado da Praça Mahatma Gandhi. As pessoas começaram a correr, procurando abrigo. Algumas entravam em prédios, outras se escondiam em bancas de jornal.
TERÇA-FEIRA O dia começou agitado no Odeon. Um dos elevadores da frente estava parado, em reforma, e um dos fundos quebrou. Como só temos quatro para uso do público, o público reclamou. Também vi uma fumaça sair da caixa de máquinas, mas o mecânico verificou que o problema era só uma peça fora de posição e tudo foi resolvido sem problemas. Lembro da vez em que meu elevador parou de repente entre dois andares. Parou bem no meio, deixando somente uma brecha. Dois rapazes que estavam no elevador conseguiram saltar. Uma moça, não. Teve pânico. Quando viu a altura do fosso, disse que só sairia dali quando o elevador voltasse ao normal. Não tinha jeito. Dois funcionários do prédio trouxeram uma escada, mas tivemos de colocar uma toalha nos olhos da passageira para que ela conseguisse descer.
QUARTA-FEIRA Semana passada, um colega tinha me pedido para passar uma rifa de camisetas. Sempre quando passo rifa coloco o nome da minha filha e do meu filho. O resultado saiu ontem. Minha filha foi sorteada e ganhou seis camisetas.
SEXTA-FEIRA Uma menina que trabalha no 5º andar, que estava voltando de férias, subiu comigo no elevador: “Oi, Seu Nilton, como vai o senhor?” “Ótimo”, respondi. “O senhor está sempre ótimo, não é?” “É, a gente tem que ser positivo. Mesmo que esteja ruim, tem que responder que está bom.” Lembrei da vez que um mecânico de máquinas de escrever foi fazer manutenção no escritório de contabilidade da sala 924. Ele chegou por volta das 7h30min. Umas duas horas depois, o Júlio, funcionário do escritório de contabilidade, veio me chamar e disse: “Nilton, preciso de um favor seu. O mecânico de máquinas de escrever e calculadoras faleceu. Está sentado lá na cadeira, debruçado na mesa. Está imóvel e gelado. Eu não posso ver essas coisas, passo mal. Não dá para você ir lá tirá-lo da mesa, colocá-lo no chão, e cobrir com um pano até a família chegar? Eu falei que tudo bem. Fui lá, tirei o corpo da cadeira e coloquei no chão. O coitado ficou assim até às 13h, esperando a ambulância e a chegada da família. O corpo desceu no elevador que eu estava dirigindo, e ainda tive que ajudar a tirá-lo de lá também.
SÁBADO Minha filha e eu fomos levar minha esposa para fazer exames de laboratório. Para fazer a ficha é toda aquela burocracia. A atendente que liga para a empresa do plano de saúde para pegar autorização fica uns 30min no telefone. Depois, você ainda espera um tempão para ser atendido. O exame leva outro tanto e você acaba perdendo quase a manhã toda. Aproveitamos para ir ao supermercado. Minha filha, que resolveu fazer regime na semana passada, compra um monte de coisas light – legumes, verduras, frango. Mas não adianta nada porque ela come muito. Saímos de lá e fomos almoçar num restaurante. Comemos bastante.
SEGUNDA-FEIRA Antigamente, quando havia lançamento de filmes brasileiros, e o grupo Luis Severiano Ribeiro era o maior, vários artistas apareciam lá no prédio e subiam comigo. Alguns, como o Mazzaropi, o Grande Otelo e o Oscarito, já me conheciam. Eu também fazia bico como operador de cinema em algumas salas. Teve uma vez que o Severiano Filho foi ao cinema Veneza, me viu lá e perguntou o que eu estava fazendo ali. Acho que ele ficou assustado porque eu trabalhava para ele e também trabalhava como cabineiro no prédio da sua empresa.
QUINTA-FEIRA Cheguei às 5h50 da manhã, e fui relembrando de quando fui efetivado como cabineiro do Odeon, em janeiro de 1955. Aqui estou, até hoje. Naquela época, não usávamos uniforme. Depois veio a época em que o uniforme era vermelho. Eu parecia bombeiro, só que o uniforme ia desbotando, com meia-dúzia de lavagens mudava de cor.
A profissão tem dificuldades. Num elevador manual como este, a alavanca de comando forma um ângulo de 180 graus. Quando você a desloca para o meio, o elevador fica parado. Quanto mais você a apontar para as extremidades, mais ele acelera, para cima ou para baixo. Tinha que controlar isso também. Hoje nem preciso mais olhar para a manivela. Sou igual esse elevador aqui: velho, mas melhor que muito novo aí.
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