ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
A bunda é cósmica
Rebolando contra o patriarcado
Luiza Miguez | Edição 106, Julho 2015
Acompanhada ao fundo pelo canto intermitente de pássaros e por um som relaxante de água corrente, Fannie Sosa começa a dar instruções. “Feche os olhos por um momento e respire. Livre-se da sua cabeça e de seu ego”, diz, devagar e suavemente, como uma professora de ioga. Em seguida, lança a bunda para trás, com uma expressão de prazer, agitando os quadris para os lados.
“Desenhe círculos no chão, como se tivesse um lápis pendurado na vagina. Conecte-se com o seu espaço uterino mágico”, continua, sem disfarçar um sorriso travesso no canto da boca. A performance é uma introdução à aula de twerk, dança da mesma família do funk carioca e da hula havaiana, que explora o movimento das pernas e dos quadris.
Twerk vem de twist and jerk – girar e sacudir. Sosa, que estuda a coreografia como parte de sua tese de doutorado, em Paris, se ocupa há quatro anos de guiar corpos inflexíveis pelos caminhos do livre rebolado. Para dançar, ela ensina, é preciso flexionar os joelhos, jogando o quadril para trás, e torcer a bunda para os lados. Em seguida, deve-se impulsionar a parte inferior do corpo para cima e para baixo. O efeito que se procura é o da gordura da bunda chacoalhando sem controle.
“Conheci o twerk por umas amigas dançarinas, que me mostraram como fazer. Já tinha tido contato com várias danças semelhantes, mas fiquei muito inspirada por essa que era só rebolado”, conta. Nas semanas seguintes, dançou e conversou sobre twerk sem parar. Contava para as amigas sobre a descoberta e ensinava os movimentos. “E toda vez, nessas conversas, acontecia uma transmissão muito forte. Comecei a me dar conta de que se tratava de algo muito mais profundo. A bunda é cósmica.”
Sosa só atendeu a porta depois que a campainha tocou pela quinta vez. “Mil desculpas pela demora, acabei de acordar. Estou vindo de vários dias de festas”, explicou-se. Com o cabelo amarrado em um coque, a franja despenteada apontando para cima, ela carregava o café da manhã num prato: maçã, manga e maracujá cortados. “Lover, você me faria uma salada?”, disse para Christian McLaughlin, seu namorado, que naquele fim de tarde de domingo circulava pela casa vestindo apenas uma cueca tingida ao estilo tie-dye.
“Nasci em Buenos Aires. Minha mãe é argentina, branca, mas meu pai é brasileiro, baiano, afrodescendente”, contou, ainda mastigando as frutas. Sosa tem 28 anos. É mais para baixinha, tem o corpo volumoso, sardas nas bochechas e a pele morena. Morou na capital Argentina até os 18 anos – em Palermo, área nobre da cidade. “A negritude no meu bairro era inexistente. Cresci com a Xuxa e as modelos magras e loiras como ideal de beleza, me sentia feia.”
Ao terminar o ensino médio, ganhou uma bolsa do governo francês para fazer a graduação na França. Estudou artes do espetáculo e novas mídias na Universidade Paris 8 e morava em Aubervilliers, na periferia da cidade. “Descobri as culturas africanas lá, aprendi a me reconhecer como mestiça e comecei a aceitar o meu corpo”, disse. Foi também na periferia parisiense que ela conheceu o twerk.
Sosa conta ter encontrado o prazer ao aprender a dança que remexia a gordura do corpo. “Falam que sua gordura é feia, indecente. Você acaba ficando toda reprimida e querendo emagrecer. O twerk transforma a gordura da bunda em forma de expressão”, explicou, logo depois levantando a voz para perguntar ao namorado se ele traria uma rodela de limão para que pudesse temperar a salada.
Chamou então a atenção para a repressão social aos movimentos da pélvis. “As mulheres têm essa parte do corpo muito colonizada pelo patriarcado e pela sua extensão completa que é o complexo industrial-militar-farmacêutico”, explicou, ainda sonolenta, enquanto massageava o próprio pé. Sosa acredita que o twerk é o caminho de volta a um estado menos reprimido, como quando se é criança e o corpo tem mais mobilidade. “Danço para me lembrar disso e também para resistir”, concluiu.
Os relatos mais ortodoxos dão conta de que os movimentos provocantes do twerk nasceram nos anos 90, em festas na periferia de Nova Orleans, mas Sosa contabiliza alguns anos a mais para a dança pélvica. “O twerk existe desde o neolítico!”, anunciou, incluindo o twist and jerk entre os movimentos ritualísticos de celebração da fertilidade da mulher que foram “fragmentados pelo patriarcado com a perseguição às bruxas e a escravidão”, mas que sobreviveram, de diferentes formas, nas periferias das cidades.
Na tarde em que recebeu a piauí, Sosa aguardava as 105 pessoas que haviam confirmado presença no workshop de twerk que ela viera ministrar no Rio de Janeiro. Na missão de desmantelar o patriarcado com a bunda, ela recebeu do governo francês uma bolsa de doutorado que lhe permite ensinar o rebolado pelo mundo. Seus twerkshops já passaram por países como Espanha, Inglaterra, Dinamarca, Alemanha, Holanda e, agora, Brasil.
Dois minutos antes do início da aula, Sosa se deu conta de que não havia enviado aos alunos o endereço do curso. Num pulo, digitou no celular o número da casa em que estava e correu para o banho. Algum tempo depois, vendo que eu ainda esperava entediada pela professora, McLaughlin, o namorado, me ofereceu um calhamaço de quase 500 páginas para que eu me distraísse.
“É um livro que nós estamos lendo sobre sociedades matriarcais”, explicou o rapaz. McLaughlin é alto, magricela e tem os cabelos longos e encaracolados. Diz ter sorte, como “um homem branco e privilegiado”, por ter sido “altamente educado sobre o twerk”, graças a Sosa.
Ia falando mais sobre o livro e sobre sua condição masculina, quando veio um grito do banheiro. “Lover, você me traria uma toalha?”, disse Sosa, interrompendo o namorado no meio da frase. “É claro!”, respondeu o rapaz, saindo rápido ao seu encontro, com uma toalha na mão.
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