Na licitação vencida por JR Pereira para construir o autódromo, sua empresa torna-se dona de 41,7% da Floresta do Camboatá. “Tem o pensamento de erguer uns prédios para o Exército? Tem, não vou mentir”, disse Pereira. “Mas tem outros projetos, como moradia para o Minha Casa Minha Vida” CRÉDITO: GUSTAVO PEDRO_2019
A chicana
Uma floresta contra o autódromo de Crivella e Bolsonaro
Roberto Kaz | Edição 158, Novembro 2019
“Olha só, um rastro de mão-pelada. É um bichinho noturno, tipo guaxinim”, explicou o ambientalista Felipe Candido enquanto apontava para o solo. “Deve ser recente, talvez de ontem.” Em seguida, caminhou até uma árvore jovem, de tronco fino, com uns 2 metros de altura. “Isso é um jacarandá-da-baía, que está em extinção. Cada vez que venho aqui, está um pouco maior.” Tirou o celular do bolso e bateu uma selfie junto da planta. “Lá na frente tem outra árvore, uma baraúna. É proibido cortá-la.”
Naquela manhã de agosto, Candido vestiu uma bermuda cáqui e uma jaqueta camuflada para se embrenhar na Floresta do Camboatá – um naco de Mata Atlântica vigiado pelo Exército, no subúrbio carioca de Deodoro, onde a Prefeitura do Rio de Janeiro planeja construir um autódromo. “Os militares chamam aquilo ali de Camboja do Brasil, por causa da vegetação”, continuou, indicando uma área pantanosa, em que nadava uma capivara. “Já vi jacaré por lá. Mas faz muito frio hoje, eles devem estar agrupados.”
Seguimos a pé por uma estrada de terra batida, cercada de árvores e larga o suficiente para a passagem de um carro. Candido ora mostrava a vegetação – “Esse é um angico. Tem 15 metros” –, ora chamava a atenção para os artefatos de guerra: “Isso no chão é um estilhaço de granada de 75 mm.” A Floresta do Camboatá abrigou o paiol central do Exército, que explodiu três vezes – uma na década de 1940 e outras duas nos anos 1950 –, espalhando projéteis pela área.
“Espera aí que vou fazer uma live para o Face”, disse o ambientalista, assim que subiu uma pequena ladeira. Colocou o telefone celular na horizontal e começou a filmar os arredores, silenciosamente. “Fico calado para o pessoal ouvir o barulho das aves”, comentou depois de um minuto. A meu pedido, enumerou alguns dos animais que avistou no local desde que o visitou pela primeira vez, em 2012: “Vi cobra, camaleão, gambá, preguiça, tatu, carcará, papagaio, falcão-peregrino, pica-pau, coruja, tucano… E agora os caras querem vir com uma retroescavadeira e botar tudo abaixo.” Fez uma pausa, antes de concluir com uma frase algo dramática: “Chamo isso de holocausto ambiental.”
Todo o território onde hoje está o Rio de Janeiro já foi coberto por Mata Atlântica. A partir de 1808, quando a Corte portuguesa chegou à cidade – então promovida a capital do Império –, a paisagem mudou em ritmo acelerado. Regiões próximas à Baía de Guanabara, onde aportavam as caravelas, deram lugar a ruas, praças e edificações. Áreas distantes, como Deodoro, viram nascer fazendas de cana, café e laranja.
Com a fagocitose urbana, o pouco que restou de Mata Atlântica ficou restrito aos maciços do Gericinó, da Pedra Branca e da Tijuca, os pontos mais altos da cidade. Na planície, o único lugar que permaneceu conservado foi a Floresta do Camboatá, incorporada pelas Forças Armadas em 1907, durante a construção da Vila Militar de Deodoro.
Longe do Centro e relativamente isolada, a floresta passou a abrigar o principal paiol do Exército – por guardarem armamentos, depósitos do gênero costumam estar em lugares de difícil acesso. Numa tarde de 1948, uma explosão matou pelo menos 28 pessoas e deixou cem feridas, segundo os jornais. Dez anos depois, outra explosão – bem maior – fez uma única vítima fatal, mas espalhou dinamites, bombas e granadas pelo terreno. “Os apavorados moradores da região abandonaram suas casas às pressas, bairros vizinhos viraram réplicas de vilarejos bombardeados por artilharia pesada e o barulho das explosões foi ouvido até mesmo em áreas da Zona Sul”, escreveu o historiador Luiz Antonio Simas em um artigo no jornal O Dia. O paiol acabou desativado e se transformou na granja do Exército, que também seria fechada em 1970.
Dali em diante, a Floresta do Camboatá atravessou um período de inatividade militar – ao menos declarada –, que foi interrompido em 1983, com a criação do 1º Batalhão de Forças Especiais, liderado pelo então major Mauro Barroso. “O pessoal caçava passarinho e jogava bola lá dentro. Resolvi ocupar”, contou Barroso, hoje um general aposentado de 74 anos. A área desmatada ganhou pequenos edifícios, refeitório, centro médico, piscina e campo de futebol. Já a área de vegetação recebeu a visita de dois cientistas do Jardim Botânico, que fizeram um inventário das árvores ali existentes, a fim de munir o Exército de informações para os treinamentos em mata fechada.
“Eu era estagiário naquela ocasião”, lembrou o biólogo Cyl Farney Catarino de Sá, de 59 anos, que agora integra o quadro de pesquisadores fixos do Jardim Botânico. “Um dia chegou um ofício do major Barroso perguntando se alguém poderia analisar a vegetação do Camboatá. Coletei muita planta que está até hoje aqui no acervo.” Com o levantamento em mãos, Barroso mandou etiquetar algumas árvores. “Fiz isso para a tropa saber que estava passando por algo importante, tipo um jacarandá”, justificou, orgulhoso. “Aquilo era muito rico. Um subordinado meu, o tenente Gurgel, chegou a contar 190 pés de mangueira.”
Atualmente, o Camboatá soma 2 milhões de m2 – ou 200 hectares –, extensão um pouco maior que a do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Desse total, 57% são ocupados pela floresta (estima-se que haja de 180 mil a 200 mil árvores) e os outros 43% são desmatados (o batalhão do Exército já saiu de lá, embora a área ainda seja vigiada por alguns poucos militares). Um laudo de 2012 do Jardim Botânico, baseado nas pesquisas de Farney de Sá, dá conta de que aquele ecossistema abriga espécies raras da flora brasileira, além de servir como ponto de descanso e alimentação para morcegos e aves que frequentam os três maciços da cidade. O documento afirma que a mata, apesar de pequena, cumpre uma “função desproporcionalmente importante para a manutenção da viabilidade genética de populações de animais e plantas” no Rio de Janeiro. Sugere, por isso, que a floresta seja transformada numa área protegida – ou melhor, num parque natural, “muito mais indicado do ponto de vista socioambiental do que a instalação de um autódromo, que certamente teria que suprimir centenas ou milhares de árvores nativas, remanescentes do Campo de Treinamento de Camboatá, e consequentemente diminuir drasticamente a biodiversidade da região”.
O Rio de Janeiro já dispôs de um autódromo, em Jacarepaguá, que sediou por dez anos a etapa brasileira do mundial de Fórmula 1. Em 1990, a corrida retornou para o autódromo paulistano de Interlagos, que acabara de remodelar o traçado, e ali permanece até hoje. Jacarepaguá passou, então, a receber competições de menor importância, como a Indy, a Fórmula 3 e a MotoGP. Em 2006, a prefeitura carioca – dona do local – inutilizou parte da pista para a construção de uma arena esportiva e um parque aquático, que seriam usados durante os Jogos Pan–Americanos de 2007. À época, o prefeito Cesar Maia assinou um acordo com a Confederação Brasileira de Automobilismo comprometendo-se a achar uma área que alojasse um novo autódromo. Pediu ajuda à União, proprietária de vários terrenos na cidade, incluindo o da floresta.
“Escolhemos o Camboatá por ser acessível, em termos de transporte, e por estar numa das regiões mais carentes do Rio”, explicou Ricardo Leyser, que trabalhou durante treze anos no Ministério dos Esportes, onde chegou a ser ministro. Havia, ainda, a ideia de que Deodoro pudesse ganhar outras arenas – como, de fato, aconteceu – caso o Rio fosse escolhido para abrigar a Olimpíada de 2016. “Era um projeto integrado, entende?”
A história caminhou a passos lentos até 2010, quando o novo prefeito, Eduardo Paes, sancionou uma lei complementar que autorizava dezenas de mudanças urbanísticas na cidade, com o intuito de adaptá-la para a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos. Uma das alterações permitia justamente a construção do autódromo em Deodoro (embora o terreno seja da União, o uso dele é determinado pela legislação municipal). Ato contínuo, a Fundação Getulio Vargas foi contratada pelo Ministério dos Esportes para produzir um relatório sobre a área.
Técnicos da FGV elaboraram o parecer após três visitas ao Camboatá – uma de carro, outra sob chuva e a terceira já com o objetivo de definir “as possíveis portas de entrada para o autódromo”. O relatório contrariava o levantamento de Farney de Sá, ao indicar que os técnicos não ha-viam encontrado “indícios de espécies raras, em extinção ou endêmicas” na mata (as visitas contaram com a presença de um único engenheiro ambiental). O documento também apontava que o autódromo era “viabilizável do ponto de vista ambiental”, e que deveria ser construído o quanto antes, sob risco de que “a mancha verde do Camboatá desse lugar à usual ocupação desordenada”, um eufemismo para favela, já que há três comunidades próximas ao local. Sugeria, por fim, que o empreendimento fosse nomeado “Autódromo Internacional do Camboatá, em homenagem às origens do Brasil, ao seu ambiente e às comunidades que residem na região”. Procurada pela piauí, a FGV não comentou o relatório. Afirmou que seus serviços “são protegidos por cláusula contratual de confidencialidade, cabendo ao cliente toda e qualquer divulgação relativa ao trabalho”.
O parecer foi então apresentado ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea), uma autarquia responsável por liberar obras de grande porte em todo o território fluminense, que emitiu uma licença prévia, no dia 6 de outubro de 2011, atropelando a obrigatoriedade de haver um Estudo de Impacto Ambiental. Quatro dias depois, Felipe Candido criou uma página no Facebook em defesa da floresta.
Felipe Candido é um ex-soldado do Exército que estudou em escola pública e fez um semestre de história numa faculdade privada. “Tive que abandonar o curso quando nasceu minha primeira filha.” Aos 44 anos, ele mora numa casa simples, que pertence à sua mãe, no bairro de Guadalupe, próximo a Deodoro. Ganha 1 560 reais por mês para trabalhar na parte administrativa de um colégio municipal em São João de Meriti, cidade da Baixada Fluminense.
Candido frequenta o Camboatá desde criança, época em que a área ainda acolhia o Batalhão de Forças Especiais. “Minha tia morava do lado”, relembrou. “A molecada pulava o muro do quartel para pegar manga e jaca. A jaca dali é uma delícia.” Por vezes, os garotos contavam com a anuência informal de algum militar para usar o campo de futebol nos fins de semana. “Vi muito pássaro voando para lá e escutei história de jacaré que aparecia nos quintais da vizinhança quando chovia.”
Mesmo assim, Candido só conseguiu conhecer a mata fechada sete anos atrás, após criar o grupo no Facebook (como a floresta é controlada pelo Exército, as visitas costumam ocorrer de maneira ilegal, nos fins de semana, quando os militares estão de folga). “A primeira coisa que fiz foi tirar os sapatos para sentir a terra nos pés”, contou. “Depois fiquei caminhando lá dentro até anoitecer. Parecia que eu tinha reencontrado um velho amigo.” Ele já levou ambientalistas, repórteres e os quatro filhos para explorar a área. “Há uns meses, apresentei a floresta a um trio de ornitólogos, que mapeou 63 espécies de aves. Os caras fotografaram até saí-azul, que é super-raro. Tem gente que viaja a vida inteira atrás desse bicho e não acha.”
Hoje a página sobre a floresta no Facebook reúne 5 mil seguidores. Candido a alimenta diariamente com fotos da fauna e da flora locais, e com matérias a respeito do autódromo. Ele defende que o circuito seja feito no Campo do Gericinó, uma área desmatada, a 2 km do Camboatá, que também pertence ao Exército.
Em 2017, abriu uma rádio comunitária, em sua própria casa, que transmite um boletim de hora em hora com informações sobre o Camboatá. A música vem de um computador ligado à internet, e o sinal da emissora, que se chama Panorama FM, atinge tanto o bairro de Guadalupe quanto parte de Deodoro.
“Aliás, está quase na hora de o boletim entrar no ar”, avisou, entusiasmado, enquanto ligava um aparelho de rádio na sala. Tocava uma música do grupo Cidade Negra. Logo em seguida, a voz do ator Mateus Solano ecoou da caixa de som: “A floresta do Camboatá é o mais importante pedaço de Mata Atlântica em áreas planas que restou na cidade do Rio. E é justamente nesse espaço que a prefeitura deseja construir um autódromo, causando a morte de mais de 100 mil árvores e uma quantidade enorme de aves, mamíferos e répteis. Não somos contra o autódromo, desde que seja em outro lugar.” Depois a música voltou a tocar.
Foi em novembro de 2011, um mês após o Inea autorizar a derrubada da floresta, que o projeto do autódromo começou a ser debatido no Conselho Municipal de Meio Ambiente, o Consemac, órgão deliberativo formado por integrantes da prefeitura e da sociedade civil, que cuida do patrimônio natural da cidade do Rio. “Até aquele momento, praticamente ninguém do grupo sabia que o Inea vinha tocando o processo de licenciamento – nem mesmo o Carlos Alberto Muniz, que era vice-prefeito e secretário de Meio Ambiente”, contou a advogada Sonia Rabello, então vereadora pelo Partido Verde.
Seis meses depois, o Consemac encaminhou um documento com duas sugestões a Eduardo Paes. Pedia que a floresta fosse transformada em parque natural e que a prefeitura elaborasse um projeto de lei para construir o autódromo em outro lugar. “O Paes quase teve uma síncope”, recordou Rabello. “Disse que não ia acatar nossas sugestões porque o licenciamento do Inea se sobrepunha à legislação municipal.” O parecer foi engavetado.
O vice-prefeito Carlos Muniz resolveu, então, chamar para uma conversa o engenheiro Abílio Tozini, que também integrava o Consemac. “O Muniz me falou: ‘Eu, como vice, só posso avançar até aqui, mas você pode ir além se procurar o Ministério Público’”, disse Tozini. No final de 2012, o MP estadual acabaria propondo uma ação civil pública contra o Inea, acusado de quatro ilegalidades na concessão da licença prévia.
“Na verdade, o Eduardo Paes nunca foi entusiasta do projeto”, me contou Muniz durante uma conversa no Centro do Rio. “Tanto que não houve constrangimento, da parte dele, quando mostrei que a região escolhida para o autódromo era inviável.” Perguntei se o vice-prefeito havia de fato encorajado Tozini a procurar o MP. “A ação civil pública foi bem-vinda”, limitou-se a responder. Em janeiro de 2013, a juíza Simone Lopes da Costa, da 10ª Vara de Fazenda Pública, concedeu uma liminar que obrigava o Inea a suspender o processo de licenciamento, sob pena de multa diária de 100 mil reais.
A partir daí, os governos estadual e federal recorreriam, sem sucesso, em diversas instâncias. Com o caso mergulhado num limbo jurídico, parte dos 104 milhões de reais que o Ministério dos Esportes pagou ao Exército pela área acabariam sendo usados para retirar restos de granadas e dinamites do Camboatá. Em 2012, um aspirante a sargento havia morrido durante um treinamento, quando acendeu uma fogueira numa área da mata que ainda continha explosivos do antigo paiol.
“Estávamos com tudo pronto na época. Só faltava solucionar o impasse do Inea”, resumiu Ricardo Leyser, o ex-ministro dos Esportes. “Por isso, achei estranho quando anunciaram, neste ano, a construção de um novo autódromo.” Explicou: “Se o nosso, que preservava a maior parte da floresta, não foi aprovado, como outro, que não preserva quase nada, vai ser? Parece que o deles vai terraplanar tudo.”
A história do autódromo carioca pode ser dividida em duas fases. A primeira vai de 2006 a 2018, quando o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, confirmou a liminar contrária à licença prévia do Inea, reiterando que qualquer obra no Camboatá só poderia ocorrer com a apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental. A segunda fase se sobrepõe à primeira, já que começou no dia 8 de março de 2017, quando a Prefeitura do Rio – agora sob o comando de Marcelo Crivella – fez uma convocatória, no Diário Oficial, para interessados na “implantação, operação e manutenção de Autódromo Parque, na região de Deodoro”.
O episódio decorreu de uma chicana jurídica, uma vez que a liminar do STF citava o governo do estado, mas não a prefeitura. “O Crivella aproveitou esse vácuo para apresentar um projeto novo”, afirmou Abílio Tozini. Embora versasse sobre o mesmo mote (um autódromo), no mesmo local (a Floresta do Camboatá), o plano do prefeito diferia do anterior ao trocar o investimento governamental por uma Parceria Público-Privada. Nessa parceria, o próprio texto da licitação seria elaborado externamente, sem custos para o município, por meio de um instrumento legal chamado Procedimento de Manifestação de Interesse. O consórcio vencedor pagaria até 11 milhões de reais à empresa responsável pelo texto quando a obra fosse finalmente licitada.
Apenas uma firma se habilitou a elaborar os termos da licitação: a Crown Assessoria e Consultoria Empresarial, de José Antônio Soares Pereira Junior, o JR Pereira. Também só uma empresa participou da disputa para a construção do autódromo, a Rio Motorpark Holding S.A., que pertence igualmente a Pereira.
Em maio de 2019, assim que divulgado o resultado, o Ministério Público Federal pediu o cancelamento da licitação. “A prefeitura fez tudo errado. Abriu a concorrência sem nenhum Estudo de Impacto Ambiental, sem licença prévia e sem ter a titularidade da área, já que o Camboatá continua sendo da União”, argumentou o procurador Renato Machado. “E naquela área ainda incide a Lei da Mata Atlântica, que só permite desmatamento para construções de utilidade pública, como rodovias. Acontece que um autódromo não é uma obra de utilidade pública.”
Nas semanas seguintes, o noticiário mostraria que:
- A Rio Motorpark não existia até onze dias antes de aberta a concorrência pública, apesar de o edital requerer postulantes com “experiência em administração de autódromos internacionais”.
- O capital social da empresa era de 100 mil reais, embora o edital exigisse um mínimo de 69 milhões de reais.
- A carta de fiança apresentada pela Rio Motorpark exibia a assinatura do Maxximus Bank, que tem sede num sobradinho em Bauru (SP) e não dispõe de autorização do Banco Central para avalizar esse tipo de transação.
O noticiário também mostraria que uma terceira empresa de Pereira, a Crown Processamento de Dados, havia falido em 2008, deixando algumas dezenas de ações trabalhistas e uma dívida de 24,7 milhões de reais com a União.
Ainda assim, o empresário norte-americano Chase Carey, CEO da Fórmula 1, viajou a Brasília, no último mês de junho, para uma reunião a portas fechadas com Pereira, o governador Wilson Witzel, do Rio, o senador Flavio Bolsonaro e o presidente da República, Jair Bolsonaro. “Noventa e nove por cento de chance, ou mais, de termos a Fórmula 1 a partir de 2021 no Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro à imprensa após o encontro.
A Fórmula 1 foi apenas um esporte até meados dos anos 1990. A partir daí, virou um mercado bilionário e um componente do jogo político. O divisor de águas se deu com a entrada das grandes montadoras de carro, como Honda, Mercedes e BMW, que viram na categoria uma oportunidade para desbravar novos mercados. Em 1999, o campeonato passou a contar com uma prova na Malásia. Depois vieram China, Cingapura, Coreia do Sul, Índia, Turquia e Dubai – países sem nenhuma tradição no esporte. O caminho, de mão dupla, fazia a F1 aumentar seu capital enquanto os participantes recém-admitidos se sentiam agraciados com uma espécie de selo internacional de modernidade.
Todo esse processo foi capitaneado por Bernie Ecclestone, um britânico de 1,59 metro que dirigiu a modalidade com mão de ferro por quase quatro décadas. Em 2016, a Formula One Management (FOM), empresa que organiza o campeonato, foi vendida por 8 bilhões de dólares a uma companhia norte-americana de entretenimento chamada Liberty Media. No ano seguinte, Ecclestone cedeu a presidência para Chase Carey, executivo que parece saído de uma novela das seis, tão caricato é seu bigode branco.
“Ninguém entendeu quando a Liberty Media comprou a Fórmula 1”, disse-me o empresário Tamas Rohonyi, de 80 anos, promotor do Grande Prêmio Brasil desde 1980, durante uma conversa em seu escritório, colado ao Shopping Cidade Jardim, um dos endereços mais caros de São Paulo. “A Liberty não é uma empresa de automobilismo. É de tevê a cabo.” Tudo indica que os novos donos pretendem transformar o mundial de corrida num grande espetáculo televisivo, ao estilo do Super Bowl, o jogo final do campeonato de futebol americano.
Como a Liberty tem capital aberto, as ações da FOM passaram a ser negociadas na Nasdaq, uma das três bolsas de valores de Nova York. “Isso aumentou a obrigação de a categoria dar lucro, senão os papéis desvalorizam”, prosseguiu Rohonyi. “Só que as emissoras de tevê já não querem pagar pelo evento o que pagavam no passado, porque o público migrou para a internet.” A solução foi aumentar o valor que a FOM cobra de cada cidade que almeja o direito de sediar uma etapa do campeonato. Abu Dhabi, por exemplo, paga cerca de 70 milhões de dólares anuais. Já São Paulo desembolsa aproximadamente 30 milhões por ano, de acordo com o contrato mais recente, que termina em 2020.
“Os proprietários da Liberty me perguntaram se o governo poderia dar mais dinheiro. Acho até que o João Doria conseguiria convencer algumas empresas. Mas aí vem esse Seu Pereira, que eu não conheço, e se oferece para pagar 35 milhões de dólares”, continuou Rohonyi, referindo-se a JR Pereira. “O cara promete um autódromo zero bala, com desenho do Hermann Tilke [o mais famoso arquiteto de pistas da F1], na cidade que tem Copacabana. É irrecusável. Eu, se fosse o Chase Carey, também aceitaria.”
“Só que a Fórmula 1 não funciona na base do know how. É know who”, enfatizou, com um trocadilho em inglês. “São 21 países e 21 promotores, mais pilotos, montadoras, governos, redes de tevê e federações de automobilismo. Tem uma lógica para lidar com tanta gente.” Rohonyi acredita que Carey – a quem se referiu, em certo momento da conversa, como “aquele do bigode grande” – chegou à modalidade sem o tal know who. “O Bernie Ecclestone pegava o telefone, ligava para o Vladimir Putin, e o homem atendia”, exemplificou, citando o presidente da Rússia.
Ele considera improvável que um eventual autódromo no Rio fique pronto até o campeonato de 2021. “Poucas pessoas entendem a complexidade de um evento de Fórmula 1. Pouquíssimas. São 9 mil profissionais em ação. Precisa de seis meses de testes antes da primeira corrida.” Rohonyi lembrou que, segundo a licitação elaborada e vencida por JR Pereira, o ganhador torna-se proprietário de 41,7% do Camboatá. “Ou seja: eles vão construir um ‘autódromo’ na área que pertence à União”, conjecturou, fazendo o movimento de aspas com os dedos quando falou a palavra autódromo, “e usar aqueles 41,7% do terreno para erguer apartamentos.” Concluiu: “Se o Seu Pereira conseguir colocar de pé o que promete, parabéns. Não acho ruim a Fórmula 1 voltar ao Rio. Acho ruim vender ilusão.”
A Comissão de Valores Mobiliários é uma autarquia federal que fiscaliza irregularidades no mercado financeiro. Em 23 de maio deste ano, três dias após sair o resultado da concorrência pública, a CVM enviou um ofício a JR Pereira, pedindo-lhe que esclarecesse de onde viria o dinheiro para a construção do autódromo. Embora o empresário enfatizasse em entrevistas que não usaria recursos públicos, a comissão suspeitou que a obra pudesse ser financiada por fundos de pensão estatais. Como Pereira não se pronunciou, a CVM mandou novo documento depois de duas semanas, estipulando uma multa diária de 1 mil reais se ele descumprisse o prazo de resposta. Mais silêncio.
Em junho, a comissão escalou dois inspetores para visitar, no Centro carioca, uma sala comercial que a Rio Motorpark havia registrado como sua sede na Receita Federal. “No local foram recebidos por uma senhora que se identificou como Elizabeth”, dizia o relatório da CVM sobre o caso. “Após a apresentação dos inspetores, essa senhora se recusou a mostrar documento de identificação ou fornecer seu nome completo. Ela declarou não ser empregada do sr. JR Pereira e desconhecer a Rio Motorpark e, dessa forma, se negou a receber o ofício. Posteriormente, a sra. Elizabeth mostrou conhecer JR Pereira e afirmou que ‘o sr. José Antônio viaja muito’.” Os inspetores concluíram que o endereço – também sede de outras cinco empresas, incluindo um escritório de advocacia, uma seguradora e uma administradora de bens – era utilizado “de alguma forma” por Pereira.
No fim daquele mês, a comissão publicou um despacho interno em que alertava para a “desproporcionalidade” entre o porte da Rio Motorpark e o custo estimado do autódromo (697 milhões de reais). “Tal situação demonstra um baixo compromisso dos controladores da Rio Motorpark com o projeto e a baixa probabilidade de eles fornecerem suporte financeiro ou operacional no futuro, se necessário”, afirmava o texto. Em resposta, a empresa remeteu uma carta à entidade em que reclamava da visita feita pelos inspetores (“Algo que foge ao modus operandi tradicional da CVM”) e questionava a conclusão sobre a “desproporcionalidade” (“Não parece possível que esta autarquia associe ‘capital social’ a ‘patrimônio’ ou a ‘capacidade de investimento’”). Argumentava que o julgamento sobre a saúde financeira da empresa já havia sido feito pelo poder concedente – “no caso, o município do Rio de Janeiro” – e pedia “uma retratação pública o mais rápido possível, de forma a reduzir os danos causados”.
Em julho, o Ministério Público do Estado passou a investigar a licitação. Em paralelo, a Justiça Federal concedeu uma liminar, a pedido do MPF, impedindo a obra sem a realização de um Estudo de Impacto Ambiental. Foi nesse período que conheci o ativista Felipe Candido. Ele estava em frente à Câmara dos Vereadores do Rio, discursando para meia dúzia de gatos pingados. “Hoje, a caminho daqui, dois militares à paisana me abordaram e disseram, em tom de ameaça, que eu parasse de dar entrevistas sobre a Floresta do Camboatá”, denunciou, inflamado. “Aquela área é considerada uma joia pelo Jardim Botânico e está assim porque o Exército a manteve preservada até hoje. Mas esse mesmo Exército, que jurou proteger nossas riquezas, atua agora como uma empresa privada, para beneficiar o consórcio fraudulento daquele JR Pereira.”
José Antônio Soares Pereira Júnior, o JR Pereira, tem 46 anos e compensa os quase 2 metros de altura com o sotaque acolhedor de quem nasceu e se criou em Minas Gerais. No lado esquerdo da face e do pescoço, carrega as marcas de uma queimadura de terceiro grau, sofrida na infância. “Foi numa das fazendas de minha família, por causa da explosão de uma torre de abastecimento”, contou. “Passei por várias cirurgias, fui até no Ivo Pitanguy.” As marcas desencadearam uma série de bullyings, que só amenizaram quando ele, por volta dos 15 anos, fez intercâmbio numa escola chamada Glencoe, no estado norte-americano do Oregon. “Lá não havia nenhum brasileiro.” Depois, estudou na Universidade do Oregon.
À época, Pereira já colecionava alguns troféus de tiro esportivo. “Eu tinha sido campeão em Minas”, relembrou há dois meses, durante um almoço num restaurante da Zona Sul carioca (a federação mineira da modalidade confirmou o título, acrescentando que Pereira era um “atleta promissor”). O conhecimento prévio o levou a frequentar um curso militar de catorze meses, ministrado por oficiais da Marinha e do Exército norte-americanos. “Tive treinamento com os seals, os deltas, os boinas-verdes… Saí de lá desfrutando de uma camaradagem grande com os militares e condecorado como cidadão honorário dos Estados Unidos.” Até hoje, só oito pessoas receberam esse título, incluindo o premiê britânico Winston Churchill e a missionária católica Madre Teresa de Calcutá. JR Pereira não está entre as oito.
Ele afirmou ter voltado ao Brasil com 22 anos, quando passou a estudar engenharia elétrica na PUC de Minas Gerais. “Larguei o curso no último ano. Eu já trabalhava com as fazendas de gado da minha mãe e com importação. Continuava viajando bastante para os Estados Unidos.” Numa dessas viagens, soube que a privatização da telefonia brasileira abriria espaço para o uso de tecnologia GPS. Criou, então, uma empresa de rastreamento de veículos, a Crown Processamento de Dados. A firma comprava os aparelhos de GPS de uma companhia canadense, a WebTech Wireless, e depois pagava às montadoras para ter o direito de instalá-los nos carros. O lucro viria posteriormente, por meio de um plano anual, que permitia ao assinante ter o automóvel rastreado em caso de roubo. “Comecei botando o sistema no Golf, que era o carro mais roubado do Brasil. Deu tão certo que a Volkswagen quis colocar na frota toda.”
Em novembro de 2006, Pereira selou um contrato de dois anos com a Volks. Seis meses depois, a montadora informou à Crown que havia rompido o acordo. Alegou que a parceira acumulava “uma quantidade absurda de títulos protestados, por falta de pagamento”, que não entregara os GPS “nos locais, prazos e quantidades necessários”, e que não reembolsara a própria Volkswagen em 2,2 milhões de reais – dinheiro gasto pela multinacional para adequar sua linha de montagem à instalação dos equipamentos. A partir de então, a Volks começou a adquirir os GPS diretamente da WebTech, que também havia sido lesada pela Crown em 15 milhões de dólares, conforme Pereira admitiu num documento firmado com os canadenses em novembro de 2007.
Em 2008, o empresário pediu a falência da Crown Processamento de Dados, que já acumulava uma dívida ativa de 24,7 milhões de reais com o FGTS e a Previdência Social. Antes, no entanto, Pereira moveu uma ação contra a WebTech, alegando que a empresa havia atravessado seu acordo com a Volkswagen. Pediu uma reparação de 108 milhões de reais – valor que seria alcançado na possibilidade improvável de a Volks vender 1.073.931 carros durante os dois anos previstos pelo contrato rompido, e de metade dos donos desses carros assinarem o serviço de GPS.
Em sua defesa, a WebTech afirmou que a conta feita pela Crown era “mirabolante e fantasiosa […], desprovida de qualquer fundamento fático ou legal”. Mesmo assim, Pereira ganhou o processo duas vezes na primeira instância, mas perdeu duas vezes na segunda, até o caso chegar ao Superior Tribunal de Justiça, em 2016.
Em setembro passado, quando almocei com o empresário no Rio, ele confirmou que devia 24,7 milhões à União. “Em compensação, também tenho 300 milhões de reais para receber, por causa do processo que ganhei contra o fornecedor dos rastreadores”, argumentou, atualizando o valor da indenização. A afirmação não se sustenta. Primeiro, porque, em caso de vitória, o dinheiro iria para os credores que integram a massa falida. Depois, porque o STJ publicou uma decisão favorável à WebTech alguns dias após o almoço, concluindo que a quebra do acordo com a Volks se dera única e exclusivamente “por uma incapacidade operacional e financeira da própria Crown”.
Existe um pequeno perfil de JR Pereira no site de ex-alunos da Glencoe, a escola onde ele estudou nos Estados Unidos durante a adolescência. Ali o empresário definiu seu estado civil (“solteiro”), sua visão política (“meritocracia”) e sua crença religiosa (“viver a vida”). Num trecho em que é instado a se descrever, usou uma frase atribuída ao lobista Jack Abramoff, preso em 2006 num esquema de corrupção que envolvia a cúpula do Partido Republicano: Next to God, faith and country, nothing is more important than influence (Além de Deus, da fé e da nação, nada é mais importante do que a influência).
Pereira começou a se enfronhar no universo político em 2009, quando outra de suas empresas, a Crown Holding e Aquisições, transferiu 200 mil reais para o ex-tesoureiro do pt Delúbio Soares. O motivo do pagamento nunca ficou claro. Anos depois, a firma seria citada, mas não indiciada, numa fase da Operação Lava Jato.
Em 2015, o empresário voltou a circular por Brasília, desta vez como intermediário entre o senador Armando Monteiro, então ministro do Desenvolvimento do governo Dilma Rousseff, e a Lockheed Martin, a maior fabricante mundial de aviões de guerra, que tinha interesse em construir uma base de manutenção no Brasil. O projeto não prosperou, mas serviu de mote para que Pereira criasse, em 2016, uma companhia de carga aérea, a Bravo Industries, que chegou a anunciar a compra de dez aviões Super Hercules da Lockheed Martin. A empreitada também não avançou. Procurada pela piauí, a Lockheed Martin explicou que a Bravo fizera apenas uma carta de intenções: “Nunca obtivemos um contrato para a compra das aeronaves, portanto, não entregamos nenhum avião.”
Foi por volta dessa época que o empresário se interessou pelo autódromo carioca. “Eu, com muito acesso a advogados especializados em esporte lá nos Estados Unidos, passei a me informar sobre como funcionava essa coisa de autódromo. Cheguei a procurar o governo, na época do Eduardo Paes, para tratar do assunto, só que não deu em nada.” Paes, entretanto, me disse que nunca tinha ouvido falar de Pereira até recentemente.
Em 2017, no início do mandato de Marcelo Crivella, o empresário conseguiu lhe apresentar seus planos e foi bem acolhido. “Acontece que uma empreitada desse porte precisa dos três poderes alinhados, e o Crivella não tinha muito diálogo com o governador [Luiz Fernando] Pezão”, explicou durante o almoço. A falta de diálogo se manteve com a eleição do novo governador, Wilson Witzel. “Então o Gutemberg Fonseca [ex-secretário de Governo de Witzel] me apresentou ao Flavio Bolsonaro, que pegou para si essa bandeira. Eu disse ao senador que a Fórmula 1 precisava de um gesto.” No dia 27 de fevereiro deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão e o então secretário especial do Esporte, o general Marco Aurélio Costa Vieira, receberam Pereira em Brasília. Quatro meses depois, Jair Bolsonaro fez o tal gesto, declarando que a F1 tinha 99% de chance, “ou mais”, de vir para o Rio.
Por ordem da Justiça, a obra do autódromo só poderá começar depois que o Inea, o Instituto Estadual do Ambiente, aprovar o Estudo de Impacto Ambiental. O empresário acredita que isso logo ocorrerá. “Quando o Exército saiu de lá, em 2007, o Camboatá tinha apenas capim”, justificou, contrariando o laudo feito pelos biólogos do Jardim Botânico em 2012. “Hoje tem uma vegetação secundária, que não chega a ser uma floresta.” Argumentei que a Lei da Mata Atlântica impede o desmatamento de um ecossistema como aquele, com espécies em extinção. “Ali não incide a Lei da Mata Atlântica, porque a maior parte das árvores não é originária da região”, contrapôs. “Sem contar que espécie em extinção não é impeditivo, a gente vai reflorestar em área muito maior.”
Indaguei a Pereira se o terreno será de fato aproveitado para a construção de apartamentos, como eu ouvira de Tamas Rohonyi. “Tem o pensamento de erguer uns prédios para o Exército? Tem, não vou mentir”, respondeu. “Mas tem outros planos, como moradia para o Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Isso ainda está sendo analisado.” Ele disse que a Rio Motorpark gastou entre 12 e 13 milhões de reais até o momento – parte saiu de seu próprio bolso e parte da construtora espanhola Acciona, que aposta no projeto. De onde virão os 697 milhões de reais necessários à concretização do autódromo? “Segredo. Tenho uma receita de bolo que não abro para ninguém. Só digo que não vai ter fundo de investimento público.”
Pereira definiu como “perseguição total, coisa de fascismo policialesco” a investigação contra ele na Comissão de Valores Mobiliários. “A CVM não tem autoridade sobre mim. Não estou na Bolsa, não fui pedir dinheiro em fundo de pensão. Acho muito suspeito que isso aconteça três dias após o resultado da concorrência.” O empresário reclamou que a história do autódromo está sendo politizada em função da eleição presidencial de 2022. “Inventaram que a saída da Fórmula 1 de São Paulo enfraqueceria a campanha do Doria.” Segundo Pereira, o presidente do PSDB no Rio, Paulo Marinho, chegou a lhe mandar um recado a fim de saber quanto ele queria para desistir do autódromo. “Respondi que não faço isso.” Dias depois, telefonei para Paulo Marinho. Ele usou um vocabulário à Dercy Gonçalves para me dizer que não conhece Pereira, que não se interessa por Fórmula 1 e que o governador paulista, o tucano João Doria, não está preocupado com o assunto. “Certamente essa porra não vai para o Rio”, completou, numa frase até polida.
Voltei a encontrar Felipe Candido em agosto passado, na porta da Câmara dos Vereadores do Rio. Era a segunda vez, em dez dias, que ele fazia um périplo, de gabinete em gabinete, na tentativa de marcar audiência com os parlamentares. Meses antes, a Câmara havia aprovado de maneira unânime, em primeira votação, um projeto de lei do vereador Renato Cinco, do PSOL, que transformava o Camboatá em Área de Proteção Ambiental – o que impediria a derrubada das árvores. Antes que houvesse a segunda votação, rito obrigatório da Câmara, o trâmite foi paralisado pelo vereador emedebista Dr. Jairinho, da base de Crivella, que pediu vistas do projeto. A previsão é de que o PL seja votado no começo deste mês.
Candido estava acompanhado de Mauro Salinas, funcionário aposentado da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Cada um carregava uma pasta com panfletos impressos em papel A4. “Sozinha, a floresta do Camboatá tem dez vezes mais árvores que o Parque do Flamengo, o Campo de Santana, a Quinta da Boa Vista e o Passeio Público juntos”, apregoava o texto, citando quatro áreas verdes do Rio de Janeiro. “Tudo bem que queiram fazer um novo autódromo. Mas precisa destruir uma floresta com 200 mil árvores?”
Os dois bateram na porta do vereador Marcelo Arar (PTB), cujo gabinete tinha uma bandeira do Brasil e outra de Israel pregadas à parede. “Ele é totalmente pró-autódromo”, avisou Candido, antes de deixar um panfleto na sala e seguir para o gabinete vizinho, do vereador Luiz Carlos Ramos Filho (Podemos), que milita em defesa dos animais. “Já recebi isso aí”, falou o parlamentar assim que viu o papel. “Mas como vocês estão aqui, vamos conversar.”
Entramos os três na sala dele. “Vocês já rodaram quantos gabinetes?”, perguntou Ramos Filho, depois de ouvir o discurso sobre a floresta. “Hoje só estivemos neste andar”, respondeu Candido. “Mas na semana passada percorremos outros três. O Ítalo Ciba [vereador do Avante] quase me bateu. Disse que, se não rolar o autódromo, aquela área vai favelizar.”
“E o lance da licitação?”, quis saber Ramos Filho. Candido informou que a Rio Motorpark havia sido criada só onze dias antes de abrirem a concorrência. “A tendência é eu ir contra esse projeto, ainda mais porque afeta os bichos”, concluiu o parlamentar. “Sou da base do governo, mas não sou capacho de ninguém.”
Até o final daquela tarde, Candido bateria, quase sempre sem sucesso, na porta de outros nove gabinetes – entre eles, o de Carlos Bolsonaro (PSL), e o de Paulo Messina (PRTB), ex-braço direito de Crivella. “Vocês são de onde?”, perguntou uma assessora do vereador Welington Dias, também do PRTB. “Do movimento S.O.S. Floresta do Camboatá”, respondeu Candido. “Ah, do autódromo!”, ela disse, interessada. “Não, da floresta”, retrucou o ativista.
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O advogado e ambientalista Gustavo Pedro, de 43 anos, é o autor das fotos desta reportagem. Membro do Conselho Municipal do Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro, o Consemac, Pedro esteve na Floresta do Camboatá em julho deste ano, com mais dois ambientalistas para registrar a fauna de aves. Os três permaneceram lá das 6h às 11h30, período em que avistaram ou ouviram 63 espécies, algumas bastante raras. “Foi uma surpresa”, contou. “Achamos aves migratórias que não são comuns nem em áreas mais conservadas da cidade, como a Floresta da Tijuca.” Enumerou três: trinca-ferro, saí-de-pernas-pretas e saíra-sapucaia. “Essa última é migratória, vem da região de Florianópolis para cá durante o inverno.”
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