Os prédios de Oscar Niemeyer eram meio diáfanos, desenhados no ar como esqueletos de tábuas. Brotando do chão antes do arruamento, pareciam produtos da terra
A cidade do futuro meio século depois
Imagens da construção de Brasília
Milan Alram | Edição 34, Julho 2009
O fotógrafo Milan Alram viu Brasília pela primeira vez em julho de 1959. A nove meses da inauguração, ela não passava de um vasto canteiro de obras no cerrado agreste, que as máquinas de terraplenagem iam deixando ainda mais desolado. Brasília estava em seu melhor momento, como alegoria dos “Cinquenta anos em cinco”, na palavra de ordem do presidente Juscelino Kubitschek. Ou, como preferiu Oscar Niemeyer, “a meio caminho entre o projeto e a realidade”. Foi isso o que o arquiteto disse sobre o Palácio da Alvorada ao vê-lo sair do molde, no meio do nada. Iluminada por uma nesga de lua, a estrutura de concreto nu, sem “janelas,
acabamentos, vidros”, estava mais pronta naquele instante do que jamais ficaria.
“Nunca mais será como hoje”, previu Niemeyer, ao pé da colina, com o capim batendo-lhe no peito. Pensou que, se pudesse, “deixava ele assim”, como marco definitivo da capital imaginária, onde tudo poderia acontecer – e o Brasil sequer suspeitava das coisas que de fato aconteceriam.
Milan Alram chegou a Brasília naquele momento. Sem saber, fotografou de dia a visão que Niemeyer teve de noite. Ele não estava lá para fazer reportagem. Era um fotógrafo de publicidade, contratado pelas maiores agências da época. Passou uma semana na cidade, hospedado em grande estilo no Hotel Nacional, acompanhado de diretor de arte, redator e contato comercial, a convite da Novacap, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital.
As fotografias que ele fez naquela viagem nunca foram publicadas. Teve cópias enviadas a uma agência de Nova York. E, se saíram por lá, ele nem soube. Nas décadas seguintes, com parentes morando em Brasília, viajando diversas vezes à cidade, nunca mais a fotografou. Guardou a primeira impressão, da fase em que o tesoureiro da Novacap acertava os pagamentos da obra em mesas de bordel.
Menos de dois anos depois, com o governo Jânio Quadros abrindo inquéritos sobre as contas de Kubitschek, o tal tesoureiro se suicidou. A cidade que nascia para ser diferente começava a virar uma cidade brasileira habitual. E as fotografias de Milan, entre caixas e caixas de negativos, sumiram em seus arquivos pessoais por quase cinquenta anos.
Milan Alram é francês. Chegou ao Rio de Janeiro aos 13 anos, em 1939. Seu pai, um marceneiro formado
em escola de artes e ofícios, que o habilitara a fabricar artesanalmente até hélices de madeira para aviões, fugiu da sombra da Segunda Guerra que começava a baixar sobre a Europa. Aos 15 anos, Milan já podia se considerar carioca.
Como contínuo da Globo, “a editora de Porto Alegre”, ele ciceroneava fotógrafos como Ed Keffel, enviado da matriz para clicar o Rio. Keffel passaria à posteridade como o fotógrafo de O Cruzeiro, que esgotou várias edições da revista com flagrantes de um disco voador sobrevoando a Barra da Tijuca, nos confins do que então se chamava “o sertão carioca”.
A essa altura, de tanto andar nos calcanhares dos profissionais, Milan tomara gosto pela fotografia técnica. Tornou-se especialista em fotografar, com máquinas de grande formato, equipamentos industriais. Viveu uma fase tão boa para o ofício que, em 1967, irritado com o racionamento de energia elétrica que sabotava a refrigeração de seu estúdio, comprou uma passagem aérea Rio-Nova York-Paris e, quando se deu conta, tinha inaugurado uma carreira internacional.
Passou sete anos na Europa, entre Paris e Milão, fotografando para grandes empresas, como a Air France e a Philips, que um dia lhe enviou pelo correio “o maior cheque de toda a vida”. Só fez as malas de volta para o Brasil por questões de família. Fundou, em 1982, no bairro da Glória, o Kronokroma, o único laboratório fotográfico do Rio capaz de atender a suas exigências, sobretudo na revelação em cores.
Seu filho Marcelo tocou a loja até o ano seguinte, quando Milan escapou de um câncer de garganta com um fio de voz e convencido de que esse era o fim da vida social de um fotógrafo de publicidade. É no Kronokroma que tem passado os últimos 26 anos. O laboratório já foi tão concorrido que os clientes mais assíduos ganhavam a chave de uma caixa, aberta para a rua, onde podiam jogar a qualquer hora os filmes que passariam para buscar na manhã seguinte, já revelados.
Aí veio a fotografia digital. Com ela, de repente, “todo mundo virou fotógrafo”, diz Milan. E sua freguesia foi sumindo. Milan resiste. Mora em Teresópolis só nos fins de semana. Passa os dias úteis no Kronokroma. Almoça no botequim ao lado e, aos 83 anos, encerra no fim da tarde o expediente fumando numa das mesas de plástico que o bar espalha na calçada. Milan não arreda pé do filme, por ser o único meio de guardar uma fotografia por meio século num envelope e publicá-la “sem retoques”. Como no caso de Brasília.
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