ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
A cidade irreal
Depois que a pandemia acabar, tudo o que for será outra coisa
Maria Esther Maciel | Edição 163, Abril 2020
De Belo Horizonte
No momento em que começo a escrever este relato, 55 casos da doença já foram confirmados em Minas Gerais, enquanto na Itália o número de mortes, em apenas um dia, chegou a quase oitocentos. As ruas de Belo Horizonte estão ermas. A chuva intermitente insiste, e o silêncio lá fora é quase assustador. Não há lojas abertas, e pela janela da sala de meu apartamento – que fica no 13º andar – vejo poucos carros cruzando as vias úmidas do entorno. Nunca tinha presenciado um sábado assim, tão desolador como este. E o pior é que tudo está apenas começando.
Sobre minha mesa de trabalho, uma pilha de livros escolhidos para a quarentena me aguarda. A maioria deles, de poesia. Uma seleção de filmes também está na minha mira para as noites solitárias. E como não tentar aproveitar o confinamento para retomar projetos de escrita interrompidos e adiados? Mas, mesmo com toda essa provisão para lidar com o temor e o isolamento, não consigo me desvencilhar das notícias que me chegam pela imprensa e pelas redes sociais. E elas chegam cada vez mais terríveis, ou como diria a poeta mineira Henriqueta Lisboa, num poema de 1982, brotam da terra pelos poros/entram pela janela em silvos ásperos/fazem pilha no chão em letras tortas/caem das nuvens em mortalhas. Dessa forma, as horas acabam por se prolongar como instantes de desesperança e apreensão.
Penso nas pessoas desprotegidas, nas que são obrigadas a se expor ao risco, nas que ignoram o que de fato está acontecendo ao redor e alhures. Sei que há gente lá fora que não tem para onde ir, que se recolhe sob as marquises de prédios no Centro da cidade ou perambula pelas praças, enfrentando toda a insensatez do presente. Pude testemunhar isso dias atrás, quando percorri a pé uma das avenidas mais populares da região central. Foi quando também passei perto de um supermercado e reparei que, de um caminhão parado diante da entrada principal, funcionários retiravam pacotes e pacotes de papel higiênico de diferentes marcas e os amontoavam sobre a calçada, perto de um gramado onde homens e mulheres aguardavam, com ansiedade, o momento de se lançar à mercadoria.
Ao escrever a última frase, ouço o som difuso de um bater de panelas atravessando a sala e vou até a janela para me juntar ao panelaço contra o “excrementíssimo” senhor presidente Jair Bolsonaro, que faz aniversário. Gritos de “Acabou, seu criminoso”, “Fora!”, “Impeachment já” se misturam ao ruído da chuva.
Volto para a mesa com a sensação de dever cumprido, mas com a indignação ainda mais acesa que antes. Esse homem é um psicopata criminoso que, por seus atos de iniquidade, deveria ser confinado num manicômio judicial o quanto antes. Sua virulência (lembro aqui que um dos sentidos figurados da palavra “virulento” é, segundo o Dicionário Houaiss, “infiltrado de violência ou rancor”) só potencializa o perigo do vírus que se alastra por todos os cantos do Brasil. Por isso, ele merece todo o nosso desprezo e nossa desobediência.
Diante do cenário sombrio que, aos poucos, vai tomando conta da cidade, lembro-me de um dos versos do poema The Waste Land (A terra desolada), em que T.S. Eliot, ao escrever sobre a “cidade irreal” de luz mortiça, onde tudo caminha para a ruína, adverte: Todo o cuidado é pouco nestes dias. Uma advertência que faz todo sentido em tempos de sobressalto, mas que tem sido negligenciada por aqueles que se norteiam pela estreiteza de suas obsessões e a falta de empatia.
De repente, volto a pensar nas famílias pobres que se espremem em cubículos da periferia e das favelas, sem condições mínimas de higiene e dignidade, impedidas de um confinamento adequado. Penso nos trabalhadores informais que não terão a assistência financeira e sanitária para sua sobrevivência no cenário da peste. Penso no pequeno comércio, nos prestadores de serviço, nas diaristas dispensadas sem pagamento.
Outra de minhas preocupações diz respeito às pequenas livrarias de rua, tão importantes para a vida cultural da cidade, por terem se tornado redutos preciosos para uma imensa minoria de belo-horizontinos: escritores, professores, estudantes e amantes dos livros. Na semana passada mesmo, visitei três delas na Savassi, e soube que, em face do estado catastrófico que começava a se instalar no país, alguns livreiros da cidade já estavam criando canais alternativos de venda a distância, de forma a manterem o comércio em sobrevida durante a quarentena. Algo que passei a apoiar com afinco. Afinal, os livros não deixam de ser contrapesos necessários à ignorância arrogante que nos circunda, podendo também funcionar como antídotos eficazes contra o veneno de certas facções religiosas e seu séquito de fanáticos.
Mais do que nunca, a solidariedade se faz necessária. Em todos os setores da vida social e cultural. Aqui e em todas as cidades do Brasil e do planeta. E depois que a pandemia acabar (acredito que vai, apesar da sensação de fim de mundo), tudo o que for será outra coisa.
Agora já é domingo. Tento concluir a escrita deste relato depois de saber, pela imprensa local, que o número de casos confirmados de coronavírus em Minas saltou para 83. Por outro lado, leio que a população de Belo Horizonte tem se empenhado em seguir as recomendações de isolamento. O que traz um certo alento, mesclado à incerteza.
Ouço alguns latidos insistentes. Devem ser dos cães que moram na casa ao lado. Vou até a janela e vejo passar na rua, sob a chuva fina, alguém meio perdido, andando a esmo. O ponto de ônibus que fica em frente ao meu prédio, do outro lado da rua, está vazio. Entregadores de comida transitam de moto ou bicicleta.
Ao voltar para a mesa de trabalho, ligo o aplicativo de música e ponho para tocar uma sonata de Bach para violino e piano, já que, segundo Emil Cioran, a música de Bach pode ser um remédio eficaz contra o desespero. Mas sei que isso é apenas um paliativo, pois a loucura do mundo demanda atos mais incisivos. E fico me perguntando se ainda é possível acreditar na reinvenção da humanidade.