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A consciência da morte
O desenvolvimento da personalidade, os relacionamentos que ajudam a nos definir, o emprego que dá status, os bens materiais, as férias no estrangeiro, a poupança, a acumulação de façanhas sexuais, as visitas à academia, o consumo de cultura. Tudo isto resulta em felicidade, não é? Este é o mito que escolhemos, e é quase tão ilusório quanto o que insistia em realização e êxtase quando a última trombeta soasse e os túmulos se abrissem, quando as almas curadas e perfeitas se juntassem à comunidade de santos e anjos
Julian Barnes | Edição 35, Agosto 2009
A arte é só um começo, só uma metáfora. Philip Larkin, visitando uma igreja vazia, imagina o que irá acontecer quando “as igrejas caírem totalmente em desuso”. Devemos “manter algumas catedrais constantemente em exposição” (esse “constantemente” sempre provoca um fogo de inveja neste escritor), ou “Devemos evitá-las como lugares azarados”? Larkin conclui que nós ainda – sempre – seremos atraídos por estes locais abandonados, porque “alguém irá sempre surpreender / Um desejo dentro de si de ser mais autêntico”.
É isto o que está por trás da sensação de Falta? Deus está morto, e sem Ele os seres humanos podem, finalmente, deixar de ficar de joelhos e assumir toda a sua altura; entretanto, essa altura se mostra quase a de um anão. Emile Littré, lexicógrafo, ateu, materialista (e tradutor de Hipócrates), concluiu que “O Homem é um composto altamente instável, e a Terra um planeta decididamente inferior”. A religião costumava oferecer consolo para as dificuldades da vida, e recompensa, no fim, para os fiéis. Mas, acima e além destes agrados, ela dava à vida humana uma noção de contexto, e, portanto, de seriedade. Ela fazia as pessoas se comportarem melhor? Às vezes sim; às vezes não; fiéis e infiéis têm sido igualmente criativos e maus em sua criminalidade. Mas ela era verdadeira? Não. Então por que sentir falta dela?
Porque ela era uma ficção sublime, e é normal a pessoa ficar triste ao fechar um grande romance. Na Idade Média, costumavam mandar animais a julgamento – gafanhotos que destruíam plantações, carunchos que destruíam as vigas das igrejas, porcos que jantavam bêbados caídos na sarjeta. Às vezes, o animal era levado ao tribunal, às vezes (como acontecia com insetos) era julgado necessariamente in absentia. Havia um julgamento completo, com promotoria, defesa e um juiz de toga, que podia ordenar uma variedade de punições – liberdade condicional, banimento, inclusive excomunhão. Às vezes até mesmo execução judicial: um porco podia ser enforcado por um funcionário do tribunal de luvas e capuz.
Tudo isso parece – agora, para nós – incrivelmente estúpido, uma expressão da incompreensível mente medieval. Entretanto, era perfeitamente racional e perfeitamente civilizado. O mundo foi feito por Deus, e, portanto, tudo o que acontecia nele ou era uma expressão do desígnio divino ou uma consequência do livre-arbítrio que Deus concedeu à Sua criação. Em alguns casos, Deus podia utilizar o reino animal para castigar Sua criação humana: por exemplo, mandando uma praga de gafanhotos, que o tribunal tinha, portanto, a obrigação legal de declarar inocentes. Mas e se um bêbado caía numa vala, tinha a metade do rosto comido por um porco e o ato não podia ser interpretado como ordenado por Deus? Era preciso encontrar outra explicação. Talvez o porco estivesse possuído pelo demônio, que o tribunal poderia expulsar. Ou talvez o porco, embora não tivesse livre-arbítrio, pudesse ser, mesmo assim, considerado responsável pelo que tinha acontecido.
Para nós, isto pode parecer mais uma prova da engenhosa bestialidade humana. Entretanto, há outra maneira de interpretar: como uma elevação do status dos animais. Eles eram parte da criação de Deus e dos desígnios de Deus, não simplesmente colocados na terra para prazer e uso do Homem. As autoridades medievais levavam os animais a julgamento e avaliavam seriamente seus atos criminosos; nós colocamos animais em campos de concentração, os enchemos de hormônios, e os retalhamos de forma que eles nos façam lembrar o mínimo possível de algo que um dia grasnou ou baliu, ou mugiu. Qual dos mundos é o mais sério? Qual o mais avançado moralmente?
Adesivos de automóvel e ímãs de geladeira nos fazem lembrar que a Vida Não É um Ensaio. Encorajamos as pessoas a caminhar na direção do paraíso moderno da autorrealização: o desenvolvimento da personalidade, os relacionamentos que ajudam a nos definir, o emprego que dá status, os bens materiais, a posse de propriedades, as férias no estrangeiro, a poupança, a acumulação de façanhas sexuais, as visitas à academia, o consumo de cultura. Tudo isto resulta em felicidade, não é? Não é? Este é o mito que escolhemos, e quase tão ilusório quanto o mito que insistia em realização e êxtase quando a última trombeta soasse e os túmulos se abrissem, quando as almas curadas e perfeitas se juntassem à comunidade de santos e anjos.
Mas se a vida é vista como um ensaio, ou uma preparação ou uma antessala, ou seja lá qual for a metáfora que escolhermos, mas, de todo modo, como uma coisa contingente, uma coisa que depende de uma realidade maior que está em outro lugar, então ela se torna ao mesmo tempo menos valiosa e mais séria. Aquelas partes do mundo onde a religião desapareceu, e onde existe um entendimento geral de que este curto espaço de tempo é tudo o que temos, não são, de modo geral, lugares mais sérios do que aqueles onde cabeças ainda se inclinam ao soar o sino da catedral ou ao muezim no minarete. De forma geral, elas se rendem a um materialismo frenético; embora o engenhoso animal humano seja capaz de construir civilizações em que a religião coexiste com o materialismo frenético (em que a primeira pode até ser uma consequência do segundo): vejam a América.
E daí, você poderia responder. Tudo o que importa é a verdade. Você preferiria curvar-se diante de uma besteira e perverter a sua vida ao capricho do clero, tudo em nome de uma suposta seriedade? Ou preferiria erguer-se em toda a sua estatura anã e realizar todos os seus desejos triviais em nome da verdade e da liberdade? Ou esta é uma oposição falsa?
Meu amigo J. se lembra da obra que ouvimos naquele concerto alguns meses atrás: uma Missa de Haydn. Quando faço menção à conversa que tivemos depois, ele sorri como um gnomo. Então é a minha vez de perguntar: “Quantas vezes você pensou no nosso Senhor Ressuscitado durante aquela peça?” “Penso nele constantemente”, J. responde. Como não posso saber se ele está sendo totalmente sério ou totalmente superficial, faço uma pergunta que não me lembro de ter feito a nenhum amigo adulto antes. “Você é – até que ponto você é – religioso?” É melhor esclarecer isto depois de conhecê-lo há trinta anos. Uma risada abafada: “Sou irreligioso.” Aí ele corrige a si mesmo: “Não, sou muito irreligioso.”
Montaigne observou que “a base principal da religião é o desprezo pela vida”. Ter este mundo alugado em baixa conta era uma coisa lógica, na realidade essencial, para um cristão: um apego excessivo à terra – quanto mais um desejo por alguma forma de imortalidade terrestre – teria sido uma impertinência com Deus. O mais próximo equivalente inglês de Montaigne, Sir Thomas Browne, escreveu: “Um pagão poderia ter motivos para amar a vida, mas, se um cristão se espantasse (quer dizer, se apavorasse) com a morte, não sei como ele poderia escapar deste dilema – que ele é sensível demais em relação a esta vida, ou que não tem esperança na próxima.” Portanto, Browne admira qualquer pessoa que despreze a morte: “Não posso ter em alta conta ninguém que tenha medo dela: isto me faz amar naturalmente um soldado, e honrar aqueles regimentos esfarrapados que estão prontos a morrer a uma ordem do sargento.”
Browne também escreve que “é um sintoma de melancolia ter medo da morte, mas, às vezes, desejá-la”. Larkin de novo, um melancólico definindo perfeitamente o medo da morte: “Não estar aqui,/ Não estar em lugar nenhum,/ E logo; nada mais terrível, nada mais verdadeiro.” E em outro momento, como confirmando o que disse Browne: “Por trás de tudo isso, está o desejo do esquecimento.” Esta frase me espantou quando a li pela primeira vez. Sou, sem dúvida, uma pessoa melancólica, e às vezes acho a vida uma forma valorizada demais de passar o tempo; mas nunca desejei não ser mais eu mesmo, nunca desejei o esquecimento. Não estou convencido da inutilidade da vida a ponto de não ter meu interesse despertado por um novo romance ou um novo amigo (por um velho romance ou um velho amigo), ou um jogo de futebol na televisão (ou mesmo a repetição de um velho jogo). Sou o cristão insatisfatório de Browne – “sensível demais em relação a esta vida, ou que não tem esperança na próxima” –, só que não sou cristão.
Talvez a divisão importante não seja entre religiosos e irreligiosos, mas entre aqueles que temem a morte e aqueles que não temem. Caímos, portanto, em quatro categorias, e fica bem claro quais são as duas que se consideram superiores: os que não temem a morte porque têm fé, e aqueles que não temem a morte apesar de não terem fé. Estes grupos estão no plano mais alto da moral. Em terceiro lugar, vêm aqueles que, apesar de terem fé, não conseguem se livrar do medo antigo, visceral, racional. E finalmente, fora do quadro de medalhas, abaixo da média, mergulhados na lama, vêm aqueles que temem a morte e não têm fé.
Tenho certeza de que meu pai temia a morte, e tenho quase certeza de que minha mãe não temia: ela temia mais a incapacidade e a dependência. E se meu pai era um agnóstico que temia a morte e minha mãe uma atéia destemida, esta diferença foi replicada em seus dois filhos. Meu irmão e eu temos mais de 60 anos, e acabei de perguntar a ele o que pensa da morte. Quando ele respondeu “Estou satisfeito com as coisas como elas são”, ele quis dizer que está satisfeito com a própria extinção? E sua imersão na filosofia o reconciliou com a brevidade da vida e com o fim inevitável da dele, digamos, dentro dos próximos trinta anos?
“Trinta anos é muita generosidade”, ele responde (bem, eu tinha exagerado tanto para o meu consolo quanto para o dele). “Espero estar morto nos próximos quinze. Estou reconciliado com este fato? Estou reconciliado com o fato de que a esplêndida bétula que vejo da minha janela irá apodrecer e morrer nos próximos cinquenta anos? Não sei se reconciliação é o mot juste: sei que isto vai acontecer e que não há nada que eu possa fazer a respeito. Não estou exatamente satisfeito com isto, mas também não estou preocupado – e não imagino nada que pudesse ser mais bem-vindo (com certeza, não uma eterna semivida na companhia de santos – o que poderia ser menos atraente?).”
Com que rapidez ele e eu – filhos da mesma carne, produtos da mesma escola e universidade – nos separamos. E embora o modo como o meu irmão discute a mortalidade seja (em ambos os sentidos) filosófico, embora ele mantenha distância da sua dissolução final fazendo uma comparação com uma bétula, não acho que seja a sua ligação com a filosofia que tenha feito diferença. Desconfio que ele e eu tenhamos estas posições a respeito destas questões porque fomos assim desde o início. Não parece que seja assim, é claro. Você vem ao mundo, olha em volta, faz certas deduções, se livra de toda aquela velha baboseira, aprende, pensa, observa, tira conclusões. Você acredita nas suas capacidades e na sua autonomia; você se torna sua própria realização. Então, ao longo dos anos, meu medo da morte se tornou uma parte essencial de mim mesmo, e eu o atribuiria ao exercício da imaginação; enquanto o distanciamento do meu irmão diante da morte é uma parte essencial dele, que ele provavelmente atribui ao exercício do pensamento lógico. Entretanto, talvez eu só seja assim por causa do nosso pai, e ele seja assim por causa da nossa mãe. Obrigado pelo gene, papai.
“Não imagino nada que pudesse ser mais bem-vindo (do que a extinção)”, diz meu irmão. Bem, posso imaginar um monte de coisas que seriam mais bem-vindas do que a completa extinção dentro dos próximos quinze anos (cálculo dele) ou trinta (meu presente fraternal). Que tal viver mais do que aquela bétula, para começar? Que tal ter a opção de morrer quando quiser, quando já estiver satisfeito: continuar vivendo por 200, 300 anos, e então ser capaz de dizer, eutanasicamente: “Ah, anda logo com isso”, na hora que você escolher? Por que não imaginar uma quase vida eterna passada em conversas com os grandes filósofos ou os grandes romancistas? Ou alguma versão de reencarnação – uma mistura de budismo com o filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day) – na qual você vive a sua vida de novo, consciente do modo como a viveu da primeira vez, mas podendo modificá-la a partir deste ensaio? O direito de tentar de novo e agir de modo diferente.
Da próxima vez, talvez eu resista à declaração do meu irmão de primogenitura filatélica e colecione algo diferente do Resto do Mundo. Eu poderia tornar-me judeu (ou tentar, ou blefar). Eu poderia sair de casa mais cedo, morar no estrangeiro, ter filhos, não escrever livros, plantar bétulas, entrar para uma comunidade utópica, dormir com todas as pessoas erradas (ou, pelo menos, com pessoas erradas diferentes), tornar-me viciado em drogas, encontrar Deus, não fazer nada. Eu poderia descobrir formas inteiramente novas de me decepcionar.
Minha mãe me contou que vovô um dia disse a ela que a pior emoção da vida era o remorso. A que ele poderia estar se referindo?, perguntei-lhe. Ela disse que não fazia idéia, uma vez que seu pai tinha sido um homem da maior probidade. E, portanto, esta observação – atípica do meu avô – paira no tempo sem resposta. Sinto muito pouco remorso, embora ele possa estar a caminho, e, enquanto isso, contento-me com seus amigos mais chegados: arrependimento, culpa, fracasso. Mas sinto uma curiosidade crescente pelas vidas não vividas, agora impossíveis de viver, e talvez o remorso esteja atualmente escondido em suas sombras.
Arthur Koestler, antes de cometer suicídio, deixou um bilhete no qual expressava “uma tímida esperança numa outra vida despersonalizada”. Um desejo como este não causa espanto – Koestler tinha devotado muitos dos seus últimos anos à parapsicologia –, mas não me atrai nem um pouco. Assim como não parece haver muito sentido numa religião que é meramente um evento social semanal (separado, é claro, dos prazeres normais de um evento social semanal), em oposição a uma que diz exatamente como você deve viver, que colore e mancha tudo, que é séria, eu iria querer que a minha outra vida, se houver alguma disponível, fosse melhor – de preferência muito melhor – do que sua antecessora terrestre. Consigo imaginar alguém pisando sem querer numa mistura molecular gosmenta, mas não consigo ver a vantagem que isto possa ter sobre a completa extinção. Por que ter esperança, mesmo uma esperança tímida, de uma situação como essa? Ah, meu caro, mas não se trata do que você prefere, trata-se do que é verdadeiro.
A discussão-chave a respeito deste assunto aconteceu entre Isaac Bashevis Singer e Edmund Wilson. Singer disse a Wilson que acreditava em algum tipo de sobrevivência após a morte. Wilson disse que, de sua parte, ele não queria sobreviver, não, obrigado. Singer respondeu: “Se a sobrevivência foi combinada, você não terá escolha.”
A fúria do ateu ressuscitado: valeria a pena ver isso. E já que estamos falando no assunto, acho que a companhia dos santos poderia ser muito interessante. Muitos deles viveram vidas excitantes – fugindo de assassinos, enfrentando tiranos, pregando nas esquinas medievais, sendo torturados – e até os mais calmos poderiam contar histórias sobre criação de abelhas, cultivo de lavanda, ornitologia umbriana, e assim por diante. Dom Perignon era um monge, afinal. Você poderia estar esperando por um convívio social mais variado, mas, se “foi combinado”, então os santos o fariam seguir adiante por mais tempo do que você esperava.
Meu irmão não teme a extinção. “Digo isto com segurança, e não apenas porque seria irracional ter este medo” (desculpe – interrupção – irracional? IRRACIONAL? É a coisa mais racional do mundo – como a razão pode não detestar e temer racionalmente o fim da razão?). “Três vezes na minha vida eu me convenci de que estava prestes a morrer (da última vez, acordei numa sala de reanimação); em cada uma dessas ocasiões, tive uma reação emocional (uma vez, uma raiva terrível de mim mesmo por ter colocado a mim mesmo numa tal situação, uma vez vergonha misturada com irritação ao pensar que estava deixando meus negócios completamente bagunçados), mas nunca uma reação de medo.” Ele chegou mesmo a ensaiar uma declaração no leito de morte. “A última vez que eu quase morri, minhas últimas palavras foram: ‘Certifique-se de que Ben fique com o meu exemplar do Aristóteles de Bekker.'” Ele acrescenta que a mulher dele achou isto “insuficientemente afetuoso”.
Ele admite que hoje em dia pensa na morte mais do que costumava, “em parte porque seus velhos amigos e colegas estão morrendo”. Ele a leva em consideração calmamente uma vez por semana; enquanto eu venho me dedicando a ela há anos, me esforçando e descabelando, sem adquirir maturidade nem filosofia. Eu poderia tentar apresentar alguns argumentos a favor da consciência da morte, mas não sei se eles seriam convincentes. Não posso dizer que confrontar a morte (não, isso soa ativo demais, pretensamente heróico demais – a voz passiva é melhor: não posso dizer que ser confrontado pela morte) me deixou mais acomodado em relação a ela, nem mais sábio ou mais sério ou mais… nada, na verdade. Eu podia tentar argumentar que não podemos saborear realmente a vida sem a consciência da sua extinção: é a gota de limão, a pitada de sal que intensifica o sabor. Mas acho mesmo que meus amigos que negam a morte (religiosos) apreciam aquele buquê de flores/obra de arte/taça de vinho menos do que eu? Não.
Por outro lado, esta não é apenas uma questão visceral. Suas manifestações – desde uma picada na pele até o mais absoluto terror, desde o barulho do despertador no quarto desconhecido de hotel até buzinas tocando por toda a cidade – podem ser. Mas repito e insisto que sofro de um medo racional (sim, RACIONAL). A Dança da Morte mais antiga que se conhece, pintada num muro do Cimetière des Innocents em Paris, em 1425, tinha um texto que começava “O créature roysonnable/ Qui desires vie eternelle” (Ó criatura racional/ Que deseja a vida eterna). Medo racional: meu amigo, o romancista Brian Moore, gostava de citar a velha definição de Jesus do homem como sendo “un être sans raisonnable raison d’être“. Um ser sem razão racional para ser.
A consciência da morte está ligada ao fato de eu ser um escritor? Talvez. Mas se estiver, não quero saber, nem investigar. Eu me lembro do caso de um comediante que, depois de anos de psicoterapia, finalmente entendeu os motivos pelos quais ele precisava ser engraçado; e tendo descoberto, ele parou. Então eu não iria querer arriscar. Embora eu possa imaginar uma dessas escolhas do tipo “o que você prefere”. “Sr. Barnes, examinamos o seu estado e concluímos que seu medo da morte está intimamente ligado aos seus hábitos literários, que são, como ocorre com muitos outros na sua profissão, meramente uma resposta trivial à mortalidade. O senhor inventa histórias para que o seu nome, e uma porcentagem indefinível da sua individualidade, continue a existir depois da sua morte física, e a antecipação disto lhe traz um certo consolo. E, embora o senhor tenha compreendido racionalmente que pode vir a ser esquecido antes de morrer, ou logo depois de morrer, e que todos os escritores um dia serão esquecidos, assim como toda a raça humana, mesmo assim o senhor acha que vale a pena fazer isso. Se escrever é para o senhor uma resposta visceral ao racional, ou uma resposta racional ao visceral, nós não sabemos. Mas aqui está uma coisa para o senhor refletir. Concebemos uma nova operação no cérebro que acaba com o medo da morte. É um procedimento simples, que não exige anestesia geral – na verdade, o senhor pode assistir pela tela. Basta olhar para este local de um tom brilhante de laranja e ver a cor ir desbotando aos poucos. É claro que o senhor vai verificar que a operação tirará também o seu desejo de escrever, mas muitos dos seus colegas optaram por este tratamento e o acharam extremamente benéfico. Nem a sociedade reclamou do fato de haver menos escritores.”
Eu teria de pensar a respeito, é claro. Poderia perguntar a mim mesmo se a lista dos já escritos iria se arranjar sozinha, e se aquela idéia nova é realmente tão boa quanto imagino. Mas espero que eu fosse recusar – ou pelo menos negociar, obrigá-los a me fornecer mais vantagens. “Que tal eliminar não o medo da morte, mas a própria morte? Isso seria muito tentador. Você acaba com a morte, e eu desisto de escrever. Que tal este trato?“