A Copa do Cabo ao Rio
Numa época em que futebol e televisão viraram uma coisa só, o que a África do Sul ganhou e perdeu com a Copa – e o que o Brasil pretende fazer até 2014
Daniela Pinheiro | Edição 44, Maio 2010
Cerca de 130 mil pessoas moram no subúrbio de Athlone, a 10 quilômetros da Cidade do Cabo. A maioria delas é pobre, desempregada e negra. Numa paisagem baldia e repleta de favelas, uma das poucas atrações é o estádio de futebol, com capacidade para 30 mil torcedores, palco das finais do campeonato regional. Encarregados de selecionar os locais dos jogos da Copa do Mundo na cidade, onde no próximo dia 6 de julho será disputada a semifinal, a prefeitura e o governo da província sugeriram Athlone. As autoridades vislumbraram a possibilidade de, finalmente, criar empregos na periferia da segunda maior cidade do país. A ideia era aproveitar o evento para pavimentar avenidas, construir novas casas, reformar as antigas, incrementar o transporte público.
Há três anos, uma comitiva da Fifa, a Federação Internacional de Futebol, visitou os estádios selecionados pelos sul-africanos. Na Cidade do Cabo, ela foi informada da importância da escolha de Athlone para o incremento da área e a melhoria da vida de milhares de pessoas que moram ali. Ao visitar o estádio, no entanto, a comitiva estava mais interessada no público global da Copa do que na particularidade nacional. “Os bilhões de espectadores não querem ver favelas e pobreza pela televisão”, disse um dos inspetores da Fifa ao jornal Mail & Guardian.
O governo regional e a prefeitura logo mudaram de opinião. O então presidente Thabo Mbeki também tomou posição, dizendo que “a Fifa tinha o direito de exigir o mais alto padrão possível e a África do Sul deveria ter o bom-senso de seguir a indicação”. Quatro meses depois, com o argumento oficial de que a semifinal precisava de um estádio maior, Athlone foi dispensada. Anunciou-se a construção de um novo estádio, com 68 mil lugares, num dos bairros mais ricos da Cidade do Cabo.
O estádio Green Point foi erguido entre o mar e a Table Mountain, o cartão postal da cidade. Ele está a cinco minutos a pé do luxuoso centro comercial Victoria & Alfred Waterfront e faz fronteira com um campo de golfe. A área, que era uma das poucas reservas verdes da cidade, foi substituída pela faraônica arena em forma de banheira e estacionamentos a perder de vista. Financiada com dinheiro público, a obra custou 1,1 bilhão de reais, quase quatro vezes mais do que o previsto. “Ou era isso ou não tinha Copa”, argumentou o vice-prefeito Ian Nielson, quando o estádio foi licitado.
Fundada em 1904, a Fédération Internationale de Football Association tem uma estrutura pequena. Na sede da entidade, em Zurique, na Suíça, trabalham 310 funcionários. Nos 208 países que a integram, pouco mais de mil pessoas estão na sua folha de pagamentos. Já na ONU, com 192 nações filiadas, trabalham mais de 40 mil pessoas. A burocracia enxuta é replicada pelas seis confederações regionais que estão sob sua égide. A que reúne as seleções das Américas do Norte e Central e o Caribe tem quarenta funcionários. E a Confederação Brasileira de Futebol ocupa apenas um andar na Barra da Tijuca, no Rio, onde trabalham cinquenta pessoas.
Ainda assim, como escreveu o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “a Fifa é o FMI do futebol”. Poucas instituições internacionais são tão poderosas, ricas e fechadas quanto a que organiza os campeonatos de futebol mundo afora. Ela é responsável pela comercialização de qualquer produto ligado ao futebol profissional, patrocínios e direitos televisivos. Está no centro de um mercado que movimenta 250 bilhões de dólares anualmente. No ano passado, faturou 1 bilhão de dólares com um lucro líquido de quase 200 milhões de dólares. Só com a Copa da África do Sul, ganhou 3,8 bilhões de dólares.
Os 24 membros do comitê executivo da entidade gastam seu tempo viajando pelo mundo, inspecionando estádios e times, negociando com Estados e multinacionais, articulando alianças com lideranças locais e nacionais. Além de hotéis cinco estrelas, passagens de primeira classe, Mercedes pretas com motoristas, eles têm despesas autorizadas de até 500 euros diários. Avalia-se que recebam honorários próximos de 50 mil dólares, enquanto o salário do secretário-geral chegaria ao dobro. Os ganhos e despesas do presidente da Fifa nunca foram divulgados. A renovação no comitê é baixíssima. A maioria dos cartolas está no cargo há pelo menos quinze anos.
Um país que queira sediar a Copa do Mundo tem que aceitar todas as exigências listadas no chamado “Cadernos de Encargos” da Fifa. Se necessário, a legislação nacional é modificada. O Caderno especifica o tamanho dos estádios e das suas cadeiras, o tempo em que deve ser esvaziado em caso de emergência, a quantidade de banheiros, o número de minutos que se leva para ir dos centros de imprensa aos estádios, a dimensão das salas para acolher 14 500 convidados VIP e VVIP (chefes de Estado, de governo e celebridades) e até a intensidade da luz em caso de apagão.
Também obriga o anfitrião a conceder vistos de trabalho ao pessoal estrangeiro (mesmo que não haja acordos diplomáticos entre os dois países), dar isenção de taxas alfandegárias para todo o material relacionado ao evento, garantir a livre transferência de divisas e bancar a infraestrutura necessária para transportes e telecomunicações.
O Parlamento da África do Sul concedeu à Copa, em 2006, o status de “evento protegido” por uma legislação específica. No Brasil, as negociações para aprovar uma lei fiscal e uma geral que regulamentarão o mundial de 2014 já estão em negociação entre a Presidência da República, o Ministério do Esporte e a Fifa.
Um dos problemas à vista é a venda de bebidas alcoólicas nos estádios e em áreas de seu entorno, o que é proibido no Brasil, mas que é capital durante os jogos da Copa: a Budweiser e a AmBev estão entre os maiores patrocinadores. “Isso será discutido mais para frente”, disse o advogado Francisco Müssnich em um café da manhã, no Rio. “Durante a Copa, não há briga de torcida nem confusão como em jogos de campeonatos nacionais, o que motivou a proibição da venda de bebida no estádio.” Müssnich é responsável por toda a parte jurídica do Comitê Organizador no Brasil.
A Federação também exige que o país-sede assine um termo reconhecendo o direito exclusivo da entidade para a exploração comercial dos jogos, o que inclui publicidade, marketing, licenciamento, direitos de transmissão e até o controle das vizinhanças dos estádios. A Fifa tem soberania no raio de um quilômetro em volta do local dos jogos. Nesse perímetro, até a circulação de cachorros é controlada pela entidade. Ali, só podem ser comercializados serviços e mercadorias dos patrocinadores oficiais. E um percentual de tudo o que vendem vai automaticamente para os cofres da Fifa.
Se um bar ou restaurante quiser exibir os jogos da Copa em televisões ou telões, terá que pagar direitos autorais à emissora que os transmite, a qual destina uma parte deles à Federação. Pagará também diretamente à Fifa uma licença de venda de bebida alcoólica. Na África do Sul, pela mesma lei, um camelô que mencione a expressão “Copa do Mundo” ou até “2010” na hora de vender seus cacarecos corre o risco de ser preso pela polícia.
“São demandas infindáveis e, algumas, inconstitucionais”, disse-me a deputada Patricia de Lille, do partido Democratas Independentes, em seu gabinete parlamentar na Cidade do Cabo. Em um país com índice de desemprego beirando os 40%, onde metade da população vive com menos de 1 dólar por dia, De Lille acredita que os sul-africanos deveriam ter sido informados e consultados sobre o uso de verbas públicas nas obras para o mundial de futebol.
“É uma Copa elitista, que não se preocupou com o grosso dos fãs do esporte, o povo negro e desassistido, nem com o público das outras nações africanas, incapazes de pagar os preços dos ingressos e da acomodação que têm sido cobrados”, disse a deputada, uma veterana da luta contra o apartheid. Menos de 2% dos ingressos foram vendidos para africanos fora da África do Sul.
O Parque Kruger, no nordeste do país, é a maior reserva natural da África. Em 2006, um consórcio ganhou a licitação para a construção de um estádio na entrada do Kruger, na cidade de Nelspruit. Entre as exigências do grupo, estava a de que engenheiros e trabalhadores especializados fossem instalados em locais onde a luz e os aparelhos de ar-condicionado estivessem garantidos. A única edificação em condições era uma escola primária de uma favela perto da obra. O governo da província não teve dúvida: há três anos a escola abriga o alojamento dos trabalhadores. As crianças foram transferidas para salas de aula provisórias, em contêineres de alumínio sem ventilação ou janelas.
Com colunas cor de laranja que lembram girafas gigantes, o estádio de Nelspruit custou 140 milhões de dólares. Palco de quatro dos 64 jogos, ele será usado por apenas seis horas durante a Copa. E dificilmente conseguirá depois lotar seus 46 mil lugares. Sua construção foi acompanhada por um escarcéu de suspeitas de corrupção, superfaturamento e desvio de verbas.
A contragosto, o governo formou uma comissão de inquérito para apurar as denúncias. Uma semana antes de ser convocado a prestar depoimento, o porta-voz de uma comunidade pobre da região, Jimmy Mohala, foi assassinado em frente à sua casa por homens encapuzados. No início do ano, Sammy Mpatlanyane, vice-diretor do Departamento de Esportes, Cultura e Recreação, também foi morto a tiros.
A Fifa rechaça a pecha de elitismo. Argumenta ter reservado 174 mil ingressos a serem distribuídos entre jovens pobres e operários que trabalharam nas obras da Copa. E cita os estádios de Ellis Park e o de Pretória, na proximidade de grandes favelas, como exemplos de ajuda a áreas miseráveis.
Apesar das entradas financeiras milionárias, a Federação é considerada, legalmente, uma entidade sem fins lucrativos. Seus gastos se resumem à organização de campeonatos, viagens de cartolas, repasses para times e confederações e prêmios para jogadores e seleções. Ela distribuirá nesse ano 420 milhões de dólares em prêmios e ajuda aos 32 times do mundial. É quase o dobro pago na Copa da Alemanha, em 2006. A seleção campeã ganhará 30 milhões de dólares; a vice, 24 milhões.
Para a Copa do Mundo de 2014, no Brasil, o comitê organizador local receberá um aporte de 100 milhões de dólares. Caberá ao comitê, em associação com os administradores locais (clubes, governadores e prefeitos), iniciar obras de infraestrutura nas cidades-sede e de reforma de estádios.
A Fifa nunca perde dinheiro. Mesmo que o evento seja um fracasso, não há prejuízo. Ela sempre faz um seguro para se garantir contra qualquer eventualidade. Para as Copas de 2010 e 2014, bateu o recorde: 650 milhões de dólares de cobertura para o caso de algo sair errado.
Nas últimas décadas, as grandes competições esportivas passaram a ser vistas como uma oportunidade de recuperação de cidades. Haveria, de um lado, o aspecto material: a obrigação de organizar o torneio num período determinado e curto levaria os políticos locais a planejar a intervenção urbana, de modo a bem aproveitar os investimentos externos e internos, aumentar o turismo e gerar empregos.
De outro, existiria o aspecto imaterial: durante os dias de campeonato, a cidade ou país teriam a imagem difundida para uma plateia globalizada, o que supostamente aumentaria a chamada autoestima da população local e, numa suposição mais tênue ainda, atrairia mais investimento e turistas no futuro.
Na carta de intenções enviada à Fifa pleiteando a candidatura sul-africana, o presidente Thabo Mbeki escreveu que a aprovação do país significava o “renascimento africano”. Argumentou que os jogos trariam crescimento econômico e orgulho nacional, deixando para trás “séculos de conflitos e pobreza”. O arcebispo emérito Desmond Tutu disse que o mundial teria um impacto tão forte para os negros da África do Sul quanto a eleição de Barack Obama nos Estados Unidos. Uma estatística recente mostrou que 74% da população acredita que a Copa do Mundo trará benefícios sociais e econômicos.
O governo previa gastar cerca de 450 milhões de dólares na empreitada. Até agora, porém, gastou mais de 6 bilhões. Em seis anos, foram construídos cinco estádios e outros cinco foram reformados. O de Durban, que tem um bondinho que atravessa toda sua cobertura, foi planejado com a intenção de se transformar em um marco urbanístico da cidade, assim como a Ópera de Sydney ou o museu Guggenheim, em Bilbao.
Um novo aeroporto foi erguido e sete passaram por remodelações que os igualaram aos terminais europeus. Surgiram 35 novos grandes hotéis e o projeto de um trem de alta velocidade ligando Pretória a Joanesburgo saiu do papel (mas apenas o trecho entre o aeroporto e o bairro de Sandton estará pronto a tempo para o mundial). Só nas cerimônias de abertura e encerramento serão gastos 18 milhões de dólares.
“O mundo inteiro estará olhando para nós”, disse Moloto Mothapo, porta-voz do Congresso Nacional Africano, o partido que está há dezesseis anos no poder. “Durante um mês, 15 mil jornalistas vão escrever e falar sobre a África do Sul. São mais de 400 emissoras de rádio e televisão. Isso é uma exposição que não tem preço.”
O poder da divulgação de imagens fez com que o emir Hamad al-Thani, um dos homens mais ricos do mundo, negociasse com a Fifa bancar sozinho os 4,5 bilhões de dólares previstos para a organização da Copa de 2022* no seu país, o Catar.
Durante cinco anos, baseado nas experiências de países que sediaram campeonatos esportivos internacionais, um grupo de pesquisadores estudou os possíveis impactos da Copa na economia, na sociedade e na configuração urbana da África do Sul. O resultado da pesquisa está no livro Desenvolvimento e Sonhos: o Legado Urbano da Copa do Mundo de 2010, publicado no ano passado. A conclusão geral é que os benefícios materiais da Copa são decepcionantes.
Os textos mostram que as previsões costumam ser totalmente desmentidas pelos fatos. Os estudiosos sustentam que os países-sede têm de arcar com os prejuízos e com a manutenção de obras, mas elas quase nunca são reaproveitadas depois que a festa acaba. É praticamente impossível, dizem, recuperar os investimentos feitos para preparar o campeonato.
No aspecto imaterial, as perspectivas são melhores. Os dezoito ensaios afirmam que os maiores legados para as nações que organizam megaeventos esportivos são a exposição midiática, a melhoria na imagem internacional e o aumento da autoestima popular. As três heranças seriam maiores nos países em desenvolvimento. Seria o caso da China, que investiu 38 bilhões de dólares na Olimpíada de 2008 e conseguiu com que os jogos solidificassem, em todo o planeta, a nova imagem do país: capitalista, pujante, organizado e ditatorial.
Outro estudo, feito pelos americanos Robert Baade e Victor Matheson, do Lake Forest College, em Illinois, comparou o crescimento econômico, entre 1970 e 2000, de treze cidades que sediaram copas. Chegaram à conclusão que o desenvolvimento acompanhou as oscilações da economia mundial no período.
Em 2002, a Fifa previu que um milhão de turistas desembarcaria no Japão e na Coreia do Sul para assistir aos jogos da Copa, que foram divididos entre os dois países. O Japão atraiu 30 mil turistas a mais e a Coreia do Sul registrou o mesmo número de visitantes do ano anterior. A maioria dos estádios construídos continua sem uso. Em 2007, os gastos da União, estado e do município do Rio de Janeiro nos Jogos Pan-Americanos foram calculados em 409 milhões de reais, mas o evento custou 3,7 bilhões. O número de turistas foi o mesmo de anos anteriores e o Pan deixou como herança dois elefantes brancos, o Velódromo da Barra e o Parque Aquático Maria Lenk. O Brasil e o Rio desperdiçaram dinheiro com os Jogos. Só ganharam os espertalhões de sempre: políticos, atravessadores, empreiteiros.
Mesmo entre os países que dizem ter faturado com o mundial, há controvérsias em torno das estatísticas. Na Copa do Mundo de 2006, a Alemanha investiu 5 bilhões de dólares e, ao final da temporada, anunciou um ganho de 170 milhões. Boa parte do dinheiro, contudo, resultou apenas na transferência de investimentos e lucros de um setor para outro da economia. Seria o caso de um alemão de Hamburgo que, em vez de ir ao cinema ou a um restaurante na sua cidade, foi assistir a uma partida em Berlim.
Quando se compara o total de dinheiro que entrou na Alemanha, via turistas estrangeiros, com o que foi gasto na organização, a Copa teria dado prejuízo. Isto porque o número de visitantes do exterior permaneceu o mesmo entre 2000 e 2007. Quem de fato lucrou foram setores de pouco peso na economia alemã, como cervejarias, casas de câmbio, companhias aéreas regionais e fabricantes dos produtos licenciados para a Copa.
O maior ganho foi, novamente, intangível: a impressão geral deixada pelo povo alemão, que se mostrou acolhedor e hospitaleiro, serviu para exorcizar resquícios da imagem autoritária associada ao nazismo. Foi um efeito equiparável ao das Olimpíadas de Tóquio, de 1964, quando os jogos serviram para mostrar ao mundo um Japão oposto ao da Segunda Guerra Mundial: aberto ao exterior, moderno, uma potência tecnológica, mas pacífica.
Os Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992, são considerados o grande exemplo de um evento esportivo bem-sucedido, tanto no aspecto material como imaterial. Barcelona recebeu uma injeção de 6 bilhões de dólares em investimentos que mudaram a fisionomia da cidade.
O transporte urbano, sobretudo a circulação de carros, foi completamente alterado, o metrô foi ampliado e modernizado, a construção da Vila Olímpica levou moradores para perto do mar. Tudo isso fez com que a cidade passasse por uma revitalização urbana e um crescimento econômico acelerados, opostos ao que ocorria no resto da Espanha e na Europa. Barcelona tomou o lugar de Madri como metrópole da península ibérica e aprofundou sua vocação turística.
Mas persiste a dúvida se a cidade poderia ter feito o mesmo sem o pretexto dos Jogos Olímpicos. Para o economista Stefan Szymanski e o jornalista Simon Kuper, autores de Soccernomics, escrito depois da Copa da Alemanha, a resposta é sim. Eles defendem que, mesmo que haja um adicional econômico ao Produto Interno Bruto, ele não é comparável ao gasto com as obras de infraestrutura. Ou seja: sai mais barato construir as obras de que o país precisa do que gastar bilhões em um evento cujo objetivo é beneficiar patrocinadores e organizadores.
Como a maioria dos trabalhadores é terceirizada e tem contratos temporários, quando a Copa sul-africana terminar, no final de julho, 150 mil operários estarão desempregados. “Os empregos são temporários, a cerveja à venda nos estádios não é sul-africana e muito menos os produtos licenciados, que são todos importados da China, de empresas que usam trabalho escravo e crianças”, disse-me Patrick Craven, porta-voz da Cosatu, a maior central sindical sul-africana. O dono da empresa responsável pela importação dos produtos chineses é um deputado do Congresso Nacional Africano.
Um estudo de pesquisadores ligados ao governo da província do Cabo Ocidental (agora nas mãos da Aliança Democrática, o maior partido de oposição) demonstrou ser impossível que o estádio de Green Point venha a se autofinanciar. Mesmo que o campeonato de rúgbi seja transferido para o estádio, e que abrigue todos os anos sete jogos nacionais, sete concertos, dezenas de conferências, palestras e eventos, ainda assim haverá um custo de manutenção de 3 milhões de dólares. A conta terá que ser paga pelo governo, o que pode significar aumento de impostos para a população.
Num fim de manhã de fevereiro, Danny Jordaan, o executivo-chefe do Comitê Organizador da Copa na África do Sul, entrava e saía de reuniões em seu gabinete, num prédio baixo colado ao estádio Soccer City, em Joanesburgo. O entorno do estádio ainda estava em obras. Havia caminhões, montes de terra e cascalho, e centenas de operários que aproveitavam a pausa do almoço para jogar futebol. De uma das janelas do prédio, era possível admirar a construção – que lembra um donut gigante e custou 470 milhões de dólares – onde serão disputados o primeiro e o último jogos do mundial.
Assim como Gisele Bündchen, Jordaan tem uma voz que destoa da aparência física. Para um homem corpulento, de feições rígidas e másculas, ele fala algumas oitavas acima do esperado. Nos anos 60, militou no grupo estudantil liderado por Steve Biko, um dos mártires do apartheid, e foi um dos porta-vozes do movimento internacional que impediu que a África do Sul participasse de olimpíadas e copas. “Não há esporte normal em uma sociedade anormal”, dizia o slogan.
Ativista do Congresso Nacional Africano e deputado federal durante a presidência de Nelson Mandela, Jordaan renunciou ao mandato para se tornar chefe da Associação de Futebol Sul-Africana. Desde o fim do apartheid, ele batalhou para que o país sediasse a Copa do Mundo. “É um reconhecimento internacional pelo que a África do Sul se tornou”, disse. “É uma maneira de consolidar a ideia de que o país é uma nação unida, preparada para o mundo global.”
Sua sala é ampla, decorada com objetos étnicos, fotos da cidade e muitos porta-retratos. Em um deles, Jordaan aparece ao lado de Winnie, ex-mulher de Mandela. Quis saber sua opinião sobre as exigências da Fifa, entre elas a de construir o estádio de Green Point. “Isso tem que ser entendido: a Fifa é a dona e nós somos os anfitriões”, disse, lacônico.
Ele aposta que a Copa mudará o país. “Na década de 90, apenas 1 milhão de turistas visitavam a África do Sul anualmente”, comentou, “e hoje são 11 milhões e, com a Copa, esperamos que em 2014 sejam 15 milhões.” Perguntei se a expectativa não era exagerada. “Isso pode ser percepção, mas a realidade é que, hoje, a três meses do mundial, não há voos de Londres para Joanesbugo”, respondeu. “Estão todos lotados.” No final de abril, entretanto, a British Airways tinha vagas em seus três voos diários em todo o período do campeonato.
Jordaan disse acreditar que tanto a África do Sul quanto o Brasil terão que lidar com uma imprensa preconceituosa e desinformada: “A maioria de quem escreve sobre os dois países nunca esteve neles. Baseia-se em estereótipos e padrões obsoletos. Esperamos 100 anos para participar. E há quem acredite que devemos esperar outros 100.”
Ele rabiscava um papel à sua frente e mantinha a cabeça baixa. Respirou fundo e disse: “Existe um temor de que a gente tenha sucesso. Nós e o Brasil. Só que o mundo não pode ter só um centro, um país ou um continente relevante. E os países em desenvolvimento estão aí para mudar esse pensamento imperialista.”
Depois de vinte minutos, ele deu a conversa por encerrada. Virou-se para a assessora e quis saber: “Quem é o próximo?” Outros sete jornalistas de nacionalidades diferentes se espremiam na sala de espera.
A seleção sul-africana, os Bafana Bafana, ocupa a 90ª posição no ranking da Fifa (a pior colocação entre os times classificados para a Copa) e a 21ª entre os times africanos. Só vai participar do mundial porque é a sede. O futebol é o esporte da maioria negra. Os brancos, que representam 10% da população, só vão a estádios para assistir a partidas de rúgbi ou críquete.
Quando a Fifa anunciou que os ingressos para a Copa seriam vendidos via cartão de crédito pela internet, ou por meio de complicado procedimento bancário, ficou claro que o evento deixaria de fora o grosso da torcida local. Durante meses, a Federação divulgou que as vendas eram um sucesso. A estimativa era que quase meio milhão de estrangeiros desembarcariam no país para acompanhar os jogos, e que cada um deles gastaria 500 dólares diariamente.
Uma empresa chamada Match foi autorizada pela Fifa a vender 380 mil pacotes VIP em todo mundo. Segundo a companhia, os pacotes incluem passagens aéreas, hospedagem em hotéis cinco estrelas, ingressos em cadeiras especiais, transporte “diferenciado” e até “dedicadas hostess“. Um dos acionistas da Match é Philippe Blatter, sobrinho do presidente da Fifa, Joseph Blatter. A empresa também detém o direito de negociar a venda de direitos de transmissão das partidas das Copas de 2010 e de 2014 para os países asiáticos. No Zimbábue, a empresa que comercializa os pacotes turísticos pertence a um sobrinho do ditador Robert Mugabe, que mantém excelentes relações diplomáticas com o Congresso Nacional Africano.
Em Joanesburgo, tentei comprar um ingresso para assistir a um jogo do mundial. Fui informada que só haveria lugares disponíveis para partidas entre times de pouca expressão, como Paraguai e Eslováquia. Para a semifinal e a final, disseram-me, era impossível. Um mês depois, em março, a Fifa anunciou que ainda havia perto 1 milhão de entradas disponíveis. Os preços foram reduzidos em até 40%, o que fez com que os torcedores que já haviam garantido seus lugares se sentissem ludibriados. Em seguida, o Comitê Organizador lançou mais uma campanha de promoção do mundial para venda de ingressos.
Passou mais um mês e, em abril, a Match desistiu de mais de 500 mil diárias bloqueadas em hotéis de luxo. Também se soube que boa parte dos tíquetes de ingresso não estava nas mãos de torcedores, e sim nas de agências de turismo. Havia lugares disponíveis até para as semifinais e para a final. A expectativa de turistas estrangeiros foi diminuída para 250 mil.
Os torcedores estrangeiros teriam se afastado devido aos altos preços de hotéis e passagens aéreas. Na Cidade do Cabo, um hotel que cobrava 200 reais de diária havia subido seu preço para 860 reais durante os jogos da Copa. Um voo entre Joanesburgo e a Cidade do Cabo, que custa em média 250 reais, chega a valer 450 reais no dia seguinte ao começo dos jogos. A comissão de concorrência sul-africana começou a investigar a denúncia de formação de cartel nos setores hoteleiro e aéreo.
O receio de que os estádios ficassem vazios fez com que a Fifa passasse a vender ingressos em centros comerciais e locais de grande circulação popular. As filas serpenteavam pelas ruas e chegaram a derrubar o sistema de informática. Ao preço de 35 reais, 140 mil ingressos foram vendidos em quatro dias.
Em um país com cinquenta assassinatos por dia, um estupro a cada inacreditáveis vinte segundos e uma estatística de roubo galopante, a violência é apontada como outra causa da resistência dos turistas. Ainda que o governo anuncie ter recrutado 44 mil novos policiais, e investido 173 milhões de dólares em segurança, o desconforto permanece. No final de abril, a desconfiança aumentou com a divulgação pela imprensa do caso de duas mulheres brancas estupradas por policiais (uma dentro da própria delegacia) quando prestavam queixas de assaltos.
Até a década de 70, as finanças da Fifa dependiam basicamente da bilheteria das partidas, da venda de jogadores e de parcos lucros comerciais. Foi a partir da eleição de João Havelange, em 1974, que a organização virou uma máquina de fazer dinheiro. O jornalista inglês Andrew Jennings, único repórter banido de qualquer conferência ou entrevista coletiva da entidade, conta em seu livro Falta! O Mundo Secreto da Fifa como o brasileiro, que reinou absoluto por 24 anos à frente da organização, inventou a era do futebol-negócio.
Segundo Jennings, o filho do fundador e ex-diretor da Adidas, Horst Dassler, comprou votos de delegados indecisos na primeira eleição de Havelange. Dois anos depois, o brasileiro retribuiu o favor entregando a Dassler o poder exclusivo sobre a comercialização dos principais torneios mundiais.
Nos anos 80, Dassler fundou a ISL, uma empresa suíça de marketing esportivo que se tornou o braço comercial da Fifa e que garantiu o monopólio da gerência econômica do futebol por décadas. Foi quando marcas poderosas como Adidas, Nike e Puma passaram a orbitar o imaginário dos campos e dos negócios no esporte.
Vinte anos depois, a ISL foi à falência, quando veio à tona um gigantesco esquema de propinas a altos executivos da Fifa. Um dos elementos do escândalo foi o pagamento de 65 milhões de dólares feito pela Rede Globo, dos quais 22 milhões teriam sido depositados pela emissora numa conta no paraíso fiscal de Liechtenstein e repassados a cartolas da Federação.
Em 1990, os direitos de transmissão internacional da Copa foram vendidos por 65 milhões de dólares, o equivalente a 41% do faturamento do campeonato. Em 2006, o valor era de 1,97 bilhão de dólares. O número de patrocinadores também subiu de nove para quinze. As cotas televisivas se tornaram a principal fonte de arrecadação dos clubes e, por conseguinte, da Fifa.
A televisão mudou o futebol. Com o desenvolvimento tecnológico, o aumento dos investimentos nas transmissões esportivas e a generalização dos jogos ao vivo, o futebol virou um espetáculo global. A disposição de câmeras em pontos estratégicos e a utilização de recursos gráficos e digitais passaram a revelar detalhes antes restritos a quem estava a metros da bola. Telões invadiram os estádios e o público pode ver a repetição das melhores jogadas de vários ângulos, com closes dos jogadores. (Na Copa do mês que vem, as imagens dos gols serão enviadas para celulares e e-mails de torcedores cadastrados.)
O mais importante é que a recíproca é verdadeira: quem estava em casa, ou no bar, ou no restaurante, passou a acompanhar a partida como se estivesse no estádio. Enquanto os jogadores corriam e os torcedores vibravam, os patrocinadores ocuparam todos os espaços disponíveis para propagandear seus produtos: na camisa, na bola, nas chuteiras, nos calções, no gramado, nas arquibancadas, na voz dos locutores, na tela.
“De certa maneira, o torcedor do campo virou uma espécie de figurante para o espetáculo televisivo”, comentou o antropólogo Marcos Alvito, da Universidade Federal Fluminense, organizador da coletânea Futebol por Todo o Mundo: Diálogos com o Cinema. O indicador máximo dessa tendência foi a invenção das partidas de futebol com portões fechados, sem público, dirigidas exclusivamente para a televisão. A própria bola sofreu alterações, com os gomos pretos, para aparecer melhor na tela.
Para Alvito, a Copa do Mundo funciona como se fosse um superfilme que reunisse os mais bem pagos atores de Hollywood. “O jogador milionário virou uma celebridade”, afirmou. “Sua vida privada é contada por revistas de fofoca, ele interage diretamente com a câmera fazendo coreografias, gestos próprios, reinventando-se corporalmente para produzir um espetáculo.”
Antes, ele disse, a Copa do Mundo era a chance de ver o futebol alheio, funcionava como uma feira internacional do esporte: descobria-se como a Nigéria organizava a defesa, os holandeses cobravam as faltas, os suecos tocavam a bola. Com a tevê paga, não há mais mistério. É possível acompanhar a seleção da Costa do Marfim em toda sua temporada.
O historiador Eric Hobsbawm observou que “o futebol carrega o conflito essencial da globalização”: as relações contraditórias entre o teor cada vez mais comercial do esporte e a fidelidade emocional dos torcedores. Marcos Alvito completou o raciocínio dizendo que a globalização contribui para o aumento da racionalização do futebol, “mas isso ao mesmo tempo mina a relação do torcedor com o time. Se ele sente que é tratado como um consumidor, e não como um apaixonado, ele passa a agir como tal”. E citou um exemplo pessoal. Recentemente, havia preferido assistir em casa a uma final de seu time, o Flamengo, em vez de pagar um valor alto pelo ingresso e sofrer o desconforto de um estádio mal-ajambrado.
Quando a Fifa alardeia que os estádios devem estar lotados, portanto, é mais uma questão de estética de show do que financeira. O lucro da entidade em nada depende da venda de ingressos, mas para o sucesso do espetáculo as arquibancadas precisam estar cheias. “É o que o Berlusconi disse: o futebol ideal vai ser o dia em que a torcida receber para estar no estádio e se comportar exatamente como uma claque de auditório de um programa de tevê”, comentou Alvito.
Esporte e televisão viraram uma coisa só. Campeonatos são inventados para fechar a grade das emissoras, como é o caso da Copa Libertadores da América. Os times que não são classificados disputam a Copa Sul-Americana, os que também não entram vão para a Copa do Brasil. O resultado é que as emissoras garantem o show praticamente durante toda a semana. No Brasil, a Globo e a CBF são faces de uma mesma entidade, mantida por patrocinadores. É a emissora que marca o horário dos jogos organizados pela CBF, pois a ambas interessa preservar a audiência.
“A disputa de pênalti foi algo praticamente inventado pela televisão”, disse Marcos Alvito. “Na Inglaterra, quando o jogo empatava, havia prorrogação. Se o resultado fosse o mesmo, faziam outro jogo. E hoje a Globo decide como vai ser o campeonato carioca, se vai haver pênaltis, coisas desse quilate”, observou.
A Fifa espera que a Copa da África do Sul ajude a impulsionar as vendas dos televisores em três dimensões. A Federação se associou com a Sony, que fará captação de imagens em 3D, e com o canal pago ESPN.
O técnico Carlos Alberto Parreira, o carioca que é treinador dos Bafana Bafana, é um crítico da organização do futebol sul-africano. Segundo ele, não há a preocupação de formar jogadores desde a juventude. E como os times são privados, seus proprietários se interessam excessivamente por contratos com patrocinadores.
Ainda assim, ele disse o seguinte: “A televisão e o dinheiro mudaram mesmo o futebol. Mas sem a televisão, o futebol estaria morto. Todo mundo deveria falar todos os dias: ‘Obrigado, senhora televisão.'”
Ele acredita que a alma do futebol continua imaculada, apesar do seu crescente caráter comercial: “São os jogadores que fazem a beleza do futebol. É gente como o Messi, o Kaká, o Cristiano Ronaldo que fazem o jogo continuar a ser o que é. Eles são mais bem pagos do que no passado, mas também se exige muito mais deles. Jogam mais, têm que manter a forma.”
Parreira contou uma história do início dos anos 90, quando era treinador da Seleção Brasileira. Foi informado de um amistoso marcado para as dez da noite. Ele e Zagallo, o coordenador técnico, foram reclamar com Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol. “Ele nos disse assim: ‘Ah é? Não querem jogar às dez da noite? Tudo bem, mas aí não tem bicho, o.k.?'”, contou Parreira, referindo-se ao prêmio distribuído aos jogadores em caso de vitória. O dinheiro vem dos patrocinadores. No caso, a Globo, que impunha o horário do jogo para depois da novela das oito.
“Depois daquilo, nunca mais ninguém reclamou. Isso é uma briga inútil, idiota e infrutífera”, continuou Parreira. “O dinheiro melhora o estádio, os times, os jogadores. Está todo mundo feliz, bem pago, os estádios estão tinindo, de que reclamar? Acabou o romantismo. A coisa tem que ser profissional. O que implica em cumprir horários, e cumprir horários para receber dinheiro, e receber dinheiro significa manter o esporte.”
O futebol, no entanto, não se resume só a dinheiro e capital. O filósofo francês Auguste Comte observou que, na baixa Idade Média, invadir os territórios vizinhos era o principal meio de uma população melhorar o seu nível de vida. Era também a maneira com a qual a humanidade lidava com seus impulsos agressivos. Na era do industrialismo burguês, disse Comte, como a luta pela melhoria de vida passou a se dar mais na arena econômica, surgiria a necessidade da criação de um “canal de escoamento” para o desejo coletivo de violência.
Quando esteve no Brasil, em 2008, o escritor francês Michel Houellebecq disse que o “canal de escoamento” imaginado por Comte já existia “e obtém um sucesso crescente no conjunto do planeta: é o futebol”. Para o autor de Partículas Elementares, o futebol permite uma liberação de adrenalina real, embora menos poderosa que a do combate físico efetivo. Seu mérito é oferecer um espetáculo palpitante, de um suspense muito mais forte que o de qualquer produção cinematográfica imaginável.
“O futebol permite, pelo menos nas Copas do Mundo, a reconstituição da identidade nacional lúdica, porque temporária e facultativa”, disse Houellebecq numa palestra em Porto Alegre. “O futebol tem um caráter de distração cada vez mais evidente, na medida em que continuará dissipando as identidades nacionais pesadas, aquelas que antes serviam para iniciar e conduzir as guerras”, disse à audiência.
No livro Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, o ensaísta José Miguel Wisnik discute por que o futebol é o esporte mais globalizado. Segundo ele, isso ocorre por ser o único a quebrar a hegemonia que a indústria americana define como padrão da cultura de massa. Wisnik cita como exemplo o fato de, nos anos 80, a emissora ESPN, baseada nos Estados Unidos, não ter conseguido emplacar o basquete como a modalidade-chave de sua programação mundial. Ou como a Nike teve que lidar com um esporte que lhe era absolutamente estranho, mas tinha um apelo muito mais global.
O futebol seria, segundo ele, o ponto em que ocorre a quebra do domínio do imaginário imperialista. É onde a potência americana não consegue preencher o desejo das grandes fantasias de massa, de um exercício do jogo e da vida. “Onde falta a Coca-Cola dos esportes”, escreve ele, “é onde desponta uma coisa chamada Brasil, um negócio meio difícil de definir e que ganha uma certa clareza enigmática quando se trata de futebol.”
“A Copa no Brasil vai ser incomparavelmente melhor do que a da África do Sul”, disse-me Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol e chefe do Comitê Organizador de 2014, em uma manhã recente, no Rio. Ele participava de uma reunião num hotel à beira-mar, na qual mais de cinquenta representantes da CBF aprovaram as contas da entidade relativas ao ano passado. “Até ônibus a Fifa vai ter que levar para a África do Sul porque lá não tem”, contou. “A maioria da população anda em vans ilegais.”
Ao assumir a presidência da CBF, Teixeira abdicou de toda receita pública, inclusive dos dividendos de jogos da loteria esportiva, que fermentavam os cofres da entidade. Ele costuma dizer que a Confederação é totalmente privada. À época da CPI do Futebol, um dos seus argumentos era que a entidade não deveria ser investigada porque não lidava com dinheiro público.
Durante doze anos, Ricardo Teixeira articulou um grande acordo para se fazer a Copa na África do Sul e, em seguida, no Brasil. Com conversas, promessas e jogadas políticas, em 2000, quando da votação do país anfitrião para 2006, ele tinha nas mãos os votos de pelo menos doze dos 23 países garantidos para a África do Sul. De certa maneira, era o pagamento do apoio dado 26 anos antes, pelos africanos, à eleição do seu sogro, João Havelange, para a presidência da Fifa. Propositalmente, o Brasil se candidatou para sediar o mundial de 2006, para depois voltar atrás, o que reforçou o alinhamento dos africanos para os brasileiros na eleição seguinte.
Na última hora, porém, numa iniciativa muitíssimo suspeita, o representante da Nova Zelândia votou em branco, e a África do Sul perdeu por esse voto para a Alemanha. Foi preciso reelaborar a estratégia. Assim, a Fifa decidiu adotar, a partir de 2010, um rodízio de continentes. O africano era o primeiro da lista. Como o país mais rico, a África do Sul não tinha como perder. No torneio seguinte, pelas regras do rodízio, o país organizador viria da América do Sul. O apoio de todos os países do bloco ao Brasil já estava costurado.
Era quase hora do almoço e Teixeira resolveu se arriscar no melindroso bufê do lobby do hotel. Ele se serviu de palmito com molho branco, algumas folhas e tomate. Metade do fundo de seu prato ficou à mostra: estava de dieta.
Naqueles dias, além da segurança, transporte e geração de energia, uma onda de greves passou a ameaçar o sucesso do mundial. “Lá, é outro clima, outra organização política, outra maneira de lidar com as coisas, e a Fifa sabe disso”, disse Teixeira.
Para o presidente da CBF, o Brasil organizará a próxima Copa com mais facilidade. Com patrocínios de empresas locais, a África do Sul conseguiu arrecadar 40 milhões de dólares antes da Copa. Duas semanas antes, uma comitiva da Fifa havia deixado o Brasil levando contratos no valor de 240 milhões de dólares, garantidos quatro anos antes do mundial.
Quando fala de futebol, Teixeira é protocolar, diplomático e lacônico. Mas quando o assunto é política, ele parece um torcedor de futebol: muda o tom de voz, fica animado, cita encontros empolgantes com autoridades, menciona pesquisas eleitorais a que poucos tiveram acesso e deixa patente seu trânsito livre nas mais diversas esferas do poder.
Segundo disse, a Fifa foi alertada sobre eventuais contratempos provenientes da saída do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A transição pode retardar a alocação e a liberação de recursos para as obras exigidas para o mundial. A preocupação dos cartolas, disse Teixeira, diz respeito a uma eventual “volta do petismo” em substituição ao “lulismo” – que está perfeitamente alinhado com as ideias e vontades da dona da Copa.
Na África do Sul, o Comitê Organizador tem vinte membros, a maioria ligada ao Congresso Nacional Africano. No Brasil, são apenas três, todos ligados ao círculo do presidente da CBF, Ricardo Teixeira: sua filha, Joana Havelange, o economista Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central, e o assessor de imprensa Rodrigo Paiva.
Ricardo Teixeira era cumprimentado a cada cinco minutos. Um homem de óculos veio se queixar que o estádio do Sport do Recife estava “um lixo”. O governador do Amapá, Waldez Góes, aproximou-se da mesa para dizer que era candidato ao Senado, tinha “99% das intenções de voto”, e se colocava à disposição para integrar o que chamou de “bancada da bola”. O celular tocou. Era o senador Renan Calheiros, do PMDB, que o convidou para assistir a um jogo da segunda divisão em Arapiraca, no interior de Alagoas. Teixeira conseguiu desligar sem confirmar a presença.
Continuando a entrevista, ele disse que a maior preocupação da Fifa em relação ao Brasil diz respeito ao prazo das obras de reformas e construção de aeroportos e estádios. A segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (o PAC da Copa) dedicou apenas 3 bilhões de reais para investimentos em catorze aeroportos, a partir de 2011. Só o projeto para construção de um terceiro terminal em Guarulhos está calculado em 1,5 bilhão de reais.
Em 2014, quando a CBF comemora seu centenário de fundação, Teixeira terá completado um quarto de século à frente do futebol brasileiro. Sobreviveu a duas comissões parlamentares de inquérito, cultivou amigos e inimigos, tornou-se íntimo do presidente Lula. É um forte candidato à presidência da Fifa, em 2015. Sobre os rumores de que já está em campanha, ele é lacônico. “O tempo dirá”, disse, explodindo numa gargalhada.
* Correção em relação à versão imprensa, na qual se lia 2020.