ILUSTRAÇÃO: ILLUSTRATION BY KEVIN HOWDESHELL
A corrida
Senti uma pressão enorme na cabeça e passei alguns minutos sem respirar. Caí no chão do cafofo e tudo parecia rodar. Minha vista escureceu. Preciso escrever sobre isso para não acontecer de novo. Tenho que correr para recuperar o fôlego
Ricardo Lísias | Edição 65, Fevereiro 2012
As duas primeiras semanas de agosto do ano passado foram as piores da minha vida. Depois de apenas quatro meses, enquanto ainda estava tentando achar o lugar do interruptor e entender o que é ser um marido, fui obrigado a terminar meu primeiro casamento.
A situação era quase inverossímil e parecia um dos meus textos. Achei que tinha enlouquecido: estou vivendo um conto, repeti enquanto ligava o computador para mandar um e-mail agredindo minha ex-mulher.
Logo depois, enviava outro com uma declaração de amor. O terceiro ia para o advogado que ela tinha contratado. O último da manhã era mais calmo. Depois, tomava água e, da cama mesmo, olhava para o telhado do galpão onde vim morar. Como não tínhamos lugar para guardar meus livros, aluguei os fundos de uma casa. Eu morria de orgulho ao mencionar o “escritório”. Hoje, tenho vergonha de quase tudo isso, mas me afeiçoei ao cafofo.
Na primeira semana, não dormi. De vez em quando, chegava àquele estado de sonolência em que vivem as pessoas muito ansiosas. No terceiro dia, eu me vi morto. Enxerguei meu corpo deitado e percebi que não respirava mais. A morte é uma condição que a gente vive acordado.
Em 13 de agosto, uma semana depois de ter ido embora, furioso com a situação e pensando em quebrar tudo, saí para andar. Decidi que, se tivesse enlouquecido, nunca mais olharia para os meus amigos.
Acho que eram duas da manhã. Com certeza fazia muito calor, apesar do inverno. O cafofo fica bem perto da avenida Indianópolis. Cruzei-a duas vezes. Não vi nenhum carro popular pegando os travestis. De madrugada são os importados que rodam por lá. A elite brasileira faz tudo escondido. Normalmente, enquanto os outros dormem.
Deve ser ótimo levar a Ramona para casa. Mas só os covardes se escondem. Ela é linda, apesar dos seios meio tortos. A operação foi no Brasil, contou-me, mas bom mesmo é ir para a Europa. Ramona não gosta de clichês: nunca foi travesti na Itália. Madri é incomparavelmente melhor. Conversamos umas três vezes naqueles dias. Na última, ela me mandou embora. Vai para casa, bobo.
Depois da primeira noite de caminhada, dormi de verdade. Acordei uma hora depois, com uma descoberta: o segredo é ficar cansado. Consegui também acertar um pouco a respiração. A falta de ar ainda duraria algumas semanas.
Comecei a andar na avenida Indianópolis logo depois da meia-noite. Fiz na imaginação uma espécie de antropologia dos travestis. Não se preocupe, leitor: não anotei nenhuma placa. A cultura brasileira detesta o radicalismo. Pessoas simpáticas demais são falsas.
Fui aumentando o ritmo. Com isso, em pouco mais de uma semana dormia por duas horas. Em alguns dias teria coragem para contar tudo para a minha mãe. Eu sei, é inacreditável, mas é exatamente isso, mãe.
Eu também precisava retomar o equilíbrio para planejar um curso de contos. Faltavam quinze dias para a primeira aula. E tinha que concluir um romance. Um pouco antes de casar, garantira para o editor que terminaria O Céu dos Suicidas em novembro. Agora sequer consigo apontar o lápis direito. Escrevo à mão.
Reli “Os Mortos”, de James Joyce, antes de sair de casa no início da segunda semana de caminhada. Seria esse o primeiro conto do curso. Logo na esquina, vi a Ramona curvada na janela de um carro importado. Por algum motivo, talvez o preço, ela não entrou. A elite brasileira esconde-se, mas é muito zelosa do próprio dinheiro.
Faço mil concessões, mas não aceito ficar na fila em Nova York para comprar o ingresso da Broadway. Pior do que isso, só mesmo a off-Broadway. Na porta do Metropolitan, você só vai ouvir português. Nunca vou entrar na Notre Dame.
Com uns vinte dias, as caminhadas deixaram de fazer efeito. Acontece com naturalidade: comecei então a correr. Se não fizesse isso, iria me ver morto de novo.
Primeiro você anda e se cansa. Então, caminha bem mais rápido e consegue dormir. Portanto, se correr, coloca a cabeça no lugar de novo. O que existe de bom em tudo isso é o raciocínio lógico. Eu não tinha a menor chance de acreditar em outra coisa: essa era a minha salvação.
O Festival de Cannes é só uma feira. Ramona é a nossa estrela mais representativa. Declararam que, por causa da tradição humanista, Lars von Trier é persona non grata. Haroun, um dos membros do júri do varejão que sentenciou Trier, participou de uma guerra na África e é um cineasta humanista. Ele tem dois filhos e uma esposa em Paris.
Na primeira vez, consegui correr por mais ou menos quatro quadras da avenida Indianópolis. No final, sem nenhum preparo, fiquei exausto. De volta ao cafofo, dormi e acho que até ronquei.
Foi desse jeito que comecei a correr: lutando para adormecer de novo depois de sentir a maior tristeza do mundo, sem aceitar que tinham me enlouquecido, procurando a minha pele e respirando devagar para achar o fôlego.
Depois de uma semana, completei vinte minutos correndo sem nenhum intervalo. Com isso consegui mais ou menos três horas de sono. Continuava nervoso, mas já não enviava e-mails para minha ex-mulher. Nem agressão e muito menos amor.
Comprei um cronômetro e resolvi aumentar dois minutos por dia. Com meia hora de corrida pela madrugada, dormia bem, mas ainda não era capaz de preparar as aulas e, menos ainda, retomar o romance.
Precisava regularizar meus horários. Fiquei um dia sem correr, o que me causou outra noite acordado. Na manhã seguinte, completei 24 minutos no Ibirapuera. Depois de uma tarde agitada e bem mais alegre, fiz um plano antes de dormir: em um dia, uma corrida pesada; no outro, caminhada longa, mas em ritmo leve.
Meu mundo estava voltando a se organizar.
Correr quarenta minutos no Ibirapuera foi um desafio. Eu precisava sentir cada parte do meu corpo. No começo do treinamento, só pensava nisso: respirava fundo e concluía que estava vivo. Só quero morrer mais uma vez. O casamento não foi para sempre, como a gente tinha combinado (e eu acreditado), mas a minha próxima morte vai ser.
Quando as costas começam a doer, é preciso curvar o tronco para a frente. Se as coxas reclamam, chegou a hora de diminuir o ritmo. Os dedos do pé devem estar folgados, mas o tênis, bem apertado.
Logo depois de esquematizar essas ideias sobre a corrida, preparei a primeira aula. A estratégia estava clara para mim: o resto do dia existiria em paralelo ao treinamento.
Mesmo assim não foi fácil. Eu tinha receio de os alunos perceberem minha fragilidade psicológica. E depois iria almoçar com a minha mãe… Mas se tive coragem para começar a correr (inventar meu próprio treino fez parte da técnica de superação), talvez conseguisse contar tudo.
Eu sei, é inacreditável, mas é exatamente isso, mãe.
No grupo de alunos, havia alguns casais. Um deles sentou-se bem na minha frente. A moça sorria compenetrada e o rapaz carregava um exemplar de Infinite Jest. Na mesma hora, lembrei-me de que David Foster Wallace se enforcou mais ou menos na mesma época que o meu grande amigo André.
Antes de começar a falar, então, fiz outra promessa para mim mesmo: se conseguir terminar a aula de hoje e depois contar tudo para minha mãe sem chorar, corro a São Silvestre.
No começo de outubro esquematizei meu treinamento para a prova mais famosa do Brasil. Quando atingisse, sem nenhum intervalo, uma hora e meia no Ibirapuera, começaria então a correr em subidas. Não sei de onde tirei isso. Minha respiração já tinha quase se normalizado e aos poucos eu aumentava as horas de sono. Devo ter retomado a confiança.
A mesma coisa funciona para escrever um romance. Cada um tem o seu plano, mas sem um nunca o livro vai ficar pronto. Gente inconsequente vive mergulhada na vulgaridade. Talvez entre na Notre Dame ou no hotel onde estão os jurados do Festival de Cannes, mas da arte nunca vai se aproximar.
A literatura é o mundo da consequência. A gente escreve um capítulo por vez, e o próximo vai sempre se referir ao anterior. Você só termina a corrida se pensar em cada um dos quilômetros.
Como já tinha acostumado meu corpo ao treino e o curso de contos estava indo bem, faltava apenas voltar ao romance para recolocar minha vida no lugar. Respirar tinha ficado fácil.
Criei um método: antes de ir ao parque, por volta das sete da manhã, lia o que tinha rascunhado no dia anterior. Durante o treino, pensava no texto, cortava trechos na cabeça, invertia frases e desenvolvia algumas ideias. Nem reparei que estava correndo cada vez mais rápido.
Eu carregava um pedaço de papel que deixava na bicicleta com o lápis. Assim que terminava o treino, corria para anotar tudo o que lembrava. Quando me acostumei a correr uma hora e quinze, acabei o romance.
O André também gostava de esportes. Camarada, o livro sai em dois meses e estou bem de novo. Não cuidei de você direito, mas eu não sabia o que fazer.
Pouco depois de me inscrever para a São Silvestre, fui ameaçado. Uma amiga da minha ex-mulher, uma repórter de tevê (acho que hoje aposentada), começou a gritar no telefone que, se eu não parasse de escrever, a imprensa iria me destruir. Como se fosse pouco, enfrentaria as garras da Justiça. Por fim, a ameaça suprema: “Você está lidando com jornalistas, estamos te monitorando.”
Àquela altura, já havia percebido que só retomaria meu equilíbrio se, além de correr, tentasse elaborar ficcionalmente o que tinha sofrido. O esquema da corrida espelhava o dos textos. O primeiro saiu aqui mesmo na piauí, em novembro passado. O segundo, Meus Três Marcelos, estava circulando em uma edição caseira que eu tinha feito para presentear meus alunos. Uma editora fez uma edição artesanal e muito caprichada em janeiro.
Estive perto de enlouquecer quando achei que estava vivendo um texto que eu assinaria. Senti uma pressão enorme na cabeça e passei alguns minutos sem respirar. Caí no chão do cafofo e tudo parecia rodar. Minha vista escureceu. Preciso escrever sobre isso para não acontecer de novo. Tenho que correr para recuperar o fôlego. A minha pele pode ter sido roubada, mas minha literatura não vão tirar. Já morri uma vez.
No dia seguinte à ameaça, nervoso, corri exatamente uma hora e 56 minutos no Ibirapuera. Terminei o treino maravilhado. Não consegui repetir a mesma façanha quando estava bem mais calmo. Mesmo assim, a confiança de ter corrido ao menos uma vez todo esse tempo me animou.
No começo de dezembro, sentindo-me de novo mais ou menos são – ou seja, normal –, meu rendimento não passava de uma hora e dez minutos. Comecei a ter receio de não terminar a corrida. Fechar 2011 com outra decepção seria péssimo.
Faltava-me o que pensar durante o treino. Meu corpo tinha se acostumado e já não desanimava no início. Depois de 3 quilômetros, a vontade de parar é tentadora. Como exige muita força de vontade, a corrida devolve a confiança. O livro estava começando a ser produzido pela editora e o curso tinha acabado bem. Minha cabeça parecia organizada e eu me sentia tranquilo e forte. Mesmo assim, depois de uma hora e dez minutos meu corpo travava.
Resolvi passar de uma vez por todas para a subida. Todo mundo diz que esse é o trecho mais difícil da São Silvestre. Caso não conseguisse terminar, ao menos percorreria boa parte do caminho. Se desse errado, ficaria muito frustrado.
No começo, minhas coxas doíam, provavelmente porque a inclinação exige um ritmo menor, o que força muito as passadas. As ruas terminavam sem exceção na movimentada avenida Jabaquara. Quando percebi que não ouvia mais os barulhos dos carros, dei um enorme sorriso: de novo estava conseguindo viver dentro de mim.
Mas era preciso pensar em algo enquanto treinava. Esse é outro ganho que a corrida oferece: se encher a cabeça com alguma coisa, a gente rende mais. Resolvi esboçar um romance novo. Vou escrevê-lo agora em 2012. Depois de cada sessão de treinamento, redigia umas cinco páginas de rascunhos e ideias.
Nos últimos dez dias do ano passado, subi e desci correndo algumas ladeiras todas as manhãs. Posso garantir: é exatamente como criar um romance. Persistência, confiança, técnica, coragem, convívio consigo mesmo e autoconhecimento.
Em 29 de dezembro, tomado por uma imensa esperança, encerrei o treinamento que tinha inventado para a Corrida Internacional de São Silvestre de 2011.
Para os amadores, a largada da São Silvestre é um caos. Além da quantidade enorme de gente, o pessoal fantasiado só atrapalha. A gente cruza toda hora com um recalcado vestido de noiva, dois Batmans, um monte de Super-Homem e patetas carregando faixas falando de tudo. Deus nos proteja faz muito sentido naquele contexto.
Caminhei praticamente por toda a avenida Paulista. No pequeno trecho da Doutor Arnaldo, comecei por fim a correr. Atingi um bom ritmo apenas no contorno do estádio do Pacaembu. No início do Centro velho, percebi que tinha me estabilizado: as pessoas ao redor eram as mesmas há algum tempo.
Com exceção de certas dores localizadas, que vencia alternando levemente minha postura, meu corpo parecia bem. Comecei a pensar em tudo o que tinha acontecido. Senti alguma raiva, mas atrás do Teatro Municipal estava comovido: se o André não tivesse se matado, com certeza estaria correndo ao meu lado.
Fechei os olhos sentindo a chuva que começava a apertar. Vou terminar essa corrida. Nada vai me fazer desistir.
Um pouco antes da Brigadeiro Luís Antônio, correu o rumor de que o brasileiro Marílson não ganharia a prova. Alguém gritou que precisávamos nos concentrar porque a subida estava chegando. Então são esses os meus novos amigos?
Quando entrei na Brigadeiro, meu corpo sentia algum cansaço. Um senhor que acenava para a gente parecia meu avô. Por algum motivo, lembrei dos três dias em que mais chorei na minha vida: quando meu irmão mudou-se para a Austrália, quando me ligaram dizendo que o André tinha se enforcado e, cinco meses atrás, quando fui embora de casa.
Diminuí um pouco o ritmo para enxugar as lágrimas e chequei meu corpo, tentando me concentrar para sentir o pé, as pernas e as costas. Estava tudo bem. Respirei fundo e subi a Brigadeiro com toda a força que tinha juntado para preparar minhas aulas e terminar O Céu dos Suicidas. Não fiquei louco. Vou acabar essa corrida.
Estranhamente, não pensei nos dias mais felizes da minha vida. Talvez fosse fazer isso no final da subida. Mas não dá: quando a Brigadeiro acaba, os corredores todos gritam a mesma palavra: “Conseguimos!” Emociona.
Agora só falta a descida. Tranquilo. Eu e meus novos amigos tínhamos conseguido concluir a São Silvestre.
Quando um corredor profissional toma a dianteira e se distancia dos outros, o locutor da televisão diz que ele está “absoluto na corrida”. Durante a infância e a adolescência, ouvi essa frase inúmeras vezes vendo a São Silvestre.
Atravessei a linha de chegada debaixo de um temporal enorme. Concluí a prova em 1 hora, 25 minutos e 32 segundos. Minha classificação é a de número 5 392. Fiquei satisfeito, claro, mas senti algo inédito. Não sei como descrever. Eu estava absoluto em mim mesmo.
A corrida me devolveu a confiança, a respiração regular, o sono e a capacidade de fazer planos. Mas continuei fazendo algumas opções absurdas. Cruzei a linha de chegada da São Silvestre destruído. Nas primeiras horas, estava tão feliz que não sentia nada. Depois do Réveillon, porém, minhas pernas ficaram tão pesadas que eu não conseguia dar dois passos sem ter que parar e respirar bem fundo.
Como imaginava que ficaria desse jeito, marquei uma longa viagem para o dia seguinte. Fazia dez anos que eu não visitava meu irmão na Austrália e estava morrendo de vontade de conhecer meus sobrinhos. Emily tem hoje 8 anos e Erich, 4. O raciocínio era óbvio: como estaria destruído, dormiria facilmente no voo de quase catorze horas entre Buenos Aires e Sydney…
Um mero absurdo. Sempre que tentava pegar no sono, meu corpo reclamava. As pernas não ficavam bem em nenhuma posição, as costas custavam a se acostumar ao banco e dos meus pés eu já tinha desistido. Fiquei acordado a viagem inteira.
Ainda assim, o prazer de ter concluído a São Silvestre no 5 392º lugar valia mais que o desconforto. Inventei outro desafio: a Meia Maratona de São Paulo, agora no começo de março. Talvez em 2013 eu tenha coragem de encarar a famosa Maratona de Nova Iorque.
Não quero mais sofrer tanto. Vou morrer só mais uma vez.
Uma semana depois da São Silvestre, recuperado, comecei os treinamentos para a Meia Maratona. Aqui em Sydney, onde estou escrevendo, muita gente corre em espaços públicos. Uma parte de inúmeras ruas é reservada para ciclistas e corredores.
Tracei na internet um percurso que sai da casa do meu irmão, cruza uma pequena praça com aranhas do tamanho da minha mão, vai até um centro municipal de prática esportiva, vira à esquerda em uma grande avenida e retorna à rua dele.
Quando terminei a primeira volta, resolvi fazer uma brincadeira com meus sobrinhos (que adoram bagunça) e entrei correndo em casa. Emily, quase uma moça, se espantou, mas Erich veio atrás na mesma hora. Cruzamos o corredor e demos um giro pelo quarto dele. Na saída, a irmã veio junto e nós três fizemos a volta olímpica pelo quintal. As crianças adoraram.
No final do treino, entrei em casa e os dois tinham feito um pódio com uma cadeira. Emily me trouxe algumas flores e Erich entregou a medalha que tinha acabado de fazer com papelão e barbante. Durante a cerimônia, cantaram um hino que até agora não sei qual é. Mas percebi que sentiam orgulho de mim.
Foi a maior alegria da minha vida.