ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
A demolição
Uma camelô na periferia do Rio
Luiza Miguez | Edição 139, Abril 2018
Na sexta-feira, 9 de março, Luciana Damasceno cozinhava em casa quando o telefone tocou. “O pessoal da prefeitura está aqui”, avisou o marido dela, apreensivo. A moça largou as tarefas domésticas e desceu depressa a ladeira que dava acesso à praça Miami, na Vila Kennedy, favela da Zona Oeste carioca. De longe, avistou agentes municipais, PMs e algumas escavadeiras. Caminhando até o quiosque onde vendia sucos, vitaminas, água, café, sanduíche natural, bolos e salgados, a comerciante repetia para si mesma: “Fica calma! Eles provavelmente só vieram fazer uma faxina e tirar as barracas velhas.”
Nascida e criada na Vila Kennedy, Luciana Damasceno tem 34 anos e sustentava a família com o que faturava no pequeno quiosque verde. Ela ganhou o negócio do pai, um peixeiro, em 2003. O espaço de aproximadamente 2 metros quadrados acomodava uma geladeira, um freezer, uma chapa, uma refresqueira, uma pia e uma vitrine para os quitutes.
Tentando manter a calma, a vendedora começou a atender a freguesia enquanto, de soslaio, observava as escavadeiras colocarem abaixo os quiosques ao seu redor. Alguns comerciantes nem sequer conseguiram salvar as comidas e os equipamentos. “Eles vão deixar só a minha barraca, eles vão se compadecer”, murmurava Damasceno, grávida de três meses. Quando uma das máquinas se voltou para seu quiosque, a comerciante – que é evangélica da Igreja Metodista Wesleyana – agarrou a mão do marido e se ajoelhou em frente ao estabelecimento. “Eu não conseguia orar. Apenas pensava: ‘Deus, me ajude.’” Quase que instantaneamente, a imagem do casal ajoelhado se espalhou por sites de notícias e pelas redes sociais.
A escavadeira, hesitante, acabou recuando. Mas pouco depois, por ordem dos agentes, retornou à carga. Comovidos com o desespero da vendedora, moradores da favela entraram no quiosque e gritaram: “Este aqui ninguém vai derrubar!” Damasceno teve receio de que os vizinhos se machucassem. Por isso, agradeceu o apoio e pediu que todos saíssem da barraca. Em seguida, recolheu suas coisas e, junto do marido, assistiu à demolição da frágil estrutura. No fim daquela sexta-feira, dezenas de quiosques estavam destruídos.
À noite, na cama, como não conseguia pregar os olhos, a comerciante resolveu cantar uma música gospel. “Só Deus para me fazer dormir…” Despertou no dia seguinte com o som do telefone. Era alguém avisando que um carro viria buscá-la. A prefeitura desejava conversar com os camelôs prejudicados pelas demolições.
Luciana Damasceno e o marido ganhavam a vida no quiosque da praça Miami sem licença municipal. Já haviam sido notificados durante a gestão anterior, do emedebista Eduardo Paes, mas nunca as autoridades impediram o casal de trabalhar. Coordenada pela Secretaria Municipal de Ordem Pública, a ação do dia 9 de março não tinha precedentes na Vila Kennedy.
Em fevereiro, a favela se tornou “laboratório” da intervenção federal que o governo federal impusera ao Rio de Janeiro. Foi na comunidade com 41 500 habitantes que as Forças Armadas realizaram as primeiras operações de segurança no estado. Palco de arrastões e roubos de carga, a Vila Kennedy se encontra sob domínio do Comando Vermelho, a maior das três facções que controlam o narcotráfico fluminense.
A prefeitura alega que destruiu os quiosques por solicitação da PM, após denúncias de que a praça abrigava práticas criminosas. Comerciantes locais especulam que um drone do Exército teria flagrado o armazenamento de drogas em algumas barracas. Como as demolições repercutiram pessimamente, o prefeito Marcelo Crivella, do PRB, logo emitiu uma nota afirmando que houve “uso desproporcional da força” e que afastaria os funcionários envolvidos.
“Só quero minha licença e mais nada”, respondeu Damasceno no encontro com os representantes da prefeitura, quando lhe perguntaram do que necessitava para retomar o trabalho. Uma semana depois, Crivella liberou cestas básicas aos afetados, se comprometeu a regularizar a situação deles e os autorizou a reabrir o comércio em tendas de plástico, que o próprio município lhes cedeu. “Ele também garantiu que vai dar quiosques novos para a gente”, contou a vendedora. “Dar não, né? Devolver.”
Há alguns meses, a comerciante gastou todas as economias na compra de um terreno em Campo Grande, bairro tradicional da Zona Oeste. “Meu sonho é sair da Vila Kennedy”, explicou. O quiosque que ela mantinha na praça Miami exibia vários sinais de bala. “Quando caía uma caixa na barraca, a gente logo se jogava no chão pensando em tiroteio.” Com apenas 4 anos, o filho de Damasceno fica sempre longe do portão de casa para se proteger da violência.
Nos últimos tempos, a vendedora e o marido haviam duplicado a jornada de trabalho. Iniciavam o expediente às três da manhã e só o encerravam às oito da noite. Pretendiam embolsar cerca de 1 500 reais por semana para pagar o pedreiro que tocava a obra em Campo Grande. “Estava difícil, mas a gente ia levando. Agora já não sei…” Por enquanto, a comerciante se vira na tenda de plástico doada pela prefeitura.
“Tem vitamina?”, indagou um cliente. “Não tem, não, meu amor. Só tem café”, respondeu Damasceno. Era a sexta venda que perdia naquela manhã abafada. Sem geladeira, pia, refresqueira ou espaço para armazenar alimentos, só lhe restava vender sanduíches e café. Enquanto entregava o troco para outro freguês, se assustou com os policiais que, saídos de um camburão, prendiam um traficante perto da praça.
A vendedora pegara no batente logo cedo. Muito antes do almoço, porém, seu reduzido estoque de produtos terminou. Ela, então, guardou no carro os poucos equipamentos que havia trazido – a vitrine de salgadinhos, a chapa, o cooler –, assegurou-se de que a tenda estava acorrentada no solo e partiu.
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