ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
À deriva
Noll entre o campo e a cidade
Felipe Arruda | Edição 99, Dezembro 2014
Com a boina sobre a cabeça calva e as mãos enterradas nos bolsos do paletó de veludo, João Gilberto Noll observa a longa fila de vacas que avança em direção ao comedouro. A poucos metros do rebanho, um celeiro abriga o Small Wonder, festival britânico dedicado ao conto. Em instantes, o escritor gaúcho de 68 anos dividirá uma mesa com a carioca Tatiana Salem Levy e a tradutora inglesa Lucy Greaves. Autores consagrados como Margaret Atwood, Graham Swift, Lionel Shriver e Tessa Hadley também figuram na 11a edição do evento.
A luz da tarde daquele último sábado de setembro é opaca, mas permite vislumbrar a extensão do campo em que se incrusta a pequena vila de Charleston, anfitriã da festa. Apenas uma casa chama a atenção: uma construção centenária, de tijolos desgastados, janelas mínimas e chaminés, rodeada por um jardim florido. Ali moraram juntos a pintora Vanessa Bell, seu marido, o crítico de arte Clive Bell, e o amante dela, o pintor Duncan Grant, além do amante de Duncan, o escritor David Garnett. Vanessa era irmã da escritora Virginia Woolf, que à época residia na mesma região e frequentava o casal expandido, por assim dizer. Desde 1986, oito anos depois da morte de Grant, o local se transformou num museu, mantendo intacto o cenário que foi palco da libertária vida sexual de seus residentes, integrantes do arquifamoso grupo de Bloomsbury, formado por artistas e intelectuais no início do século XX.
Noll contempla os animais, até que um mugido longo e grave rompe o silêncio e, com ele, uma espécie de estado de sonho. “Acho que gostaria de viver aqui novamente”, murmura, referindo-se ao tempo que passou em Londres, em 2004, sob os auspícios do King’s College, enquanto escrevia seu décimo romance, Lorde.
Nostálgico, o gaúcho lembra que a estada lhe deu a chance de fazer o que mais gosta: escrever e caminhar. Sem compromisso formal com nada, apenas errava pela cidade, sem hora para voltar para casa. E sempre sozinho. “Londres me proporcionou estar confortável em minha solidão e sou grato à cidade por isso. Ser familiar a uma paisagem sem precisar me sociabilizar é o paraíso”, reflete o escritor de Solidão Continental, lançado em 2012.
Um dia, vagando pela capital, Noll deparou com a casa de T. E. Lawrence e foi invadido pelas imagens de Peter O’Toole em Lawrence da Arábia, de David Lean, um dos grandes filmes de sua vida. Ficou extasiado, não só por conhecer a casa de um ídolo, mas pela casualidade do encontro. Entusiasta do acaso, a ele o escritor credita os lances decisivos para sua escrita: “Você tem que se abandonar, estar um pouco à deriva.”
O escritor anda toda manhã pelas ruas de Porto Alegre, em caminhadas fundamentais para seu processo criativo. As ideias que afloram, ele as anota quando senta para um café. Sem um “horizonte programático”, escreve para fazer emergir o que está latente. Nunca sabe o destino de um personagem, tampouco o desfecho da história.
Com mais de trinta anos de carreira, dezenove livros publicados, cinco deles laureados com o prêmio Jabuti, Noll é tido como um dos mais originais ficcionistas contemporâneos do país, escrevendo sempre no limite entre a prosa e a poesia, mais focado na linguagem que em enredos ou estruturas narrativas. Em seus treze romances, o mesmo personagem reaparece – num livro é ator; noutro, escritor; num terceiro, vagabundo. Um indivíduo sonâmbulo, inoperante, marcado pela não ação, no contexto de um ambiente que exige produtividade.
Noll sustenta que esse personagem contemplativo o habita e encontra, na literatura, sua expressão. “Se um livro não consegue me humilhar, me causar vergonha, para mim ele não é um livro que valha a pena”, declara. “Esse personagem fala nos meus livros aquilo que eu calo socialmente. Se eu fosse ele, como cidadão, seria um escândalo.”
Um mugido interrompe suas divagações, é hora de retornar ao evento. O auditório, que comporta 300 pessoas, está ocupado por uma centena de inscritos, a maioria dos quais, como em quase todos os festivais literários no Reino Unido, composta por mulheres brancas, de classe média, acima dos 40 anos e em geral de cabelos grisalhos. Ávidas por literatura essencialmente de língua inglesa, não fazem muita ideia de quem sejam os convidados para o painel.
A agente literária Susie Nicklin apresenta os integrantes da mesa. Em uma hora de conversa, ela conduz o debate, que abarca questões como motivações, temas e inspirações literárias de cada um dos autores ali presentes. Tatiana fala em inglês, procurando conferir a suas respostas o mesmo cuidado que teriam se elaboradas na língua materna. Noll responde em português, em frases concisas como haicais. Lucy relata seus desafios na tradução de contos de Tatiana e Daniel Galera para o inglês. O público não parece muito interessado, ouve-se um cochicho aqui e ali.
A mediadora então propõe que os escritores leiam uma amostra de seu trabalho, no original – a versão em inglês é projetada no fundo do palco. Tatiana é a primeira a se levantar. Lê “Tempo perdido”, da coletânea de contos Como Se Não Houvesse Amanhã, inspirados nas músicas da banda Legião Urbana. A plateia se concentra. Em seguida, Noll caminha lentamente, assume o púlpito e saca uma edição amarelada de O Cego e a Dançarina, seu livro de estreia, publicado em 1980, pelo qual recebeu seu primeiro Jabuti.
Abre na página de “Alguma coisa urgentemente” e inicia a leitura em tom vagaroso e angustiante, como é seu costume. O público se envolve pela voz grave do autor e também pelo delírio do personagem, um jovem em Copacabana que se torna delinquente enquanto assiste à falência física do pai. À medida que se aproxima do final, o conto ganha em tensão e dramaticidade, e a angústia na voz do escritor se intensifica: “[…] e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que precisava fazer alguma coisa urgentemente.”
Terminado o evento, tanto o escritor quanto o festival parecem felizes com o resultado: “Nunca tivemos nada parecido por aqui”, diz a produtora Melissa Perkins. Lá fora, os mugidos retomam a calma dos dias.