Fontana, no laboratório em Londres, durante o doutorado: levará anos – talvez décadas – para reconstruir o que foi destruído no Brasil CRÉDITO: IGOR FONTANA_2019
A diáspora
Por que os cientistas estão indo embora do Brasil
Herton Escobar | Edição 181, Outubro 2021
A ciência brasileira, já em frangalhos devido ao descaso do governo federal pelo conhecimento e a pesquisa, recebeu uma punhalada fatal na quinta-feira passada, dia 7 de outubro. A Câmara dos Deputados aprovou, a pedido do Ministério da Economia, um corte de 92% em um crédito suplementar que seria destinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, por meio do Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) 16.
Isso significa que, do montante previsto de 690 milhões de reais, a pasta vai receber apenas a fatia de 55,2 milhões de reais – o principal do bolo será destinado, conforme um ofício do ministro da Economia, Paulo Guedes, a seis diferentes ministérios, entre eles o do Desenvolvimento Regional, da Saúde e da Educação. A maior parte dos recursos do crédito suplementar no PLN 16 – 655 milhões de reais – seria destinada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), de apoio a programas e projetos prioritários de desenvolvimento científico e tecnológico no país, que agora ficará a ver navios.
Oito entidades científicas, entre elas a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), reagiram imediatamente. “A modificação do PLN 16, feita na última hora, no dia de hoje, pela Comissão Mista do Orçamento do Congresso Nacional, atendendo a ofício enviado ontem pelo Ministro da Economia, subtrai os recursos destinados a bolsas e apoio à pesquisa do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações e impossibilita projetos já agendados pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, órgão do ministério]”, disseram, em nota encaminhada ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). “É um golpe duro na ciência e na inovação, que prejudica o desenvolvimento nacional.” Na nota, que traz o título “Manobra do Ministério da Economia afronta a ciência nacional”, as entidades pedem a Pacheco e aos parlamentares que revertam a mudança. “Está em questão a sobrevivência da ciência e da inovação no país”, afirmaram.
Leia a seguir a reportagem publicada neste mês pela piauí (ed. 181_outubro), em que o jornalista Herton Escobar conta como os investimentos públicos na ciência vêm minguando nos últimos anos, ao ponto de provocar este verdadeiro desastre para o futuro do Brasil: o êxodo dos nossos melhores cientistas para outros países.
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Toda sexta-feira à tarde, o bioquímico Eduardo Rigon Zimmer se reúne com seus alunos para discutir projetos, debater ideias e jogar um pouco de conversa fora, entre goles de chimarrão. É uma tradição que ele cumpre com prazer há quase quatro anos, desde que passou no concurso para professor adjunto e inaugurou seu próprio laboratório. São encontros de trabalho, mas que acontecem em clima de happy hour e reúnem mais de cinquenta jovens, incluindo alunos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, oriundos de várias disciplinas: bioquímica, biomedicina, medicina, ciência da computação, farmácia. “Tem sempre uma grande camaradagem nesses encontros. É o momento em que as mentes se conectam”, conta Zimmer, de 36 anos, um jovem prodígio da neurociência brasileira. Seu laboratório, instalado no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), dedica-se ao estudo de processos patológicos relacionados a doenças neurodegenerativas – em especial, o Alzheimer.
As coisas corriam bem até que, no segundo semestre do ano passado, Zimmer observou que a “gurizada” – como ele se refere carinhosamente aos alunos, apesar de não ser tão mais velho que eles – andava meio cabisbaixa. No lugar dos sorrisos e da efervescência natural das reuniões, transformadas em encontros virtuais por causa da pandemia, começaram a surgir sinais de desânimo, irritação e indignação com a falta de perspectivas para a ciência no Brasil. Em setembro do ano passado, ao final de uma reunião particularmente “horrível”, Zimmer quis entender o que estava acontecendo e convidou quatro alunos para conversar individualmente. Foi quando veio o baque: “Os quatro me disseram que queriam ir embora do Brasil”, lembra Zimmer. Não era blefe. Hoje, passado um ano daquela reunião, 6 dos 19 pós-graduandos do laboratório já partiram ou estão de saída marcada para o exterior – 2 para a Suécia e 4 para os Estados Unidos.
Em outros tempos, não muito distantes, enviar alunos para o exterior seria motivo de comemoração. Experiências internacionais são um componente valorizado na formação de qualquer cientista, tanto do ponto de vista técnico quanto cultural. O problema é quando as pessoas vão embora sem expectativa de retorno, motivadas mais por uma desilusão com o próprio país do que pela experiência que esperam agregar às suas carreiras no exterior – que é o que está acontecendo agora. “Essa rapaziada está indo embora com outra cabeça, sem intenção de voltar”, lamenta Zimmer. “Aquela vontade de ir para fora, para depois retornar e arrebentar aqui no Brasil, não existe mais. É muito nítido isso.”
É uma história que se reproduz em laboratórios e universidades Brasil afora. A tão temida “fuga de cérebros”, que cientistas vêm anunciando como um risco premente há pelo menos cinco anos, finalmente se materializou. Uma espécie de hemorragia intelectual aguda, que pode deixar sequelas profundas na já combalida ciência nacional, se não for estancada a tempo. Não há estatísticas que permitam diagnosticar com exatidão o tamanho desse êxodo – ou diáspora, como alguns acadêmicos preferem chamar –, mas o problema é palpável onde quer que se vá, em qualquer universidade ou instituto de pesquisa que dependa de recursos públicos para produzir ciência. “A fuga de cérebros é muito real e já começou há alguns anos, mas agora está virando uma avalanche”, diz o neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Tenho dois ótimos ex-alunos de doutorado que migraram para fazer o pós-doutorado e, do jeito que a coisa está indo, possivelmente não voltarão nunca mais.”
Motivos para ir embora não faltam. Faz oito anos que os investimentos públicos na área de ciência e tecnologia só encolhem, e muito. Levando-se em conta todos os gastos do governo federal nesse campo estratégico, envolvendo os diversos ministérios com alguma atuação no setor, o retrato é um desastre: de 2013 para 2020, o investimento encolheu 37%, segundo um levantamento da economista Fernanda De Negri, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério da Economia. Em valores corrigidos pela inflação, a área da ciência e tecnologia no Brasil recebeu menos recursos em 2020 do que em 2009; e os orçamentos deste ano do MEC e do MCTI são ainda menores do que os do ano passado. São doze anos de retrocesso.
Debulhando os números: o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), que deveria ser a engrenagem mais sólida do sistema, perdeu 52% do orçamento entre 2013 e 2020, voltando ao patamar de duas décadas atrás, quando o número de pesquisadores ativos no país era um quarto do atual. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência de apoio à pesquisa do país, vinculada ao MCTI, perdeu 90% do seu orçamento de fomento em dez anos, passando, em valores atualizados, de 263 milhões de reais em 2010 para apenas 24 milhões no ano passado, de acordo com dados fornecidos pela própria agência e já corrigidos pela inflação. O Ministério da Educação (MEC), outra peça-chave do sistema, sofreu corte de 50% entre 2013 e 2020, segundo De Negri.
Com tantos cortes e reduções, a oferta de bolsas de pesquisa também diminuiu. No CNPq, o número de bolsas pagas, que chegou a ultrapassar 100 mil no auge do programa Ciência sem Fronteiras entre 2014 e 2015, retornou ao seu patamar anterior, de 80 mil, e ali permanece imóvel desde 2017, sob ameaça permanente de novos cortes. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do MEC que regulamenta e financia a pós-graduação no país, também teve seu orçamento ceifado e eliminou mais de 8 mil bolsas em 2020, de acordo com um levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
O número de alunos matriculados na pós-graduação, por outro lado, nunca parou de crescer – o de doutorandos mais do que triplicou nas últimas duas décadas, de 33 mil para 120 mil, segundo dados reunidos por Odir Dellagostin, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap). Consequentemente, a parcela de alunos de doutorado contemplados com bolsas da Capes caiu de 42% em 2015 para 36% no ano passado. No pós-doutorado, a mesma situação: o número de bolsas fornecidas pela Capes e pelo CNPq no ano passado foi 35% menor do que em 2015, enquanto o número de doutores titulados cresceu 35% no mesmo período.
No sistema brasileiro de ciência e tecnologia, onde a maior parte das pesquisas é feita por alunos de pós-graduação em universidades públicas, o corte de bolsas não é apenas a interrupção de uma ajuda de custo. Equivale à demissão de um funcionário de uma fábrica, pois os alunos que se dedicam à pesquisa não conseguem exercer outras atividades remuneradas a fim de garantir o seu sustento. Para piorar a situação, o valor desses “salários” está congelado desde 2013: é de 1,5 mil reais mensais para mestrado, 2,2 mil para doutorado e 4,1 mil para pós-doutorado.
O que sobra dessa enxurrada de números é um cenário de escassez extrema, com cada vez mais gente dependendo de um volume cada vez menor de recursos para sobreviver. Se o orçamento federal de ciência e tecnologia fosse um prato de comida, a maior parte dos cientistas brasileiros estaria desnutrida.
Mas isso não é tudo. Além dos já clássicos desafios de se fazer ciência no Brasil – como o excesso de burocracia e a demora para a importação de insumos básicos de pesquisa –, várias outras perturbações entraram em cena desde o início do governo de Jair Bolsonaro: a pregação obscurantista, o negacionismo científico e os constantes ataques às universidades. É uma tempestade perfeita, capaz de afugentar para longe até o mais patriota dos cientistas.
“Não é só a falta de dinheiro, é o desgaste do combate”, desabafa a bióloga Mercedes Bustamante. Aos 58 anos, professora titular da Universidade de Brasília (UnB) e com uma carreira bem consolidada em ecologia e biodiversidade do Cerrado, ela não pensa em deixar o país, mas sente na pele o sofrimento dos alunos com a falta de recursos e os constantes ataques de Bolsonaro à área ambiental. “Falta de dinheiro a gente já enfrentou, mas não ficava levando tapa na cara e sendo atacada o tempo todo”, diz ela. “Esse sentimento, nenhum número transcreve.”
Em 2014, o jovem Igor Fontana cursava química industrial na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) e trabalhava numa fábrica de xampu para cachorros em Santo Ângelo, sua cidade natal, no noroeste do Rio Grande do Sul. “Não era a pessoa mais feliz do mundo”, confessa ele. Um dia, numa festa, reencontrou o primo de uns amigos de infância. Era Eduardo Zimmer, que ele não via há bastante tempo e que acabara de voltar de dois anos de doutorado em bioquímica na Universidade McGill, no Canadá, bancados por uma bolsa da Capes. Numa roda de conversa, Zimmer fez uma brincadeira em francês, imaginando que ninguém entenderia, mas Fontana respondeu, também em francês, surpreendendo o amigo. Engataram um papo e Zimmer sugeriu a Fontana fazer um mestrado na UFRGS com sua irmã, Aline Zimmer, professora no curso de farmácia da universidade.
Fontana topou o desafio. Concluiu química industrial em Santo Ângelo e, no ano seguinte, mudou-se para Porto Alegre. Fez o mestrado e apaixonou-se de vez pela ciência. Em 2017, começou o doutorado sob orientação do próprio Zimmer e trocou a experiência com xampu de cachorro por outro tipo de “pet”: a tomografia por emissão de pósitrons (PET, em inglês), uma técnica de imageamento que usa radiofármacos injetados na corrente sanguínea para visualizar estruturas e processos metabólicos do organismo. Para aprender a técnica, Fontana também conseguiu uma bolsa da Capes e passou dezoito meses na Inglaterra trabalhando com o professor Antony Gee, do King’s College London, um dos maiores especialistas do mundo em desenvolvimento de radiofármacos e PET.
Com planos de aplicar no Brasil tudo o que havia aprendido na Inglaterra, voltou para Porto Alegre no início de 2020, mas logo viu suas esperanças serem corroídas pela escassez de recursos e pelo ambiente ácido gerado pelo ódio bolsonarista contra as universidades. “Comecei a questionar não só se valia a pena continuar no Brasil, mas se valia a pena continuar fazendo ciência”, relembra Fontana. Filho e irmão de policiais (um federal, outro militar), Fontana ficou chocado com o negacionismo da ciência e o desprezo às universidades públicas. O vírus da intolerância espalhava-se pelo WhatsApp de amigos e de seus familiares. “A força do negacionismo me deixou perplexo”, relata.
Aos 28 anos, sem recursos nem concursos no horizonte para continuar fazendo pesquisa no Brasil, começou a se inscrever para vagas na indústria internacional de radioquímica. Recebeu uma proposta tentadora, de uma grande empresa do setor, que permitiria que ele voltasse a morar na Europa e viajasse o mundo trabalhando com radiofármacos – só que como representante comercial, não como cientista. Enquanto ruminava essa escolha que lhe parecia um tanto inglória, outro encontro fortuito o salvou. Em junho passado, Fontana participou de uma série de seminários sobre demência, organizado pelo Centro de Estudos do Envelhecimento da Universidade McGill, ao qual Zimmer é afiliado. Fontana levantou questões interessantes no evento e deixou uma boa impressão na pesquisadora sueca Agneta Nordberg, referência mundial no uso de radiofármacos e PET para o estudo do Alzheimer, que era a palestrante do dia. Nordberg convidou Fontana a concorrer a uma vaga de pós-doutorado no laboratório dela, no Instituto Karolinska, em Estocolmo. Ele gostou da ideia, se inscreveu e passou.
No início de setembro passado, quando conversou com a piauí, Fontana acabara de defender o doutorado na UFRGS e já estava de malas prontas para embarcar para a Suécia, levando várias camisas do Grêmio, seu time do coração, para honrar o hino do clube – “com o Grêmio, onde o Grêmio estiver”. Teria ele alguma expectativa de retornar ao Brasil ao final do pós-doutorado em Estocolmo? “Zero. Nem pensar”, responde, sem pestanejar. Sua namorada, mestranda em biomedicina, deve se juntar a ele no ano que vem, levando o amigo inseparável que também ficou momentaneamente para trás, o vira-lata Chumbo. “Com dois anos no laboratório da Agneta, o Igor consegue uma posição de professor em qualquer universidade da Europa”, aposta Zimmer. “O que a gente está fazendo agora é isso: transformamos esses jovens em excelentes cientistas para que eles trabalhem nos Estados Unidos e na Europa.”
Depois da fatídica reunião que fez a diáspora bater à sua porta, em setembro do ano passado, Zimmer não tentou dissuadir seus alunos da ideia de deixar o Brasil. Pelo contrário, se prontificou a ajudá-los. Se era para saírem do país, que fossem para laboratórios de ponta, pensou ele. Escreveu para colegas no exterior e começou a sondar oportunidades. “Chegamos a um ponto em que não é justo tentar manter as pessoas aqui”, pondera o jovem professor, que nasceu com a ciência no seu DNA – filho de mãe professora, pai farmacêutico, com duas irmãs mais velhas e um irmão mais novo, todos também formados em farmácia e pesquisadores de destaque.
O desapontamento dos alunos era compreensível e até compartilhado por Zimmer. Pouco antes da reunião da diáspora, o grupo recebeu a negativa de financiamento para um projeto de pesquisa sobre os efeitos da Covid-19 no cérebro e a possibilidade de amenizá-los com fármacos já existentes. A proposta foi submetida a um edital emergencial da Capes, chamado Epidemias, que poderia fornecer 250 mil reais em custeio e até seis bolsas de pós-doutorado para a sua implementação. O projeto foi aprovado no mérito – ou seja, considerado relevante, bem estruturado e digno de financiamento –, mas não foi selecionado. Desde então, vários estudos feitos por outros grupos no Brasil e no exterior vêm indicando que as células do cérebro mais afetadas pelo vírus da Covid-19 são os astrócitos – exatamente a hipótese que Zimmer e seus alunos planejavam investigar.
Foi um baque para a equipe, que contava com a aprovação do financiamento e das bolsas para dar uma sobrevida ao laboratório. Zimmer, agora, começa a ter dúvidas sobre a sua própria permanência no país. “Nunca pensei em deixar o Brasil, a não ser no último ano”, desabafa. A sua situação, à luz de grande parte da comunidade científica nacional, é até confortável: acaba de ganhar 150 mil dólares, cerca de 800 mil reais ao câmbio atual, da Alzheimer’s Association, principal entidade privada de apoio a pesquisas sobre Alzheimer no mundo, com sede nos Estados Unidos. Com o dinheiro, vai investigar o que acontece em determinadas células cerebrais nos estágios iniciais da doença, antes mesmo do surgimento dos sintomas. Além disso, Zimmer espera conseguir a renovação de um projeto financiado pelo Instituto Serrapilheira,[1] que poderá injetar mais 1 milhão de reais no laboratório pelos próximos três anos, a partir de 2022.
O financiamento de pesquisas é um dado essencial, mas a situação no Brasil chegou a tal ponto que nem isso tem sido decisivo. “Eu achava que o nosso universo de pesquisadores não seria muito afetado por essa fuga”, diz o geneticista francês Hugo Aguilaniu, que preside o Instituto Serrapilheira desde a sua fundação, em 2017. Ele imaginava que as cifras generosas oferecidas pelo instituto – que hoje variam de 200 a 700 mil reais – poderiam ajudar a reduzir o êxodo. “O terrível é que, mesmo assim, eles estão indo embora”, diz.
As instituições estrangeiras, conhecendo o talento dos cientistas brasileiros e as dificuldades que estão enfrentando, aumentaram o assédio para contratá-los, segundo Aguilaniu. Cinco dos 132 pesquisadores apoiados pelo Serrapilheira desde 2017 deixaram o país recentemente – quatro deles, neste ano. E muitos outros têm recebido propostas para fazer o mesmo. Alguns convites do exterior nem são tão atrativos, mas, mesmo assim, os pesquisadores ficam tentados a aceitar. “Isso é preocupante”, diz Aguilaniu. O instituto até mudou as regras de seus editais no ano passado para aumentar o valor inicial de financiamento por projeto selecionado e, dessa forma, tentar reduzir a evasão daqui para a frente. “A chegada do Bolsonaro foi muito destrutiva para a ciência. É uma ideologia que vai contra você e não quer que haja produção de conhecimento no Brasil. Os cientistas se sentem totalmente desprezados.”
O químico Pedro Henrique Camargo, que fazia parte da primeira turma de agraciados com financiamento do Serrapilheira, deixou o país no início de 2019. Estrela em ascensão no campo da nanotecnologia, ele tinha tudo que um pesquisador poderia querer no Brasil: aos 37 anos, já estava no topo da carreira acadêmica como professor titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Tinha laboratório próprio, produção científica de alto nível, um bom fluxo de recursos e alunos qualificados. Por estar em São Paulo, também contava com acesso a financiamentos da Fapesp, a sólida e renomada agência paulista de fomento à pesquisa, que faz do estado um porto seguro contra as intempéries orçamentárias de Brasília.
A especialidade científica de Camargo é o desenvolvimento de nanopartículas com “superpoderes” – nesse caso, propriedades ópticas muito especiais –, que, quando expostas à luz solar, permitem controlar e acelerar reações químicas diversas. Em última instância, ele busca potencializar a conversão de energia solar em energia química para, dessa forma, reduzir a dependência da indústria em combustíveis fósseis. “Queremos usar esses superpoderes para salvar o planeta”, diz ele, em um vídeo de divulgação científica que aparece em destaque no site do seu laboratório.
Mesmo com tudo isso a seu favor, no início de 2019 Camargo embarcou para a Universidade de Helsinki, na Finlândia, onde hoje é professor e coordena um laboratório de referência na síntese dessas “nanopartículas superpoderosas”. O principal motivo para sair do Brasil, segundo ele, foi o desejo de estar mais próximo da elite científica mundial: “Sempre fui ambicioso, com sangue nos olhos para quebrar paradigmas”, diz. Inicialmente, saiu com uma licença não remunerada da USP, válida por dois anos, o que lhe permitiria voltar e reassumir o cargo de professor titular dentro desse prazo, caso mudasse de ideia. Bem adaptado à Finlândia e sem intenção de voltar, porém, acabou pedindo demissão da universidade. Olhando para trás, ele acredita que saiu na hora certa. “Com certeza, se estivesse no Brasil agora, estaria muito preocupado”, diz. “É triste ter que dizer isso, mas a situação piorou muito desde 2018.”
Nascido em Ourinhos, no interior paulista, Camargo é tranquilo e simpático, apesar do “sangue nos olhos” pela inovação. Sente saudades do Brasil, mas não das dificuldades que enfrentava para fazer ciência por aqui – em especial, a burocracia, que obriga pesquisadores a desperdiçar quantidades imensas de energia com a elaboração de orçamentos, relatórios, licitações, prestações de contas e outras papeladas. “Aqui eu só escrevo projetos, recebo dinheiro e faço pesquisa. O resto é a universidade que faz. Tem todo um sistema de apoio, que te empurra para a frente o tempo todo.”
Outro que desembarcou na Finlândia no início de 2019 foi o ornitólogo Alexandre Padovan Aleixo, um dos maiores especialistas do Brasil em biodiversidade de aves da Amazônia. Até o fim de 2018, ele era pesquisador titular do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém, com todo o calor e exuberância da Floresta Amazônica ao seu redor. Agora, a única floresta tropical à vista é a do pano de fundo que ele coloca na tela do computador para falar com a piauí de sua nova casa, em Espoo, nos arredores de Helsinki, onde vive com a mulher e a filha. Do lado de fora, florestas boreais e temperaturas que podem chegar a -50ºC no inverno.
“Em 2018 já estava claro para mim que, pelo menos em Belém, não era mais possível trabalhar com técnicas de ponta em biodiversidade”, relata Aleixo, referindo-se às técnicas de sequenciamento genômico que usa para caracterizar espécies e entender processos ecológicos e evolutivos associados a elas. “Se eu, que sou uma liderança na área, estava com dificuldade para ter projetos aprovados, imagina quem estava começando.”
Dois anos antes, em 2016, Aleixo foi um entre muitos cientistas que tiveram projetos selecionados num edital dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTS), mas que não receberam recursos. O resultado do edital saiu com um ano e meio de atraso (por falta de orçamento). De um total de 252 propostas selecionadas, apenas 102 receberam dinheiro. As outras tiveram de se contentar com um “selo de qualidade” conferido pelo CNPq – incluindo o projeto de Aleixo, que reuniria pesquisadores de mais de vinte instituições no Brasil e no exterior para estudar questões relacionadas à biodiversidade e ao uso da terra na Amazônia. “Era minha grande esperança para continuar fazendo pesquisa de ponta”, lembra ele.
No ano seguinte, 2017, a situação financeira do MPEG era tão crítica que o museu fez um pedido público de socorro, anunciando que, sem recursos adicionais, seria obrigado a fechar duas de suas três bases físicas: o Parque Zoobotânico, em Belém, e a Estação Científica Ferreira Penna, na Ilha do Marajó. O valor previsto no orçamento do museu para aquele ano encolhera mais de 40% da noite para o dia, em função de um contingenciamento aplicado às verbas do Ministério da Ciência e Tecnologia no governo Michel Temer. O grito de socorro funcionou, e Temer acabou liberando 3 milhões de reais para ajudar o museu. Era pouco, mas o suficiente para pagar a conta de luz e manter as portas abertas até o fim daquele ano.
Aos 45 anos, com muito prestígio na praça, mas sem dinheiro para continuar suas pesquisas, Aleixo pensou: “É agora ou nunca. Ou eu saio, ou as portas vão se fechar para mim.” Se ficasse, teria de se contentar em “pegar carona em projeto de gringo”, entrando como coautor em projetos internacionais, financiados por agências estrangeiras. Em vez disso, virou ele mesmo o “gringo”. Achou uma porta aberta no exterior e tornou-se pesquisador e curador de coleções no Museu de História Natural (Luomus), da Universidade de Helsinki.
Mesmo longe, Aleixo continua fortemente conectado ao Brasil, trabalhando com dados coletados antes de 2014, quando ainda tinha alunos e recursos para ir a campo, mas faltava tempo para analisar as informações e escrever os trabalhos – por causa da burocracia excessiva do Brasil. “Nunca fui tão produtivo quanto nesses últimos dois anos e meio”, diz Aleixo, referindo-se ao trabalho na Finlândia. Desde julho passado, ele também é pesquisador do Instituto Tecnológico Vale (ITV), em Belém, na área de genômica ambiental, e seu vínculo com o MPEG permanece ativo, em licença não remunerada até 2022, prorrogável até 2025. Ou seja, ele tem mais quatro anos para voltar e reassumir sua posição no museu, se assim desejar. No entanto, é improvável que isso aconteça, se não houver uma mudança radical nas políticas e no sistema de financiamento à ciência no país. “O sistema nacional de ciência e tecnologia do Brasil está completamente colapsado. Não é funcional mais”, diz. “É muito doloroso ver esse esforço de décadas ser jogado no lixo por ignorantes, que não enxergam a importância da ciência.”
A situação vivida pelo MPEG é similar à da maioria dos institutos e universidades de pesquisa vinculados ao governo federal – que há anos sofrem com uma escassez crescente de recursos humanos e financeiros, e com dificuldades até mesmo para pagar as contas básicas de água, luz, segurança e limpeza. Em 2016, o supercomputador Santos Dumont, do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis (RJ), teve que ser temporariamente desligado por falta de dinheiro para pagar a conta de energia, prejudicando o andamento de diversas pesquisas. Agora, cinco anos depois, é o supercomputador Tupã, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que vive ameaçado de apagão, pelo mesmo motivo.
Um dos alvos preferidos da ira negacionista de Bolsonaro – por ser o órgão responsável pelo monitoramento do desmatamento e das queimadas na Amazônia –, o Inpe teve seus recursos drasticamente reduzidos nos últimos anos. Neste ano, seu orçamento é de 76 milhões de reais. Em valores corrigidos pela inflação, é 55% inferior ao de 2020 e 85% inferior ao de 2010, segundo levantamento publicado pela revista Pesquisa Fapesp. Além da situação precária do Tupã, essencial para o monitoramento meteorológico e climático, o Laboratório de Integração e Testes (lit), que desenvolve e constrói satélites nacionais, foi parcialmente desativado. “Qual foi o país que saiu da pobreza sem investimento em ciência e tecnologia? Eu não conheço nenhum”, diz o cientista Gilberto Câmara, pesquisador aposentado e ex-diretor do Inpe. “É uma atitude autodestrutiva. Estão jogando o futuro fora.”
No âmbito acadêmico, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das maiores e mais antigas instituições de ensino e pesquisa do país, teve que fazer como o MPEG e pedir socorro para não fechar as portas neste ano. Com seu orçamento reduzido em 33%, a reitoria anunciou em maio que só tinha recursos suficientes para manter a universidade funcionando por mais um ou dois meses – mesmo com as aulas presenciais suspensas, em função da pandemia. A reitora, Denise Pires de Carvalho, publicou artigos em jornais e organizou uma entrevista coletiva para pedir ajuda. Deu certo: na mesma semana, pressionado pela opinião pública, o MEC liberou 2,6 bilhões de reais para aliviar o sufoco das universidades federais, incluindo 152 milhões para a UFRJ. Nesse cenário de subsistência, manter a luz acesa é lucro e ter dinheiro para investir em pesquisa científica é luxo.
A explicação do governo para cortar e contingenciar recursos é sempre a mesma: crise econômica e falta de dinheiro. Na verdade: conversa fiada e falta de visão, segundo os especialistas em política científica. Os países desenvolvidos – e aqueles em desenvolvimento que sabem o que é bom para eles – investem mais em ciência e tecnologia em períodos de crise, e não menos. Muito do crescimento econômico recente da China e da Coreia do Sul, por exemplo, decorre de investimentos pesados e constantes em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico. As grandes potências do mundo investem mais do que 2% do PIB em ciência e tecnologia, comparado a cerca de 1% no Brasil. Em 2018, Bolsonaro foi eleito com a promessa de priorizar investimentos no setor e dizia que iria aumentar esse porcentual para 3%. Fez o oposto: dentre todas as pastas que perderam recursos no orçamento deste ano, o MCTI foi o que sofreu o maior corte, 29%.
Além disso, o dinheiro existe. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), criado ainda na década de 1960, recebe todos os anos bilhões de reais em contribuições obrigatórias de grandes setores da economia, como petróleo e energia. Por lei, os recursos deveriam ser destinados exclusivamente para o financiamento de projetos na área de ciência e tecnologia. Mas, em vez disso, as verbas do fundo têm sido sistematicamente sequestradas pelo próprio governo para ajudar no superávit fiscal. Entre 2010 e 2020, segundo especialistas do setor, mais de 26 bilhões de reais do FNDCT foram contingenciados – ou seja: ficaram retidos. Resultado: todo esse dinheiro, que era da ciência por direito, nunca chegou aos cientistas. No orçamento de 2021, 90% dos recursos de fomento previstos para o FNDCT foram novamente contingenciados pelo Ministério da Economia.
“Os estragos que estão sendo feitos na educação e na ciência do Brasil são muito, muito profundos”, diz a pesquisadora Helena Nader, professora titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Mesmo que Bolsonaro seja derrotado em 2022, e um governo um pouco mais preocupado com a ciência assuma seu lugar, ela acredita que levará anos – talvez décadas – para reconstruir tudo o que foi destruído. “Não estão acabando só com o hoje, estão acabando com o amanhã.”
Assim como tantos outros pesquisadores seniores, Nader viu vários de seus alunos deixarem o Brasil nos últimos anos. Mas, pior do que os talentos perdidos para o exterior, diz ela, são aqueles forçados a abandonar a ciência dentro do próprio país, porque não há empregos nem bolsas suficientes para mantê-los na carreira científica. Outro dado dramático, que as estatísticas não conseguem captar, são aqueles jovens que desistem antes mesmo de entrar no ensino superior, desenganados pelo discurso bolsonarista de que as universidades são “para poucos” e não garantem emprego a ninguém. Um sinal preocupante disso é o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2021, a porta de entrada para a universidade: em treze anos, nunca houve tão poucos inscritos. A queda mais acentuada se deu entre alunos pobres, negros, pardos e indígenas. “Mais trágico do que a evasão é a não formação de cérebros”, revolta-se Nader. “As pessoas que a gente deixa de formar não voltam mais.”
A área das ciências humanas – como a economia, por exemplo – não exige equipamentos sofisticados, nem um volume tão expressivo de recursos. Mas, mesmo aí, tornou-se um desafio segurar os talentos no Brasil. O Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), uma das escolas de economia mais conceituadas do país, perdeu três professores para o exterior nos últimos cinco anos e vem enfrentando crescentes dificuldades. Segundo Juliano Assunção, professor associado do departamento e diretor executivo do Núcleo de Avaliação de Políticas Climáticas da PUC-Rio, é cada vez mais complicado recrutar novos talentos e, também, atrair de volta ao país os alunos de pós-graduação que vão fazer doutorado lá fora.
“É muito bom que nossos alunos estejam tendo oportunidades em outros países, desde que a gente consiga preservar uma massa crítica de pesquisadores aqui também”, avalia Assunção. Não é só a falta de recursos que tem influenciado essas decisões, segundo ele, mas também as várias incertezas sobre o futuro do país, a desvalorização do real (que torna os salários aqui pouco competitivos, comparados aos do exterior) e até a violência urbana no Rio de Janeiro. “Eu mesmo, se estivesse começando a vida, sem filhos, pensaria de maneira muito séria em deixar o país”, reconhece o professor de 49 anos, que tem quatro filhos. “Faz muito tempo que as coisas estão ruins, sem perspectiva de melhora. Esse é o drama.”
“A gente tem capacidade de pensar como todo mundo. Intelectualmente, não estamos atrás de ninguém”, diz a jovem imunologista Esther Florsheim, formada pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP. “Mas estamos atrás na prática, na velocidade com que se consegue fazer as coisas”, completa ela, que desde janeiro é professora na Universidade Estadual do Arizona (ASU), nos Estados Unidos. Suas frustrações começaram já na graduação, entre 2005 e 2008, quando teve de abandonar um projeto de pesquisa promissor sobre processos inflamatórios induzidos por bactérias porque era quase impossível conseguir no Brasil os camundongos transgênicos necessários para testar sua hipótese. Anos mais tarde, a hipótese acabou comprovada por outro grupo, fora do Brasil, com um trabalho de alto impacto publicado na revista Science.
No doutorado, Florsheim passou catorze meses na Escola de Medicina de Yale, na Costa Leste dos Estados Unidos, financiada por uma bolsa da Capes, trabalhando com o pesquisador Ruslan Medzhitov, um dos maiores imunologistas do mundo. A velocidade com que conseguia obter insumos e avançar nos experimentos a deixou deslumbrada. Ela voltou à USP em 2014 para defender o doutorado, mas teve dificuldades para se readaptar à burocracia brasileira. Acabou voltando para Yale, a convite do próprio Medzhitov, para fazer o pós-doutorado e iniciar uma nova linha de pesquisa, mesclando imunologia e neurociências. Em 2018, Florsheim veio ao Brasil para votar nas eleições presidenciais e ficou chocada com o estado de espírito dos colegas: “O clima estava péssimo. Os alunos totalmente desiludidos, todo mundo sem bolsa. Não tem como fazer ciência numa condição dessas.” No fim de 2019, antes mesmo de terminar o pós-doutorado em Yale, ela recebeu o convite da ASU para fincar raízes no Arizona.
Como quase todos os cientistas ouvidos para esta reportagem, Florsheim, uma moça simpática de olhos claros e cabelos encaracolados, preferiria estar no Brasil, perto da família, do que ser uma eterna imigrante em terras estrangeiras. Mas aqui não conseguiu atender a sua paixão pela pesquisa. Depois de um período se sentindo culpada por deixar o Brasil, ela hoje acredita que pode contribuir mais para a ciência brasileira estando fora do que dentro do país, orientando alunos a distância, convidando pós-doutorandos para o seu laboratório e estabelecendo parcerias com colegas no Brasil. “As pessoas que estão no Brasil são muito guerreiras”, diz. “Nunca foi fácil fazer ciência no país, mas agora está terrível.”
A Capes e o CNPq, as principais agências de concessão de bolsas de estudo no exterior, fazem uma exigência: todo o bolsista é obrigado a retornar ao Brasil e ficar por aqui pelo mesmo período em que esteve lá fora. É o chamado “interstício”, pelo qual o bolsista retribui ao país o benefício que recebeu, aplicando aqui o conhecimento que obteve no exterior. Quem decide não voltar ao Brasil, ou deixar o país antes do prazo legal, pode ser obrigado a devolver o valor integral da bolsa. Pois talvez nem essa exigência seja suficiente para estancar a diáspora a médio e longo prazo. A bioquímica Juliana Rizzo Balancin, de 32 anos, é refém desse dilema: ela passou um ano trabalhando num projeto de pesquisa sobre fungos patogênicos no Instituto Pasteur, em Paris, com bolsa da Capes, e teria que retornar ao Brasil em agosto deste ano, mesmo já tendo conseguido uma segunda bolsa, do próprio Pasteur, para permanecer na França e dar continuidade ao projeto por mais dois anos. A Capes concordou em adiar sua volta por um ano, mas não dois. Agora, se não retornar ao Brasil, Juliana poderá ter de devolver os 33 mil euros (cerca de 200 mil reais) que recebeu da agência.
“Eu quero voltar”, diz Balancin. “Quero fazer ciência no Brasil. Assinei o contrato da bolsa sem qualquer receio, mas não vou voltar enquanto não tiver certeza de que tem alguma coisa para mim.” Seu tom de voz é uma mistura de lamento e indignação. Além do prejuízo de ter que interromper seu projeto no Pasteur, ela diz ter sondado as oportunidades no Brasil – concursos ou editais em aberto, que lhe permitissem continuar fazendo pesquisa no país, de preferência empregada – e encontrou apenas um edital de pós-doutorado da Faperj, a fundação estadual de amparo à pesquisa do Rio de Janeiro, no qual ela acabou se inscrevendo. Mesmo concordando com a exigência do interstício, ela acredita que deveria haver mais flexibilidade por parte da Capes, em vista da situação atual do país. Afinal, abandonar um projeto de pesquisa na França para ficar desempregada no Brasil não é bom para ninguém, argumenta.
A bióloga Gabriela Sobral, de 38 anos, viveu exatamente a situação que Balancin está tentando evitar. Especialista em paleozoologia – ciência que se dedica ao estudo de animais extintos –, ela fez graduação na UFRJ, mestrado na USP e doutorado, com bolsa da Capes, na Universidade Humboldt de Berlim, na Alemanha, onde se especializou em tomografia computadorizada aplicada ao estudo de fósseis. Concluído o doutorado, voltou para o Brasil com a ideia de estabelecer uma linha de pesquisa com o que aprendeu lá fora. Seu retorno ocorreu em 2015, justamente quando o orçamento do MCTI levava seu primeiro grande tombo. Não conseguiu emprego como cientista. “Passei um ano escrevendo projetos e estudando para concurso”, conta a carioca.
Em 2016, Sobral conseguiu uma bolsa de pós-doutorado do CNPq, para tocar um projeto de pesquisa sobre a evolução da morfologia craniana de jacarés, no Museu de Zoologia da USP. Era uma bolsa de um ano, renovável por mais doze meses, mas acabou renovada por apenas mais três meses. O projeto parou no meio, e Sobral se viu mais uma vez desempregada da ciência. Para pagar as contas, deu aulas numa escola de ensino fundamental em São Paulo. Sua sorte virou quando um pesquisador do Museu de História Natural de Stuttgart, que ela conhecera durante o doutorado, a convidou para voltar para a Alemanha e desenvolver um projeto sobre fósseis de lepidossauromorfos, o grupo de répteis rastejantes que inclui as cobras e os lagartos modernos. Sobral aceitou na hora. Assinou contrato para um pós-doutorado de três anos, arrumou as malas e foi-se embora.
Em junho de 2019, Sobral recebeu uma proposta para voltar ao Brasil como professora adjunta na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, para a qual ela prestara concurso dois anos antes. Era um emprego seguro, com estabilidade e todas as outras vantagens do serviço público federal. Por outro lado, Bolsonaro acabara de tomar posse, e o clima de cruzada “anticomunista” nas escolas e universidades era intimidador. O então ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, pedia às escolas que filmassem seus alunos cantando o hino nacional, enquanto parlamentares bolsonaristas pregavam vigilância e perseguição a professores “esquerdistas” nas universidades. “Fiquei claramente com medo de sofrer alguma represália”, conta Sobral. Filha de sindicalistas aposentados da Petrobras, Sobral cresceu ouvindo histórias de repressão e censura da ditadura militar. “Não sei se quero passar por isso”, pensou. Decidiu ficar na Alemanha.
“Voltar para o Brasil não está nos meus planos, por enquanto”, diz ela. Os três anos que passou no Brasil depois do doutorado na Alemanha só atrasaram sua carreira. Nem os quinze meses de pós-doutorado no Museu de Zoologia da USP valeram alguma coisa no currículo, pois o projeto foi interrompido no meio e não resultou em nenhuma publicação científica. Já os três últimos anos na Alemanha têm rendido bons frutos. Em agosto, ela emplacou sua primeira publicação na prestigiosa revista Nature, como coautora da descrição do fóssil mais primitivo de lepidossauro já descoberto. “Não teria como fazer esse trabalho se estivesse em Florianópolis”, pondera.
Juliana Balancin e Gabriela Sobral fazem parte de uma geração de jovens pesquisadores que começaram suas carreiras numa fase próspera da ciência no Brasil, entre 2000 e 2014, período em que os investimentos cresceram, a pós-graduação se expandiu e a produção científica brasileira decolou. Mesmo depois que o orçamento do MCTI começou a desmoronar, ainda havia um resquício do programa Ciência sem Fronteiras, que enviou, entre 2011 e 2017, uma massa de 104 mil bolsistas ao exterior, ao custo de 15 bilhões de reais. O programa é frequentemente criticado por falta de planejamento e porque a maioria dos bolsistas era formada por alunos de graduação, que não tinham maturidade ainda para tirar amplo proveito da experiência em termos científicos e acadêmicos. Mas, à luz da realidade de hoje, discutir prós e contras do Ciência sem Fronteiras é um luxo. Depois de inocular toda uma nova geração de brasileiros com o desejo pela ciência, “não dá mais para botar o gênio de volta na garrafa”, diz Mercedes Bustamante, da UnB. Se o país não der a esses jovens cientistas as condições mínimas para colocar em prática o que aprenderam, é inevitável que sejam capturados por outros países ou desistam da ciência, para não ficarem desempregados.
A principal aposta para reverter a situação de penúria orçamentária no curto prazo é a blindagem do FNDCT, o fundo cujos bilhões deveriam ser destinados à ciência. Na virada de 2020 para 2021, a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), uma superliga de organizações científicas e acadêmicas criada em 2019 para desarmar a implosão do sistema junto ao Congresso Nacional, conseguiu uma vitória importante com deputados e senadores. Foi aprovado um projeto de lei, de autoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que proíbe o contingenciamento de recursos do FNDCT. Bolsonaro vetou o projeto em janeiro passado, mas os parlamentares derrubaram o veto dois meses depois.
A expectativa inicial era de que, uma vez promulgada, a nova lei destravaria cerca de 5 bilhões de reais, que estavam contingenciados para 2021. Esse volume de recursos representaria um alívio tremendo para o setor, só que, mais uma vez, o governo conseguiu manter a ciência na inanição. Numa manobra política de última hora, articulou para que a derrubada do veto presidencial só fosse publicada no Diário Oficial da União depois da votação da Lei Orçamentária de 2021, criando, desse modo, uma brecha jurídica para atrasar a aplicação das novas regras. Deu certo. A derrubada do veto só foi publicada no DOU no dia 26 de março, um dia depois da votação da Lei Orçamentária. Desde então, o governo vem liberando parte dos recursos contingenciados a conta-gotas e com amarras.
Em junho passado, pressionado pela comunidade científica, o Congresso aprovou um projeto de lei do governo que libera 1,89 bilhão de reais da reserva de contingência do FNDCT, mas apenas na forma de recursos reembolsáveis. Ou seja, o dinheiro servirá apenas para a concessão de créditos a empresas interessadas em desenvolver projetos de inovação. Mas nem isso deve acontecer. Os especialistas no assunto dizem que as condições dos empréstimos são tão pouco atrativas que as empresas não devem se dispor a tomar o dinheiro, especialmente no cenário econômico atual.
No campo dos recursos não reembolsáveis, que poderiam efetivamente irrigar a produção de ciência nas universidades e institutos de pesquisa, a proposta é bem mais modesta. Em meados de agosto, o governo liberou 415 milhões de reais da reserva de contingência do FNDCT para o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19. Depois, enviou um projeto de lei ao Congresso pedindo a liberação de mais 690 milhões de reais, cuja maior parte (560 milhões) deverá ir para o CNPq, que planeja usar o dinheiro para financiar uma série de editais até o fim do ano, incluindo uma nova Chamada Pública Universal, já anunciada em 31 de agosto. Edital mais tradicional da ciência brasileira, a Universal não é realizada desde 2018, por falta de recursos. Mas atenção: a implementação do edital depende da aprovação do projeto de lei, que, até o fechamento desta edição, ainda estava em tramitação no Congresso. Enquanto isso, outros 2 bilhões de reais do fundo seguem contingenciados, sem previsão de liberação.
No ano que vem, se o governo não fizer nenhuma manobra nova para sufocar a ciência, os recursos do FNDCT não poderão ser contingenciados – e os cientistas poderão ter algum alívio. A primeira versão do projeto de lei sobre o Orçamento da União para 2022 prevê duplicar os recursos para investimentos no MCTI, segundo uma análise preliminar feita pela SBPC. É, por ora, apenas uma promessa. Enquanto isso, Juliana Balancin resume a situação de muitos cientistas brasileiros que partiram: “Meu plano A é voltar para o Brasil, e estou tentando. Se a situação melhorar, vou estar pronta para fazer parte do time”, diz. “Mas o cenário é muito nebuloso. Mais assustador do que o presente é não saber como vai ser o amanhã.”
Apesar de tudo, o ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, tem uma visão otimista da situação. Sempre sorridente, tranquilo e com um discurso de motivação patriota na ponta da língua (“Confie na ciência brasileira”, é um de seus bordões favoritos), o astronauta e tenente-coronel da Força Aérea Brasileira refletiu sobre a fuga de cérebros em uma de suas lives matinais no Instagram, em 23 de junho deste ano. Disse que seu ministério pretende ampliar a oferta de bolsas de pesquisa, não só dentro das universidades, mas também nas empresas, e que isso – aliado a um “financiamento mais estável” – deverá atrair muitos pesquisadores estrangeiros para o Brasil nos próximos anos.
“Já tem muitos cientistas de outros países pretendendo vir trabalhar no Brasil”, disse Pontes. “Isso vai acabar, de uma certa forma, trazendo a reboque aqueles cientistas e pesquisadores brasileiros que foram para o exterior e estão trabalhando lá”, completou. Em tom um tanto jocoso, fez uma previsão sem respaldo na comunidade científica de que pesquisadores brasileiros que deixaram o país logo começariam a reclamar do fato de cientistas estrangeiros estarem ocupando o lugar deles aqui. “Isso é meio chato, mas faz parte”, disse. “Tem que pensar que a ciência é internacional.”
À frente do MCTI desde janeiro de 2019, Pontes é um dos ministros mais longevos de Bolsonaro, mas apita pouca coisa no governo e jamais se contrapõe ao chefe, mesmo quando ele ataca frontalmente a ciência. Na comunidade científica, Pontes é visto mais como um garoto-propaganda do que como um defensor da ciência, apesar de claramente entender a importância desta para o desenvolvimento do país. A piauí procurou o MCTI para comentar sobre a diáspora de cientistas, mas o ministério preferiu não falar.
[1] O Instituto Serrapilheira foi criado pelo editor fundador da piauí.
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