Paulo Lins e Silva e o filho João Paulo encontraram-se pela primeira vez com David Goldman em Brasília, no mês passado. A audiência no Superior Tribunal de Justiça durou quase seis horas e deu ao americano o direito de visita FOTO: WENDERSON ARAÚJO
A diplomacia entra em campo
Em mais um round pela guarda de Sean Goldman, a Casa Branca defende o pai
Dorrit Harazim | Edição 30, Março 2009
Chris Smith é um americano de meia-idade, roliço e afável, de bochechas rosadas ao primeiro contato com algum fiapo de sol, que vive viajando. Seus roteiros não são os do circuito turístico. Entre outros países, já esteve na Rússia, Geórgia, Romênia, Vietnã, China, Sudão, Cuba e na Irlanda do Norte. Há 28 anos ele bisbilhota in loco a condição dos direitos humanos de grupos mais vulneráveis a abusos. Deputado republicano por Nova Jersey desde 1981, ele é membro sênior da poderosa Comissão de Relações Exteriores do Congresso dos Estados Unidos. Também é tido como um dos parlamentares mais tenazes do Capitólio. Trabalho infantil, prostituição forçada, extermínio de minorias e mazelas sociais de toda ordem o põem em marcha pelo mundo afora.
No final de janeiro, o senhor Smith se preparava para passar um fim-de-semana com a família, em sua casa de Hamilton, no estado que, três meses antes, o reelegera pela décima quinta vez consecutiva. Eram dez da noite e ele assistia à televisão com Marie, sua mulher. Estava sintonizado no Dateline, da rede NBC, um dos mais renomados programas jornalísticos da tevê americana, com uma hora de duração dedicada a grandes reportagens. Um dos temas daquela sexta-feira era o caso de David Goldman, o americano cuja esposa brasileira, a carioca Bruna Bianchi, fugira para o Brasil em 2004 com o filho do casal, Sean, de quatro anos. O documentário Fighting for Sean (“Lutando por Sean”) contava a atividade desse pai para reaver seu filho único desde então (veja “Um Pai em Terra Estrangeira” piauí_26, novembro de 2008).
O programa da NBC recapitulava os fatos através da ótica de Goldman, e o novelo que desembocou numa fatalidade prendeu a atenção do parlamentar Smith: casada em segundas núpcias com o advogado brasileiro João Paulo Lins e Silva, a jovem mãe de Sean morreu de complicações de parto, em agosto passado. O menino, separado do pai biológico por força de sua remoção e retenção no Brasil, tornava-se órfão de mãe. Ainda assim, todas as tentativas judiciais do pai para levar o filho de volta para os Estados Unidos, como determina o Tratado Internacional de Haia, assinado pelo Brasil, emperraram nos tribunais estaduais fluminenses. O padrasto do menino obtivera do juiz titular da 2ª Vara de Família, Gerardo Carnevale Ney da Silva, a guarda provisória da criança na condição de “pai sócio-afetivo”, e pleiteava a alteração do sobrenome do enteado de Goldman para Lins e Silva.
Com os créditos finais do programa ainda na tela, o congressista Chris Smith, pai de quatro filhos, decidiu que deveria se envolver no caso. Afinal, o menino Sean era um cidadão americano, nascido na mesma Nova Jersey. Ademais, Smith tivera êxito numa complexa operação de repatriamento de duas meninas em meados do ano passado. Na ocasião, as irmãs Ashley, de sete anos, e Sophia, de três, estavam retidas na Geórgia durante a invasão russa, e separadas do pai.
Passava pouco das onze da noite quando Mark DeAngelis, responsável pela criação do site bringseanhome.org, a ferramenta eletrônica da campanha de mobilização pelo retorno de Sean a seu pai, recebeu uma mensagem de Mary Noonan, chefe de gabinete do deputado Smith. O congressista queria conhecer David Goldman e pediu que ele viesse a seu escritório já dali a dois dias, na tarde da segunda-feira. Goldman, não sabendo o que o esperava, foi ao encontro com sua advogada americana, Patrícia Apy, e o amigo Mark. Ao ser informado de que o pai de Sean fora convocado para uma audiência no Superior Tribunal de Justiça, o STJ, em Brasília, marcada para aquela semana, Chris Smith se ofereceu para acompanhá-lo. “Fiquei maravilhado”, contou Goldman mais tarde, “pois ele tomou essa decisão em menos de dez minutos de conversa”.
Goldman já havia vindo antes ao Brasil sete vezes, sempre para tomar pé no cipoal jurídico que atravanca o retorno de Sean uma vez com a mãe, duas com um primo e as quatro restantes, sozinho. Em todas elas, voltou de mãos vazias. E, a cada viagem, com a impressão de que se tornava mais difícil o cumprimento da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças – a chamada Convenção de Haia – na qual sustenta o seu pleito.
Na verdade, a tradução para o português é um tanto inadequada, uma vez que “sequestro”, no Brasil, costuma dar a entender um ato violento, praticado mediante extorsão visando o lucro. O “sequestro” de que trata a convenção é basicamente o ato praticado por um genitor, que subtrai o filho da companhia do outro genitor. Quando uma criança é levada para fora de seu país de residência e mantida no outro país contra o consentimento do outro genitor configura-se, para a Convenção de Haia, o chamado sequestro internacional de criança que dá título ao tratado. A Convenção de Haia também estipula que, antes que se debata a guarda da criança, o ato inicial (o “sequestro”) tem de ser desfeito, e o status quo deve ser restabelecido. As partes litigantes podem, então, resolver a disputa nos tribunais em que a criança residia antes do ilícito.
A presença oficial de um membro da Comissão de Relações Exteriores do Congresso ao lado de David Goldman impulsionou o caso para outra esfera. Não que Chris Smith tivesse sido o primeiro parlamentar americano a se manifestar. No dia 29 de outubro passado, seis dias antes de ser eleito 44º presidente dos Estados Unidos, o então senador Barack Obama despachou o seguinte email para um amigo de Goldman:
Prezado Christopher [Rennau], …na condição de pai de duas crianças, meu coração está com a família Goldman….Segundo informações da Divisão para Assuntos Envolvendo Crianças [Office of Children’s Issues] do Departamento de Estado, e também da embaixada americana no Brasil, os Estados Unidos estão trabalhando em conjunto com a Autoridade Central Federal para o retorno de Sean, nos termos da Convenção de Haia… Esteja certo de que lembrarei de sua preocupação quanto à evolução deste caso… Peço que mantenha contato daqui para a frente.
Há tempos os canais diplomáticos dos dois países vinham trabalhando em silêncio na questão. Numa tarde de temperatura polar, em Washington, com a capital americana ainda eletrizada pela cerimônia de posse do novo ocupante da Casa Branca, realizada na véspera, a chefe da unidade de sequestros do Office of Children’s Issues recebeu a repórter de piauí. “Os casos de sequestro de filho por parte de um dos pais tem aumentado no mundo inteiro, anualmente”, explicou Martha A. Pacheco, funcionária do Departamento de Estado há vinte anos, e alocada no setor responsável pelo cumprimento da Convenção de Haia há dezoito meses. As causas seriam múltiplas: aumento do número de casamentos e de divórcios, maiores facilidades de viagens e, sobretudo, o forte incremento da imigração.
O Office, que conta com uma equipe de quarenta funcionários, está subordinado ao Departamento de Estado, agora chefiado por Hillary Clinton. Por força do regulamento 105-277, seção 2803, o departamento é obrigado a produzir um relatório anual para o Congresso, listando os países que dificultam o cumprimento da Convenção de Haia. Dos 68 signatários do tratado, que começou a vigorar em 1980 e foi ratificado por Fernando Henrique Cardoso* em 2000, dez países constam da lista de faltosos na edição mais recente, a de abril de 2008. Entre eles está o Brasil.
São três as áreas analisadas para determinar se um país-signatário é ou não cumpridor do tratado: o desempenho da Autoridade Central Federal, que no Brasil está subordinada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos, portanto ao Poder Executivo; o comportamento do Judiciário no tratamento dos casos; e o encaminhamento dado pelas forças da lei na execução das decisões judiciárias.
O Brasil foi aprovado no primeiro e no terceiro itens. E assim como a Bulgária, Chile e Alemanha, levou bomba no segundo quesito, o Judiciário moroso. “Mesmo nos Estados Unidos existem juízes que nunca ouviram falar na Convenção de Haia”, esclareceu por telefone Michele Bond, do Departamento de Estado, Secretária Adjunta para Assuntos de Cidadãos no Exterior.
Durante a entrevista com Martha Pacheco, o programa Dateline, com seus mais de 6 milhões de telespectadores, ainda não havia ido ao ar, e a dimensão diplomática do caso Goldman permanecia circunscrita. Ainda assim, e frisando estar falando de forma apenas genérica, a chefe da Unidade de Sequestros reiterou a posição americana: “Nós nunca abandonamos um caso, não desistimos nunca”. Indagada se era esperada alguma mudança de curso em relação ao caso Goldman com a posse de Hillary Clinton na Secretaria de Estado, sua resposta saiu espontânea: “Nesse caso vamos tentar realmente tudo”.
No caso da secretária adjunta Bond, a conversa telefônica ocorreu quase duas semanas depois da exibição do documentário ter gerado resposta maior do que a esperada, levando a NBC a programar uma cobertura adicional do caso. No meio tempo, dois senadores democratas por Nova Jersey, Frank R. Lautenberg e Robert Menendez, haviam enviado uma carta conjunta ao “Dear President” Lula pedindo, “respeitosamente, que examine e tome as medidas apropriadas para reunir Sean com o pai”. Tudo em nome dos laços fortes e amigáveis entre Brasil e Estados Unidos. O congressista Chris Smith, por seu lado, também tinha completado a prometida viagem de acompanhamento de David Goldman por gabinetes em Brasília e no primeiro encontro entre pai e filho no Rio.
Ainda assim, Michele Bond foi cautelosa. “Juízes não avaliam um caso pela sua visibilidade”, declarou. “Grande parte do trabalho foi feito em surdina, nos bastidores, a portas fechadas. A divulgação apenas levou mais pessoas a se identificar com o caso de forma mais pessoal. Você acaba pensando: ‘Mas e se isso acontecesse comigo, o que eu faria?’ Sob esse aspecto, a divulgação é positiva, para que um número maior de pessoas se inteirem da existência e do significado do Tratado de Haia. O propósito do Tratado, aliás, é alertar as pessoas: não se pode simplesmente pegar um filho e levá-lo embora.”
Somente no último ano, o Office of Children’s Issues tratou de 575 casos de remoção ilegal de menores por um dos genitores, envolvendo um total de 821 crianças. O Brasil consta como quinto país da lista, encabeçada pelo México, com 195 casos relativos a 320 crianças.
No meio do vôo 0031 da Continental Airlines, que decolou na noite de 4 de fevereiro passado do aeroporto de Newark, Nova Jersey, com destino a Guarulhos, uma comissária de bordo americana tocou levemente no ombro do passageiro Goldman: “Só quero lhe dizer que nossa equipe deseja muito estar de plantão quando você trouxer o seu filho de volta”, disse.
A pedido do congressista Smith, que embarcara em outro vôo acompanhado do assessor Mark Milosh, um funcionário do Consulado dos Estados Unidos em São Paulo aguardava a comitiva. Era a primeira vez , em todas as viagens de Goldman ao Brasil, que não apenas o advogado brasileiro, Ricardo Zamariola Jr, de 28 anos incompletos, sabia de sua existência.
No vôo de conexão para Brasília, o americano foi novamente abordado. Um jovem casal brasileiro, residente nos Estados Unidos, se apresentou:
– Desculpe, você é David?
– Sim.
– Assistimos ao programa que conta a sua história, lá em Washington. Só queremos que saiba que também achamos errado o que está acontecendo.”
A agenda da comitiva que aterrissou em Brasília naquele finalzinho de tarde foi pesada. Mal houve tempo do grupo se instalar no hotel, desfazer malas, tomar banho e se apresentar no segundo andar do Ministério da Justiça, para um encontro com a coordenadora da Autoridade Central Federal, Patrícia Lamego Soares. Formada em direito e pós-graduada em Relações Internacionais pela George Washington University, Patrícia Soares é arredia tanto à exposição de sua pessoa como a de quem recorre à Convenção de Haia para reaver os filhos. Trabalha com uma equipe enxuta, altamente focada, de cinco funcionários. Ela trata do caso Sean Goldman desde setembro de 2004, quando seu departamento foi notificado pelo Office of Children’s Issues de Washington de que a criança estava sendo retida ilegalmente pela mãe no Brasil.
Respeitada pela segurança com que cumpre tarefas espinhosas e resiste a pressões, ela até então não conhecia David Goldman, apenas seu advogado brasileiro. Ricardo Zamariola, do escritório paulista Tranchesi Ortiz & Andrade, advoga há seis anos no âmbito da Convenção de Haia. Ele repatriou quatro crianças desde sua formatura, em 2004 – uma para a Suécia e as outras para os Estados Unidos – e tem cinco outros casos pendentes.
Paulo Lins e Silva e seu filho João Paulo – o padrasto de Sean – são bem conhecidos em Brasília. Paulo é dono de um dos principais escritórios de advocacia na área de família, além de ex-presidente da União Internacional de Advogados, e aprecia ter reconhecida a centenária linhagem de grandes causídicos que a família Lins e Silva produziu. Ambos advogam, junto com a Advocacia Geral da União, AGU, pelo direito de um pai canadense em reaver o filho de oito anos que foi trazido ilegalmente para o Rio, também em 2004, por uma mãe também brasileira.
Para o encontro seguinte com o ministro Paulo Vannuchi, secretário especial dos Direitos Humanos, que teve de ser substituído à última hora para comparecer a um enterro, a comitiva Goldman incluía também, além da cônsul americana Joana Weinz, outra funcionária da Embaixada dos Estados Unidos, Marie d’Amour. Segundo um dos presentes, o congressista Chris Smith recebeu telefonema de um membro da equipe de Hillary Clinton pouco antes de entrar na sala. Dali, os americanos seguiram para a residência do embaixador americano no Brasil, Clifford Sobel.
David Goldman estava esperançoso e tenso. “Parece que tudo está acontecendo, mas ao mesmo tempo nada está acontecendo”, ele disse. “Eu sou um cara comum, que quer o filho de volta, e me vejo entrando e saindo de gabinetes para encontros com autoridades”. Retornou logo ao hotel para se preparar para a tensa maratona do dia seguinte, quando se veria frente a frente, pela primeira vez, com João Paulo Lins e Silva.
Era sexta-feira, 6 de fevereiro, e Brasília estava esvaziada pela revoada parlamentar. David Goldman teve uma última reunião logo cedo com o advogado. Vestia um paletó marrom, calça social e gravata, sem notar que a etiqueta de compra ainda lhe pendia da manga. De todo modo, não gostou do visual. Retornou ao quarto e voltou de terno escuro.
Uma van da Embaixada americana veio apanhar o grupo para um encontro matinal no segundo andar do Itamaraty com Oto Agripino Maia, sub-secretário Geral Adjunto das Comunidades Brasileiras no exterior. Dias antes, Agripino Maia, que já chefiou as embaixadas do Brasil em Pretoria, junto à Santa Sé e em Estocolmo, teria feito uma visita de cortesia ao ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, e mencionara que o caso Goldman começava a causar algum mal estar. Do Itamaraty, a comitiva seguiu para um encontro com a ministra Ellen Gracie, solicitado pela embaixada dos Estados Unidos. Os visitantes chegaram ao Anexo 2 do Superior Tribunal Federal com vinte minutos de atraso, mas a ministra, de terno cinza e inglês impecável – à altura da vaga à qual concorre na Organização Mundial de Comércio – não reclamou.
Encerrava-se ali a parte da agenda que tinha como propósito (não declarado) explicitar o quanto David Goldman estava amparado pela diplomacia de seu país. A parte crucial e substantiva de sua ida a Brasília ficara reservada para as duas horas da tarde.
Nenhuma das partes convocadas arriscou chegar com atraso à majestosa sede do Superior Tribunal de Justiça, erguida em 1995 com uma pompa arquitetônica de deixar no chinelo outros estandartes da paisagem assinada por Oscar Niemeyer. Em se tratando de uma sexta-feira sem audiências ordinárias, o interior do colossal conjunto de salas e salões estava praticamente deserto. Cada passo, ali, chamava atenção. O museu da instituição, no 2º andar, continua a espantar qualquer um, seja ele brasileiro ou americano: logo na entrada, como primeira peça do acervo, uma página dupla da revista Caras, de 25 de junho de 1999 retratando a “Juíza Eliana Calmon Alves, a pioneira ministra do STJ”.
David Goldman e João Paulo Lins e Silva haviam sido convocados pelo juiz Luis Felipe Salomão para uma audiência de conciliação. A chegada das duas comitivas no corredor até então deserto do segundo andar intrigou até mesmo os brigadistas de plantão. Com uma população circulante de sete mil pessoas ao dia, o STJ dispõe de 40 desses profissionais para atender emergências. “Um lugar como este tem bastante emoção solta, e às vezes é um juiz que passa mal, outras vezes é alguém que veio para uma audiência”, explicou Eleusa Oliveira, brigadista há dois anos. Além do luminoso uniforme amarelo, trazia luvas cirúrgicas, máscara e óculos hospitalares, rádio, uma maca e maleta de primeiros socorros à mão.
A sessão a portas fechadas, com os respectivos advogados togados, durou quase seis horas. Sentados no fundo da sala, na qualidade de ouvintes, estavam a coordenadora da Autoridade Central Federal, Patrícia Lamego, o congressista Chris Smith, seu assistente parlamentar Mark Milosch e a americana Marie d’Amour, da embaixada americana, e Paulo Lins e Silva. Sentados na mesa retangular reservada às partes, à frente do juiz Salomão, quatro participantes de cada lado. Ricardo Zamariola, David Goldman, uma intérprete e Sergio Brito, da Advocacia Geral da União, do lado esquerdo. João Paulo Lins e Silva e sua equipe, do lado oposto da mesa.
Foi a primeira vez que o pai e o padrasto de Sean se viam, se ouviam e se mediam diretamente. “Confesso que em alguns momentos David me pareceu até mais calmo do que eu”, admitiu dias depois seu advogado, Zamariola. “No fundo, quando o cliente nada tem a esconder, ele pode falar o que quiser: não há risco de errar.”
Como era de se prever, uma conciliação em torno da questão central – repatriamento ou não de Sean para os Estados Unidos – logo foi implodida. E não por culpa da intérprete, que acabou sendo trocada na primeira rodada por outra, da embaixada, para os trabalhos fluírem melhor. David Goldman, que entrou na audiência carregado de anotações feitas durante a noite anterior, não revela o conteúdo e desenrolar da sessão. Mas segundo um dos presentes, a sua argumentação teve um tom pessoal – “Não consigo entender como estou aqui implorando para ficar com meu filho”, ele teria dito – enquanto a de João Paulo Lins e Silva manteve o tom advocatício profissional.
Diante da inviabilidade de um acordo, o ministro Salomão encaminhou os trabalhos para um aspecto mais imediato e pontual – ou teratológico, como gostam de dizer os causídicos – da disputa judicial: o direito de visita do pai a seu filho, que vinha sendo negado a Goldman sob formas variadas desde quando Sean partira com a mãe, quatro anos e meio atrás. Ficou decidido, assim, que o americano estava autorizado a ver Sean sempre que viesse ao Brasil, já a começar pela segunda-feira seguinte, das nove da manhã às oito da noite. Bastava que comunicasse sua vinda com a devida antecedência.
A dimensão dessa expectativa só ficou claramente exposta na manhã seguinte, quando o congressista Smith, único a dar entrevista após o término da audiência de conciliação, foi conhecer o santuário Dom Bosco de Brasília com David Goldman. Ali permaneceram durante algumas horas. A igreja fundada junto com Brasília ouviu os soluços descontrolados de um pai de 42 anos.
Segunda-feira, 9 de fevereiro, 1 698º dia desde a partida de Bruna Bianchi com o filho do aeroporto Liberty International, de Nova Jersey. Por determinação da Justiça, uma psicóloga deveria estar presente ao primeiro e subsequentes encontros de David Goldman com Sean. A visita ocorreu na área de lazer do condomínio em que moram os avós maternos do menino, e contou com outras duas testemunhas que se mantiveram à distancia: o congressista Smith e Karen Gustafson de Andrade, funcionária do consulado americano.
Em outubro do ano passado, apesar de ter em mãos uma ordem judicial para visitar o filho naquele mesmo local, Goldman, seu advogado, três agentes judiciais e Karen aguardaram em vão durante três horas. João Paulo Lins e Silva havia decidido passar o fim-de-semana fora com o enteado.
A presença de Karen pode ter um dedo do Office of Children’s Issues de Washington. “Há quinze anos submetemos alguns oficiais diplomáticos a um treino para que tenham uma idéia e uma compreensão mais profunda das emoções pelas quais passam um pai, uma mãe e uma criança”, ela disse. “Em geral, são funcionários que exercem funções consulares”, contou Michele Bond em sua entrevista. “Algumas palestras são dadas por adultos que foram sequestrados quando criança, ou cujos filhos foram sequestrados pela outra parte.”
Às 19h30, Ricardo Zamariola, que desta vez achou desnecessário permanecer no Rio, recebeu o primeiro telefonema de seu cliente. Goldman estava extático. Empilhava frases e descrevia sensações que, transcritas, formariam um amontoado de clichês. “Eu sabia que ia ser assim, afinal, ele é meu filho”, ele disse. Segundo o seu relato, a psicóloga designada por João Paulo Lins e Silva foi compreensiva, competente, discreta e agradável no acompanhamento do encontro. Quando Sean, a certa altura, perguntou ao pai, em inglês, porque ele não viera visitá-lo antes, Goldman contou que se sentiu à vontade para consultar a psicóloga se podia responder. Ela, por sua vez, o teria deixado livre para fazê-lo. O resto do dia foi passado entre uma quadra de basquete e dentro d’água, na piscina.
Imagine-se o turbilhão interior de cada um dos envolvidos – Sean, os avós, o pai, o padrasto – nesta primeira noite após o encontro. Como era de se esperar, parece ter havido um deslocamento de terreno e o ambiente na segunda e última visita de Goldman ao filho antes de voltar para os Estados Unidos ao final do dia, foi crispado. Segundo o americano, a psicóloga da véspera fora substituída por uma profissional que preferiu se interpor de forma mais cerrada, levando Sean a falar quase sempre em português. Apesar de ter permissão judicial para levar o filho para fora do condomínio, o menino foi chamado para almoçar em casa, enquanto o pai comeu seu sanduíche trazido do hotel, sozinho.
Em compensação, na van que o conduziu ao aeroporto do Galeão, Goldman recebeu a notícia mais promissora para o desbloqueio do nó jurídico. Por decisão unânime, os nove ministros da 2ª Seção do STJ haviam decidido que a competência para julgar as duas ações relativas ao menino, e que tramitavam em instâncias diferentes e em conflito, passam a ser de responsabilidade da Justiça Federal. Mais especificamente, da 16ª Vara Cível. Até então, a ação movida por João Paulo Lins e Silva requisitando a “paternidade sócio-afetiva” de Sean estava em mãos do juiz estadual Gerardo Carnevale Ney da Silva, o titular da 2ª Vara de Família. Enquanto isso, a ação proposta pela Advocacia Geral da União, em conjunto com Ricardo Zamariola, visando o repatriamento de Sean corria pelas mãos do juiz federal Rafael de Souza Pereira Pinto. A decisão da instância superior de Brasília consolidou a aptidão da Justiça Federal para julgar as duas ações.
Foi com essas novas no bolso que David Goldman seguiu de trem para Washington sem sequer desfazer as malas de sua viagem ao Brasil. Um encontro seu com Antonio Patriota, embaixador do Brasil na capital americana, fora agendado para aquele mesmo dia. Em dezembro passado, o Departamento de Estado já havia intermediado um pedido de encontro entre as duas partes, e coube ao Cônsul-Geral do Brasil, embaixador Almir Barbuda, receber a visita do americano numa tarde de sexta-feira.
Uma semana depois, em Nova York, enquanto algumas dezenas de pessoas desfilavam na calçada em frente ao consulado brasileiro, com cartazes pedindo o retorno de Sean, Goldman também foi recebido com simpatia pelo ministro Frederico Arruda. Mas o encontro de 12 de fevereiro com o embaixador Patriota, realizado no gabinete do congressista Chris Smith, é o que pode ser considerado indicativo de que o caso entrou definitivamente para a agenda diplomática dos dois países. Smith é o autor da resolução número 125, pendente no Congresso, que exige a repatriação de Sean Goldman “com urgência extrema”.
No Brasil, era quarta-feira de cinzas. Nos Estados Unidos, a edição de 25 de fevereiro do New York Times trazia na página 21 uma reportagem longa, de 28 parágrafos, intitulada “Batalha judicial em torno de uma criança tensiona laços em dois países”. Assinada por Kirk Semple em colaboração com o correspondente do jornal no Brasil, Alexei Barrionuevo, a reportagem teve efeito imediato sobre o jornalismo brasileiro.
Até então, o caso do menino tinha ficado soterrado na maioria das redações, ora por vontade própria dos jornalistas e donos dos órgãos de imprensa, ora como resultado das liminares emitidas a pedido da família Lins e Silva para bloquear a sua divulgação, numa interpretação estreita do fato de que o processo corria sob segredo de Justiça. A publicação da história completa no jornal de maior prestígio do mundo, com nomes e sobrenomes, desencadeou um corre-corre atrás dos protagonistas. Goldman e seu advogado passaram a responder a uma média de cinco solicitações por dia. A família Lins e Silva, que sempre se recusou a dar declarações em on, passou a aceitar entrar na disputa para convencer a opinião pública. Coube ao jornal apresentado por Carlos Nascimento, da rede SBT, a primazia de trazer o caso Goldman para a televisão.
A reportagem do New York Times também prenunciou o que ocorreria na tarde do mesmo dia, em Washington. “O caso tornou-se uma pequena ferida nas relações entre Estados Unidos e Brasil, e pode constar da agenda do encontro (daquele dia) entre a secretária de Estado Hillary Clinton e o chanceler brasileiro Celso Amorim.” Segundo um funcionário graduado do Departamento de Estado, de fato, o caso do americano David Goldman, de Nova Jersey, foi não apenas um dos itens, mas o primeiro da agenda de Hillary com Celso Amorim. Ainda de acordo com a mesma fonte, a secretária de Estado estava plenamente inteirada da decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, manifestou sua satisfação pelo fim do impasse jurídico, e pediu uma “solução positiva”.
Para o Palácio do Planalto, onde o ponto alto da agenda presidencial de março é a visita oficial de Lula aos Estados Unidos, que inclui um encontro na Casa Branca com Barack Obama, o caso Goldman está sendo visto como “uma chateação”, segundo termo usado por um palaciano habilitado a traduzir os humores do presidente. Acrescentou que a comitiva brasileira não irá puxar o assunto por iniciativa própria. Nem seria preciso. A convocação de uma passeata em Washington para acompanhar os passos do presidente brasileiro prometia adesão bem mais robusta do que a que se viu diante do consulado brasileiro em Nova York, quatro meses atrás.
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* Correção: 20 de março de 2009.
A versão impressa da revista trazia a informação de que o tratado havia sido ratificado em 2000 pelo presidente Lula, que só tomou posse em 2003.
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