"Depois que eu matei o meu marido, eu só não matei o Hugo Chávez, não é? Depois que alguém pediu um copo d'água e cinco minutos depois estava morto, tudo é possível" FOTO: DANIELA PINHEIRO
A doutora
Os feitos da médica Virgínia Soares de Souza, acusada de matar sete pacientes numa UTI em Curitiba
Daniela Pinheiro | Edição 81, Junho 2013
A fisioterapeuta Karina Casser acordou cansada naquela manhã de março do ano passado. Mais uma vez, passara a noite em claro. Nos últimos tempos, padecia de insônia, tinha pesadelos e crises de choro. Pulou da cama cedo, tomou café com o marido e discutiram novamente o assunto.
Pouco antes das 10 horas, telefonou para a Ouvidoria Geral do Estado do Paraná. Durante 30 minutos, a fisioterapeuta contou à atendente o que vinha lhe tirando o sono havia meses. Com a voz ofegante e embargada, narrou o que se passava no lugar onde trabalhava, a Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Evangélico, o maior e mais antigo de Curitiba.
Era uma denúncia sinistra: a equipe médica da UTI acelerava a morte de doentes em estado grave. Manipulava padrões de oxigênio de aparelhos respiratórios e ministrava aos doentes um coquetel de sedativos e bloqueadores neuromusculares. A combinação dos procedimentos comprometia a respiração e dificultava a passagem de ar para os pulmões dos enfermos. Na maioria dos casos, ela disse, o óbito se dava em poucas horas. Quase sempre por asfixia. O motivo, segundo ela, era “liberar os leitos da UTI” para acomodar novos pacientes.
A fisioterapeuta informou ainda que a maioria dos funcionários discordava da prática, mas muitos eram coniventes “por obediência à chefe”. Referia-se à sua superior, a doutora Virgínia Helena Soares de Souza, diretora da Unidade há sete anos. A doutora Virgínia decidia quem deveria viver ou morrer na UTI.
“Desliguei o telefone e fui trabalhar ainda sem acreditar que tinha tido coragem de revelar tudo”, disse-me Karina Casser num centro comercial no bairro do Tatuapé, em São Paulo. “Quando cheguei ao trabalho, a doutora Virgínia me olhou diferente, achei que tivesse descoberto. Não era nada. Eu estava com medo, mas aliviada porque havia feito a minha parte.”
Nos dias seguintes, a fisioterapeuta telefonou outras cinco vezes à Ouvidoria para dar nomes de pacientes e o horário de suas mortes. Detalhou o papel de médicos e enfermeiros em cada caso. Especificou os percentuais de manipulação das máquinas de oxigênio e forneceu a dosagem dos remédios dados aos doentes. Do outro lado da linha, a atendente lhe garantiu anonimato e pediu mais detalhes.
Karina acompanhou o protocolo da denúncia pela internet. Apesar da seriedade da acusação, nada aconteceu. Não se iniciou nenhuma investigação no hospital. Seus colegas e funcionários trabalhavam como de hábito. Ninguém falava da Ouvidoria na UTI. Semanas se passaram e ela acreditou que o assunto tivesse sido esquecido.
Oito dias depois das ligações, porém, a Promotoria de Proteção à Saúde Pública de Curitiba foi acionada. Por meio de certidões de óbito, promotores confirmaram nomes, dia e hora da morte de pacientes mencionados na denúncia anônima. Ainda que nos documentos não aparecessem os remédios usados, ou a evolução do quadro clínico dos doentes antes da morte – dados disponíveis apenas nos prontuários médicos –, algumas coincidências consolidaram as suspeitas. Ainda assim, pairava a dúvida se as acusações tinham sido motivadas por vingança pessoal contra a médica ou o hospital.
O Núcleo de Repressão aos Crimes contra a Saúde, da Polícia Civil, passou a investigar o caso, que correu em segredo de Justiça. Durante meses, tentou-se encontrar um policial formado em enfermagem para ser infiltrado no hospital. Identificaram seis deles no Paraná, mas a ideia se mostrou inviável. Outra hipótese foi instalar câmeras dentro da UTI, de maneira a captar um flagrante. Também foi descartada por motivos práticos.
Em setembro, a Justiça autorizou a interceptação telefônica dos números da casa, dos celulares e do ramal da doutora Virgínia no hospital. Passaram-se outros três meses para levantar informações complementares. Apenas em janeiro as linhas puderam ser gravadas. Depois de quinze dias, como ainda não havia provas contundentes, a polícia prorrogou a escuta por mais duas semanas.
“Quando chegaram as primeiras gravações, vimos que havia muitas evidências, mas naquela altura tínhamos poucos detalhes”, disse a promotora Fernanda Nagl Garcez, em seu gabinete, em Curitiba. “Apesar disso, poderia haver gente morrendo ainda, a doutora Virgínia precisava ser controlada.”
Em 32 horas de grampo, a doutora aparece conversando com médicos, enfermeiros, diretores do hospital e familiares dos doentes. Chamou a atenção dos policiais que ela usasse as expressões “girar a UTI”, “rodar a UTI”, “desentulhar a UTI”, “desligar o paciente”, “ir com o paciente”.
Numa ligação, ela diz que “infelizmente, é nossa missão intermediá-los no trampolim do além”. Em outra, refere-se a um médico como um “entulhador que não quer desligar nada”. Num trecho, menciona uma criança internada e diz que “tentou ir lá desligar, mas a mãe tinha decorado os parâmetros”. Também comenta que alguns pacientes “estão mortos, não há o que se fazer mais por eles”. Há uma ocasião em que um enfermeiro diz a ela: “Ê, Virgininha Mengele.”
Aí apareceu uma gravação macabra: a doutora Virgínia dizia estar “com a cabeça tranquila para assassinar”. Para os investigadores, havia material suficiente para incriminar a médica. A polícia saiu a campo.
A doutora Virgínia lia prontuários médicos sentada na mesa de sua sala, em frente à UTI, quando uma enfermeira lhe avisou que policiais a esperavam no corredor. Não estranhou: com frequência, tinha que dar explicações à polícia sobre pacientes fugitivos da Justiça ou envolvidos em acidentes de trânsito. Naquela vez, contudo, havia algo muito diferente: quatro agentes com coletes à prova de bala, de metralhadoras em punho, pediram os prontuários médicos de seus doentes.
“A senhora me acompanhe”, disse a delegada Paula Christiane Brisola, do Núcleo de Repressão aos Crimes contra a Saúde.
“Por quê?”, disse a médica, impassível.
“Antecipação de óbitos”, falou a delegada.
“Como?”
Virgínia Helena Soares de Souza nasceu em Santos, em 1956. A mãe, formada em belas-artes, era dona de casa e o pai, diretor de uma companhia de navegação. Caçula de três irmãos, ela cresceu numa casa espaçosa, estudou em colégios particulares e passava férias no apartamento da família no Guarujá. O pai e o padrinho – que sugeriu batizá-la em homenagem à vedete Virgínia Lane – tratavam-na como um bibelô. Até morrerem, eles a presenteavam no Dia das Crianças. Na última ocasião, ela tinha 51 anos.
Mimada, desde menina ouvia do pai que deveria dizer o que pensasse, “sem se importar com as consequências”. Seus arroubos de sinceridade soavam como rispidez a quem estava sob o seu tacão no Hospital Universitário Evangélico. “Eu nunca fui a Miss Simpatia”, reconheceu a doutora.
A decisão de estudar medicina foi fortuita. “Nunca pensei em ser médica”, costuma dizer sobre a vocação. Foi aprovada nos vestibulares de engenharia, matemática e farmácia, mas optou pela Faculdade Bandeirante de Medicina, em Bragança Paulista. Era aplicada, mas “não CDF”, como diz. Sempre gostou de festas e serestas.
Virgínia chamava a atenção. Seus olhos muito vivos, claros e amendoados eram emoldurados por uma cabelereira curta e escura, combinada a uma farta franja escovada de lado – que imitava o corte de Lady Di quando conheceu o príncipe Charles. Magra e curvilínea, com a pele queimada pelo sol da praia, tinha uma gargalhada contagiante. Gostava de estar na moda. Suas roupas eram modernas e exclusivas, costuradas por sua mãe, que tirava os moldes da revista alemã Burda.
Mudou-se para São Paulo para fazer residência médica, em clínica geral, no Hospital Matarazzo. Morava sozinha, era independente e autocentrada. “Naquela época, tudo era eu, eu, eu”, costuma dizer. Foi quando conheceu o médico curitibano Nelson Marcolini, seu preceptor no curso, e começaram a namorar.
Casaram-se numa grande festa, em Santos. O casal partilhava o gosto por artes plásticas, música clássica e filmes de época. Dois anos depois, mudaram-se para Curitiba, onde Marcolini tinha um emprego garantido. Ao chegar à cidade, ela estranhou o provincianismo e a escassez de bons profissionais na área médica. “Estava acostumada a trabalhar com enfermeiro que era quintanista da Escola Paulista de Medicina, e aqui foi um choque”, disse. Empregou-se como intensivista no Hospital Santa Cruz, aonde a elite paranaense ainda se dirige quando precisa de assistência médica.
No ano seguinte, ela deu à luz Leonardo – em homenagem ao maestro Leonard Bernstein. Inteligente e articulado, o filho único, de 27 anos, é um pródigo pianista em Curitiba, onde ainda mora. Em paralelo à medicina, a doutora mantinha uma confecção, chamada Bianco, no térreo de sua casa. Vendia roupas finas, malharia e trajes de festa. Por causa do corpo bem-feito, ela era a modelo de prova das peças feitas pelas costureiras.
A médica foi contratada pelo Hospital Evangélico em 1988. A essa altura o casamento havia naufragado e ela concentrou as energias no trabalho. (No dia da prisão, Marcolini veio a público defender a ex-mulher.) Ali, conheceu o chefe da UTI Geral, Nelson Mozachi, um médico efusivo, de temperamento forte, voz grave de barítono, dado a rompantes mercuriais com funcionários e superiores. Eram almas gêmeas. Casaram-se dois anos depois. Dois dos três filhos do primeiro casamento dele se juntaram à nova família.
O casal era inseparável. Falava de medicina, pacientes, tratamentos durante todo o dia. Fumavam como uma chaminé. Uma ex-funcionária do Hospital Evangélico que se tornou amiga deles se lembra da dupla discutindo o tratamento de pacientes nos corredores da UTI, a plenos pulmões. Sentiam-se em casa.
Em 2005, publicaram juntos um cartapácio de mais de 800 páginas chamado O Hospital: Manual do Ambiente Hospitalar. A obra é descrita como um guia que ensina “os procedimentos necessários para o perfeito cuidado do paciente”. Mozachi já estava com câncer. Sucumbiu à doença um ano depois. A doutora foi nomeada a nova diretora da UTI Geral.
Fundado há 53 anos, o Hospital Universitário Evangélico tem o maior pronto-socorro de Curitiba e é uma referência em transplantes, traumas, queimaduras e gravidez de risco. Com 3 200 funcionários, 400 médicos e 615 leitos, atende 92% de seus pacientes pelo Sistema Único de Saúde. Faz cerca de 2 500 internações e cirurgias por mês.
Construído com doações, o hospital é administrado pela Sociedade Evangélica Beneficente de Curitiba, que também cuida de uma faculdade. Até há pouco tempo, a Sociedade era dirigida pelo deputado federal André Zacharow, do PMDB. Ele deixou o cargo depois da divulgação de suspeitas de irregularidades na administração da entidade, que é mantida em parte com recursos públicos.
Em 2011, a Polícia Federal anunciou que a Sociedade recebera 4 milhões de reais do Ministério do Turismo para treinar mão de obra para a Copa do Mundo – um serviço que nunca fizera anteriormente. O dinheiro fora liberado por uma emenda parlamentar apresentada por Zacharow. “Se geriram o dinheiro mal, o problema não é meu”, disse-me o deputado. “Não há qualquer acusação contra mim nesse caso.”
Os endividamentos das Santas Casas e dos hospitais filantrópicos no país somam 15 bilhões de reais. Uma das principais causas é a defasagem de 35% entre o custo dos serviços e o valor repassado às unidades por órgãos do governo, a começar pelo SUS. A dívida chega a 300 milhões de reais no Hospital Universitário Evangélico. Greves de médicos e enfermeiros por atraso no pagamento se tornaram frequentes. O pronto-socorro chegou a ser fechado por mais de 48 horas em julho do ano passado. Em maio, nem mesmo o salário de dezembro de 2012 havia sido pago aos médicos.
Com a morte do marido, a doutora afundou no trabalho. De segunda a sexta-feira, chegava cedo à UTI Geral e lá passava até doze horas seguidas. Dormia pouco e almoçava em sua mesa a comida trazida de casa, que dividia com colegas e funcionários da limpeza. Relaxava bordando tapeçarias e fumando um cigarro atrás do outro dentro do hospital.
Nos fins de semana, acompanhava pelo telefone o que se passava com os pacientes. Médicos, plantonistas e auxiliares tinham ordem para chamá-la no celular antes de decidir o que fazer com um doente. Todas as prescrições feitas na UTI deveriam ser anotadas sob seu nome. Para isso, ela deixava sua senha aberta no computador. “Eu sou a responsável”, dizia.
A médica tinha confiança apenas em meia dúzia dos profissionais na UTI. Em depoimentos à polícia, testemunhas dizem que ela cultivava “um grupinho”, “os preferidos”, “os protegidos”. Aos demais não dirigia a palavra. Quando o fazia, era para esculachar: “Não quero ver bunda em cadeira”, “Olha aqui, ô, primor de inteligência”, “Pobre é uma desgraça mesmo”, dizia. Não raro, gritava: “Tinha que ser preto mesmo para fazer uma merda dessas!”
Por causa dos rompantes da médica, do atraso no pagamento e descumprimento de direitos trabalhistas, a rotatividade de profissionais na UTI Geral era acelerada. Houve períodos em que, em apenas um mês, seis profissionais da enfermagem foram substituídas. A equipe acabava sendo formada por iniciantes. A doutora Virgínia atribui as trocas rápidas à falta de mão de obra qualificada. A Promotoria diz que era proposital, já que trabalhar com neófitos evitava questionamentos sobre procedimentos eventualmente suspeitos.
Há quem defenda Virgínia. A empresária catarinense Roseléia de Souza Houstin passou 85 dias na UTI Geral ao lado do irmão, Genildo, em meados de 2010. Ele tivera um grave acidente de moto e estava em coma. “Quando a doutora não estava, o pessoal que trabalhava lá era de um corpo mole generalizado”, disse Roseléia. “A maioria ficava de fofoquinha ou falando no celular. Mas quando ela chegava gritando, exigindo, querendo saber o que tinha sido feito, é que a coisa entrava nos eixos.”
A fonoaudióloga Rosangela Hein, que presta serviço particular terceirizado na UTI desde 1998, tem impressão semelhante. “Muitos desses profissionais que a acusam, eu conheço do hospital, e eram os mais relapsos e preguiçosos”, disse. “Eu estava lá todos esses anos e o que eu vi foi a doutora se matando pelos doentes. Muitas vezes ela me pediu para atender paciente pobre de graça, e tirou dinheiro do próprio bolso para comprar lanche para a família de paciente que não tinha dinheiro”, afirmou.
Alguns funcionários, no entanto, formalizaram as queixas contra o temperamento da médica à direção antes de ela ser acusada de matar internados na UTI. Um deles foi a própria Karina Casser, que, três meses depois dos telefonemas à Ouvidoria, pediu para ser transferida de setor. Ela disse à Justiça ter informado sua chefe imediata sobre a aceleração das mortes na Unidade de Terapia Intensiva e as grosserias da doutora – que a chamava de “lerda”, “burra”, “tartaruga”. Segundo a fisioterapeuta, ela foi aconselhada a “não entrar” no primeiro assunto e a escrever uma carta à direção focada apenas nos problemas pessoais. O papel foi anexado à ação penal.
“Ela tratava mal as pessoas, é verdade, mas é uma questão de temperamento, cada um tem o seu”, disse o pastor Olegário Teixeira da Costa, superintendente do hospital. “Com os doentes nunca houve reclamação. Ao contrário. Muitas vezes, vi familiares pedindo para ela desistir de tentar salvar um parente, deixá-lo ir em paz, e ela tentando todas as alternativas.”
A doutora Virgínia era equânime nas agressões verbais. Numa ocasião, chamou de “imbecil” um dos pastores da diretoria porque ele dizia à família de um paciente desenganado que ainda deveria ter esperança. Em 2011, ela foi suspensa por trinta dias depois de uma briga com um ortopedista nos corredores da UTI, num episódio no qual houve palavrões, empurrões e tapas à vista do corpo médico e de funcionários.
Duas horas depois da prisão, Virgínia Helena de Souza estava nos sites de notícias e nos telejornais de todo o Brasil, que repetiram à exaustão a cena da médica escoltada por duas agentes. Ela estava de cabeça baixa, o ralo cabelo arroxeado permitia entrever o couro cabeludo. Sua saia rodada era laranja. De blusa azul, ela segurava os óculos em uma mão e o jaleco branco na outra. Seu corpo era pesado e o rosto, macilento. A imagem e as acusações à médica pareciam corroborar o apelido que a doutora Virgínia ganhara de funcionários do Hospital Universitário Evangélico, “Bruxa”.
No mesmo dia, dezenas de pessoas – muitas, voluntariamente – apareceram na delegacia para depor. Eram técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, enfermeiros, estagiários, gente da administração, auxiliares de limpeza e familiares de pacientes mortos na UTI. Três e-mails anônimos também foram enviados à polícia e ao Ministério Público corroborando as denúncias.
Karina Casser, que a essa altura morava em São Paulo, soube da notícia por telefone. “A titia foi presa!”, disse-lhe, em tom de comemoração, uma ex-colega do hospital. Ao longo do dia, seu celular não parou de tocar. Na semana seguinte, Karina pegou um avião e foi a Curitiba contar o que sabia à polícia.
Nos autos da ação penal – que corre em sigilo de Justiça – há 26 depoimentos de testemunhas com um enredo parecido: a doutora declarava qual paciente tinha poucas chances de sobreviver, pedia que se colocasse um biombo em frente ao leito, mandava diminuir os parâmetros de oxigênio para em seguida ser aplicado o coquetel de sedativos. Era assim que ela fazia “girar a UTI”. As acusações não são unânimes: outros 22 funcionários disseram à polícia nunca ter visto ou ouvido falar de nada parecido nas dependências do hospital.
Cinco dias depois da prisão da doutora, a polícia voltou atrás no ponto mais grandiloquente do inquérito. Ela não dissera em um telefonema que estava “com a cabeça tranquila para assassinar”. Falara, isso sim, estar “com a cabeça tranquila para raciocinar”. O erro na transcrição da fala fora vazado à imprensa e enviado à Promotoria sem o áudio e ninguém duvidara das suas palavras.
“O conjunto das conversas era pesado e evidenciava a intenção de provocar a morte dos pacientes, independente de ela falar ‘raciocinar’ ou ‘assassinar’”, disse o procurador Marco Antonio Teixeira, que participou do caso. O Jornal Nacional deu uma longa reportagem sobre a transcrição errada da polícia. Mas as incriminações, dentro e fora da imprensa, continuaram sem qualquer alteração.
Uma coordenadora de enfermagem afirmou que, quando seis feridos num acidente de trânsito estavam para chegar à UTI lotada, a doutora provocou seis óbitos em meia hora para vagar os leitos. Uma técnica de enfermagem disse que um paciente estava bem, chegou a pedir os óculos de leitura, e, três horas depois de tomar o coquetel prescrito pela médica, estava morto.
Há o relato de uma enfermeira dizendo que um doente estava “acordado e falante”, e também morreu depois de lhe ministrarem os remédios. Outra disse que tentou reanimar um paciente e a doutora mandou “deixá-lo quietinho”. Uma secretária de nutrição afirmou que viu a doutora “desligar quatro aparelhos”. Uma auxiliar de limpeza falou que “morria muita gente mesmo porque eu tinha que limpar muitos leitos”. Uma enfermeira afirmou ter desistido da profissão depois do que viu na UTI Geral.
Nos relatos feitos em juízo, porém, há uma quantidade impressionante de frases como “ouvi dizer que”, “era consenso no hospital”, “soube que”, “o comentário geral no hospital é de que”, “o grande comentário é”, “era sabido que”. Na maioria deles o caráter intratável da médica também era ressaltado.
Especulou-se muito, e às vezes de maneira disparatada. Disseram que a doutora sempre queria se livrar de pacientes do SUS (ainda que fossem a maioria absoluta dos atendidos), que fazia muitas traqueostomias sem necessidade para ganhar dinheiro (quem recebe pelo procedimento é o hospital e o médico que o faz, e não a chefe da UTI), que era dona dos respiradores e os alugava para o hospital (o que nunca se confirmou).
De um passado distante se materializou a costureira Rosely Hanemann, que havia trabalhado na confecção Bianco nos anos 80. Ela foi à polícia assim que viu a prisão da doutora pela televisão. “Nunca me saiu da cabeça ela me contando que praticava eutanásia porque as pessoas tinham vivido muito e era preciso dar lugar para outras no hospital”, disse-me.
A costureira afirmou que a médica lhe confidenciou, em 1988, ter sido contratada pelo Hospital Universitário Evangélico apenas por ter assumido, durante a entrevista de admissão, ser favorável à eutanásia. “Eu juro por tudo o que é mais sagrado que ela falou isso e eu nunca esqueci. Fala aqui com a minha colega, que sabe de tudo porque contei desde aquela época”, disse-me passando o telefone para a amiga.
Seis pessoas afirmaram à polícia ter ouvido a médica dizer em alto e bom som: “A UTI é minha. Quem decide quem vive e quem morre aqui sou eu.” Com isso, um carrossel de atônitos se instalou na porta do hospital e da delegacia que investigava o caso. Familiares e amigos de atuais e ex-pacientes se aglomeravam em busca de informações. Muitos parentes registraram boletins de ocorrência dizendo que a morte de um ente querido se encaixava no perfil das denúncias contra a doutora.
O Evangélico soltou um comunicado anunciando uma sindicância interna. O presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, José Mário Meira Teles, alertou que decisões corriqueiras tomadas em uma UTI podem ser mal interpretadas por leigos. A presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Paraná, Cintia Grion, considerou ter havido uma criminalização das falas da doutora, analisadas fora de contexto.
Em São Paulo, o superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Gonzalo Vecina Neto, acompanhava o noticiário com desconfiança. “Um hospital daquele porte, que presta um serviço relevante para a população, ia ignorar e aceitar uma coisa dessas por anos?”, perguntou ele no final de maio. “Para uma situação dessas, seria necessária a cumplicidade de muita gente, do que eu duvido.”
Segundo ele, as palavras da doutora Virgínia faziam sentido. “A UTI tem mesmo que girar”, disse. “Se o paciente está estável, ele tem que sair de lá. Se ele está num quadro terminal, a equipe toma uma decisão conjunta, que pode ser a de não prolongar o sofrimento, e a morte chega como deve chegar. Na minha opinião se trata, mais uma vez, de um erro da imprensa”, comentou.
O noticiário tomava proporções de caça às bruxas. Trechos dos depoimentos das testemunhas eram vazados aos jornalistas, assim como detalhes sórdidos do que teria acontecido entre as paredes da UTI Geral. O site de notícias G1 publicou com exclusividade um bilhete de uma paciente, no qual pedia socorro “pois tentaram hoje me matar desligando os aparelhos”. Ao site, ela – que estava recuperada – afirmou que a doutora planejou matá-la, mas fora salva por uma enfermeira. Outros dois bilhetes apareceram depois.
A revista Veja trouxe uma reportagem com chamada de alto de capa sobre a “repugnante máquina de execuções instalada na UTI” do hospital curitibano. Alguns programas na televisão passaram a se referir à médica como “Doutora Morte”. O caso repercutiu no exterior. The New York Times, The Guardian, The Independent, Al Jazeera, CNN, Fox News fizeram reportagens sobre o caso. Lembraram-se do médico americano Jack Kevorkian, que praticou eutanásia em mais de 100 pessoas, e do inglês Harold Shipman, um adorável cirurgião que matava seus pacientes depois de convencê-los a lhe passar seus bens em testamento.
O site Terra publicou uma entrevista de uma técnica de enfermagem que afirmava ser “de domínio público dentro do hospital” que a doutora havia antecipado também a morte do próprio marido, quando ele estava internado com câncer na UTI Geral. A informação também foi publicada n’O Estado de S. Paulo.
Nenhum dos quase 400 médicos do hospital, porém, apareceu para corroborar as acusações. Os que foram arrolados pela polícia as negaram. A Promotoria atribui o fato ao “corporativismo médico”. “Se um fala que sabia, por que então nunca denunciou?”, disse a promotora Fernanda Nagl Garcez, e informou-me: “O hospital atrapalhou muito as investigações, demorando a fornecer informações ou nos mandando dados errados.”
“Eu fiquei perplexo quando ouvi isso”, disse o infectologista Sergio Ricardo Penteado Filho, que atendeu Nelson Mozachi até sua morte. Segundo ele, a doutora Virgínia sequer estava presente quando o marido faleceu. Penteado chegou a publicar uma nota indignada, na qual dizia que a responsável pela afirmação deveria ser “investigada e processada por falso testemunho”.
A UTI Geral foi fechada. Quando reabriu, duas semanas depois, tinha um novo nome, UTI 1. Seus 34 médicos e 47 enfermeiros haviam sido substituídos. O Hospital Evangélico não tem ideia de quantas pessoas deixaram de ser atendidas nesse período.
“A essa altura, a doutora Virgínia já era um monstro, um demônio indefensável execrado publicamente”, disse o advogado Elias Mattar Assad, em seu escritório, em Curitiba. “Tiraram toda a credibilidade da doutora antes de ela poder se defender, ou de terem levantado provas reais do que houve. Quando peguei esse caso, me vi diante de um novo dilema de Galileu: ignorância versus ciência.”
Segundo Elias Assad, as acusações contra a médica foram feitas por leigos que se impressionaram com o que se passa num ambiente de UTI. Foram também motivadas por vingança pessoal contra os desacatos ditos pela médica. Em sua avaliação, não havia sequer fato criminoso. “As pessoas morreram pelos efeitos deletérios dos males que tinham”, disse. “Elas morreram na UTI do Evangélico como morreriam em qualquer UTI do mundo, onde receberiam a mesma medicação – que é a padrão e a correta.”
Ele se dizia surpreso por nenhuma acusação ter sido jamais levada ao Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná ou a uma sindicância interna no hospital. E o mais curioso, a seu ver, foi que “todos os pacientes tratados por ela tinham outro médico. A Virgínia não era a médica deles. Ela cuidava deles na UTI, mas havia o médico assistente que participava de todas as decisões, dos procedimentos e, inclusive, era quem assinava os óbitos ou dava alta. No entanto, ninguém se interessou em ouvi-los”.
O oncologista Alexandre de Almeida Guedes fazia parte da equipe responsável pelo paciente Manrique Manoel Neiva Negrão, de 73 anos. Com câncer avançado, o doente estava, nas palavras de uma enfermeira, “acordado e falante” às oito da noite. Às dez, Negrão recebeu o coquetel e, à meia-noite, morreu.
Quando lhe perguntei sobre o que ocorrera, Guedes disse que não falaria sobre o assunto com uma jornalista. “Se fosse o seu pai, você não gostaria de ver os detalhes do que houve com ele publicados numa revista”, disse-me. “Isso envolve uma questão judicial em curso, também o sigilo médico e é uma questão de ética.”
Perguntei-lhe se, caso fosse intimado, seria um problema ou um embaraço esclarecer o ocorrido na polícia. “Não seria problema algum. Se for chamado, eu irei. Eu sei do caso dele, sei do prognóstico e de como tudo ocorreu. Está tudo no prontuário médico”, afirmou. Sobre a doutora Virgínia, ele foi direto: “Convivi com ela, conheço-a bem.”
Durante uma semana, a médica ficou presa na carceragem da delegacia do Núcleo de Repressão aos Crimes contra a Saúde. Dividiu uma sala de 20 metros quadrados com outras três mulheres, acusadas de desviar verbas de uma faculdade em Ponta Grossa. Quando o erro na transcrição das fitas foi divulgado, ela foi transferida no meio da noite para o presídio de segurança máxima de Piraquara, nos arredores da capital. Ali, passou outros seis dias fazendo a “dancinha da garrafa” – como ela chamou a revista íntima – e tratando a carcereira na forma majestática de “Sua Agente”, conforme era obrigada. Ao todo, passou um mês na cadeia.
Em março, treze meses depois dos telefonemas, a doutora e os seus “protegidos” – três médicos, uma fisioterapeuta e dois enfermeiros – foram denunciados por formação de quadrilha e homicídio duplamente qualificado de sete pacientes: Clarita Colle, Pedro Amir Pereira, Manrique Negrão, Airton Santos, Romari Rocha, Leônidas Irala e Ivo Spitzner.
Na denúncia, a Promotoria ignorou os bilhetes de socorro, ainda que eles tenham sido repetidamente divulgados pela imprensa como prova do crime. Segundo os promotores, é normal pacientes sedados ou com traumas neurológicos desenvolverem uma paranoia de perseguição ou terem alucinações. Também foi descartada a declaração da técnica de enfermagem de que a doutora havia matado o marido.
Eram três horas de uma tarde fria de maio quando a doutora Virgínia abriu a porta de seu apartamento em um bairro de classe média alta de Curitiba. Vestia kaftan roxo e pantufas com estampa de oncinha. Usava gel nos cabelos curtíssimos, tinha os olhos delineados a lápis kajal preto, sombra clara e gloss avermelhado nos lábios. Cheirava a lavanda de bebê. Desde que fora presa, quase três meses antes, emagrecera uns bons quilos.
“Menina, dê boa-tarde”, ela falou a um cão preto da raça lhasa apso cheio de grampinhos coloridos no alto da cabeça, que latia com vontade. “Essa aqui é a Naomi, o nome é autoexplicativo, não?”, disse-me numa alusão à modelo Naomi Campbell.
Cada parede da sala do apartamento é pintada de uma cor (salmão, vermelho e azul) e abriga um sem-número de quadros de paisagens marítimas e cenas do Carnaval veneziano pintadas pelo impressionista catarinense Érico de Castro. Dois sofás de corino roxo, ornados por almofadas alaranjadas, formam um “L” diante de uma lareira desativada. Há tapetes, cortinas escuras, uma grande mesa de jantar com cadeiras de espaldar alto, um bar espelhado com taças e garrafas de bebidas à mostra.
A doutora dificilmente ri. Quando o faz, é de modo canhestro e pouco natural. Ela fala com afetação, como se estivesse no salão de chá de um palácio florentino. Muitas vezes, ao encerrar uma frase, recolhe os lábios e faz um bico proeminente, o que lhe dá um ar de empáfia. Não é fácil simpatizar com a médica.
Desde que deixou a cadeia, ela passa o tempo debruçada nas mil páginas do processo, lendo e relendo os depoimentos e examinando prontuários médicos. “Você sabe que eu vivi tanto tempo fora da minha casa, que estou até achando bom: aqui para mim é Pasárgada”, disse, referindo-se ao poema de Manuel Bandeira, alcançando um maço de cigarros Dunhill em uma mesinha. Passou também a assistir televisão, mas sem som. “Não quero ouvir ‘a médica que matava pacientes’”, disse. “Deviam botar ao menos ‘suspeita de’. Não acredito em mais nada que passa na tevê. Uma reportagem diz ‘fulano matou’. Eu fico pensando: ‘Será?’”
À medida que o tempo passava, as acusações lhe pareciam ainda mais estapafúrdias. “Eu só queria saber o motivo das minhas supostas ações”, disse. “Sou uma psicopata que montou, ao longo de 25 anos, uma quadrilha de outros psicopatas, que aderiam sem ganho algum? Nesses anos todos, 400 médicos não acharam nada errado? Ou, se acharam, ficaram calados porque sou extremamente poderosa? Isso é sensacional.”
Segundo ela, o que a promotoria chamou de “coquetel assassino” e “kit morte” são procedimentos corriqueiros usados em unidades de terapia intensiva em pacientes de extrema gravidade. São tentativas de melhorar o estado do paciente, jamais criar uma situação inversa. Às vezes, tinha-se sucesso. Em outras, não. “É proibido ao médico usar de recursos absurdos quando o paciente não tem mais condições de sobreviver; isso é ética”, afirmou.
Com a reforma do Código de Ética Médica, em 2010, a ortotanásia passou a ser um procedimento aceito pela Justiça. A ortotanásia se dá quando um médico deixa de tratar a doença de um paciente desenganado com procedimentos considerados invasivos, e apenas cuida de evitar seu sofrimento. A decisão pela chamada “morte digna” nunca é tomada por um único especialista, mas por uma equipe médica, depois de descartadas todas as alternativas de tratamento.
A ortotanásia é diferente da eutanásia e da distanásia. Na eutanásia, há consenso entre o especialista e o paciente, ou sua família, no sentido de abreviar-lhe a vida. A eutanásia é crime no Brasil. A distanásia ocorre quando se mantém um doente terminal e incurável ligado a aparelhos, prolongando-lhe artificialmente a vida, muitas vezes para que o hospital continue recebendo pela internação do doente.
Quando ainda era proibida por lei, adotava-se a ortotanásia em muitos hospitais brasileiros. Uma reportagem publicada pela revista Veja, em 2002, ouviu anonimamente 26 dos mais conhecidos intensivistas. Eles admitiam alterar padrões de respiradores ou drogas que mantinham pacientes desenganados ainda vivos. Era o que se fazia para abreviar o sofrimento do doente, a dor da família ou abrir vaga para alguém que tenha mais chances de sobreviver ou não tenha cobertura de um plano de saúde.
“Há procedimentos especializados e complexos, feitos em UTIs, que são tentativas de tratar dos sintomas de pacientes terminais”, disse-me Gustavo Amarante, da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. “Eles incluem dar determinados remédios e mexer nos parâmetros de ventilação.”
Segundo ele, há um ponto em que não há mais nada a se fazer a não ser poupar o paciente de efeitos desagradáveis, como dor ou falta de ar. Nessa hora, o médico procura aliviar os sintomas com analgésicos, sedativos. “Há coisas que a gente faz que, por mais que eu conte como é que são feitas, um leigo pode interpretar de outro jeito”, disse Amarante.
Há alguns anos, um estudo publicado pela New England Journal of Medicine suscitou um animado debate sobre o uso de sedativos e bloqueadores neuromusculares em pacientes terminais. De acordo com o trabalho, depois de o doente receber determinados medicamentos para aliviar a dor, ele permanecia vivo por um intervalo que variava de seis a oito horas.
“Veja que saia justa”, disse Amarante, referindo-se ao artigo. “O sujeito está com uma dor oncológica enorme, você inicia a sedação e a analgesia, cuida da falta de ar, e ele morre. Aí, vem a pergunta: Você acelerou a morte dele? Não sei, não dá para responder. Agora, ele morreu sem dispneia, sem estar se contorcendo de dor, sem sofrer desnecessariamente. Morreu porque estava morrendo.” Ele fez uma longa pausa e perguntou: “Percebe como é uma questão muito complicada?”
O pneumologista Luiz Felipe Mendes foi diretor do Hospital Evangélico, de 2008 até estourar o escândalo da UTI Geral. Segundo ele, sua saída estava prevista havia meses. Ele é o interlocutor da doutora na gravação em que ela comenta ter tentado “desligar” uma criança, o que não havia sido possível porque “a mãe tinha decorado os parâmetros”.
Segundo Mendes, a menina havia sido atacada por um cachorro e estava com morte cerebral documentada. “Era um caso dramático porque ela estava na casa dos avós e os pais viajando”, contou. “A Virgínia me dizia que estava incomodada com a pessoa da captação de órgãos, que ficava ao lado da família da menina. E depois, porque queria desligar a medicação, já que a morte cerebral estava comprovada, para não prolongar o sofrimento dessa família. A criança estava morta.”
A doutora Virgínia comentou o caso: “Não se prolonga um sofrimento desses, isso é desesperar uma família. Mas nós, latinos, temos essa cultura de deixar tudo, respirador, droga, e isso é um crime porque a pessoa não está mais lá.” A decisão da família foi a de esperar o coração da criança parar, o que ocorreu três dias depois.
A médica considerou “de um primarismo atroz” as interpretações feitas de suas falas. Em suas palavras, “desentulhar UTI” era mandar o paciente para o quarto. “Desligar o paciente”, não ministrar determinada droga ou procedimento. E quanto à gravação na qual era chamada de “Virgininha Mengele”? “Muito fácil de responder”, afirmou. Segundo disse, ao chegar a casa teve dúvidas se havia receitado um analgésico a um paciente, que havia sido suspenso durante o dia. “Então, o funcionário me disse que eu tinha deixado, sim, o analgésico”, disse. “E ele mencionou Mengele porque o médico nazista fazia experiências que deixavam as pessoas berrando de dor. Era uma brincadeira. Só.”
Há mais de uma década, o ortopedista Manuel Ruedas Guerrero atende pacientes da UTI Geral. Ele se disse chocado pela maneira como jargões médicos foram interpretados pela polícia. Em uma época, ele contou, era chamado de “rei dos sacis” porque havia feito cinco amputações em sequência. “Tinha um colega que era ‘matador de velhinhas’ porque ele só pegava caso complicado de velho”, lembrou. “Se a polícia tivesse ouvido isso, o cara estava na cadeia”, afirmou. “Grampeia um delegado e vê como ele fala de um morto: vai ser de ‘presunto’ para baixo. É muito feio, choca, mas pelo amor de Deus, acusá-la de assassinato?”
Para Guerreiro, é possível que as acusações contra a médica tenham outras razões. “Ela é grossa, é racista, é mal-educada, é implicante, é desrespeitosa, é feia”, disse. “Se for isso, acusem-na, processem-na por racismo ou assédio moral. Mas falar que ela matava? Qual seria o seu interesse? Financeiro? Loucura?”
Como o Sistema Único de Saúde paga uma diária de 1 mil reais por paciente, independentemente dos procedimentos feitos no doente, Guerreiro não vê sentido nas motivações financeiras. “É melhor deixar um paciente antigo, que necessita de poucos procedimentos, em vez de pegar um novo, que demanda mais. Não há nenhum ganho em matar.”
Para ele, o caso era um enredo acabado, que agradou os urubus de ocasião: “Pegaram o que existe de mais sensível, que é a morte, com o que há de mais obscuro, que é uma UTI: portas fechadas, a tênue linha entre vida e morte. E uma mulher que era uma bruxa. Veja bem: ninguém que a acusa trabalha lá, e quem acusou foi gente que foi demitida.”
No meio da sala, Naomi latia insistentemente na minha direção. A doutora afinou a voz e passou a dublar o animalzinho: “Eu não gosto de mulher… Eu não sou boba… Eu quero atenção!” Ela contou que havia perdido outro cão, Igor, recentemente. “Ele me esperou voltar da prisão e depois de quinze dias se foi”, disse com os olhos marejados.
“Eu me lembro exatamente de cada um”, comentou a doutora sobre os doentes de que era acusada de matar. “Eu reconheço paciente pelo cheiro, e isso não é mérito, é uma coisa de alguém que faz há trinta anos a mesma coisa e gosta”, afirmou. “Em todos os casos, tentou-se tudo.”
Em uma gravação, a doutora é informada de que um “paciente de convênio” é esperado no hospital. Ela pergunta qual é o convênio e depois diz: “Então você tem que ir com o Ivo.” Referia-se a Ivo Spitzner, 65 anos, internado pelo Sistema Único de Saúde, que morreu depois de cinco dias na UTI Geral.
“O prontuário do Ivo é a maior testemunha de que tudo foi feito para salvá-lo”, disse. Segundo ela, o paciente era um homem acamado desde 1996, havia sofrido sete derrames e foi reanimado durante 100 minutos depois de ter sofrido uma parada cardíaca. “A média é de 45 minutos, e ele foi reanimado por 100, até dar tempo de a família chegar”, disse. “Achei curioso que apareceu, no inquérito, uma foto dele pescando. Deve ser de 1995. Então o que parece é que ele chegou lá andando e morreu do nada.”
Perguntei-lhe se nunca houve uma situação em que um paciente desenganado poderia viver um ou dois dias a mais, e o tempo foi abreviado propositalmente. “Nunca”, respondeu.
Leonardo, o filho da doutora, trouxe uma bandeja com xícaras e um bule de café. Serviu a mãe com delicadeza enquanto ela relembrava o período em que ficou presa. “Se Graciliano Ramos visse as minhas memórias do cárcere, ele ficaria com inveja.” Com humor, ela contou que a única coisa que pediu da “carceragem”, como diz, foi uma sandália, porque não sabe andar de chinelos. “E uma amiga me traz um tamanco igualzinho ao de biscate de novela das nove.”
Ela se mexeu no sofá, apalpando o estofado atrás do maço de cigarros, e se lembrou da enxurrada de acusações: “Era uma surpresinha todo dia. Um dia, eu matei meu marido. No outro, vendia os aparelhos respiratórios. Mais um dia e eu tinha sociedade no hospital. Ah, eu fazia tudo por dinheiro. Eu só podia rir, não é?” De todas as acusações, uma a feriu fundo: a de ter matado o marido. “Essa eu não perdoo”, disse.
A enfermeira Carla Fernanda Pires Santos trabalhou na UTI Geral de abril de 2011 a janeiro de 2012. À polícia, ela afirmou ter sido impedida pela doutora de reanimar um paciente em choque. “Ela dava o coquetel quando achava que o paciente não tinha mais chance”, disse-me durante um café da manhã, em Curitiba. “Mas houve um paciente que chegou sem a calota craniana, recebeu o coquetel e não morreu”, disse. “Ou seja: essa coisa de que a pessoa já estava morta era mentira. Ele sobreviveu!”
Carla Fernanda disse ter visto a paciente Clarita Colle pedir água, receber o coquetel de medicamentos e morrer em seguida. “Tudo bem que ela não ia sobreviver muito mais tempo, mas acho que não ia morrer naquele dia”, disse. “E, depois que a doutora mexeu nos parâmetros e deu a sedação, ela morreu em uma hora. Foi uma coisa que abalou demais a gente.”
A enfermeira passou a discorrer sobre o temperamento da médica. “Ela parecia uma bruxa de conto de fadas, sabe?”, disse. “Malvada, assustadora, xingando todo mundo.” Perguntei por que ela havia sido insultada pela doutora. “Só porque atendi uma ligação do celular na UTI”, explicou Carla Fernanda. “Ela foi reclamar de mim, falou que eu era negligente e irresponsável. Mas era uma ligação importante, eu já tinha assumido o plantão, estava tudo sob controle.”
A doutora Virgínia me disse se lembrar bem do caso de Clarita Colle. A paciente tinha câncer de pulmão com metástase no cérebro, e exames patológicos mostravam que não tinha condições de ser submetida à quimioterapia. “Ela tinha um tumor que havia crescido para dentro do tronco”, contou. “Quando Clarita chegou ao máximo da asfixia, ela foi anestesiada. E depois, o coração parou. Mas a enfermeira acha que fui eu que provoquei a asfixia.” Sobre o paciente sem calota craniana, ela comentou: “É isso! A gente faz as coisas para que eles sobrevivam.”
A médica se disse estupefata com a acusação de que houve seis mortes para receber vítimas feridas em um acidente. “Nem se eu tivesse varinha de condão”, falou. Só para retirar os cadáveres, desinfetar as camas e rearrumá-las para um novo paciente – a doutora raciocinou –, seria preciso pelo menos uma hora e meia em cada caso. “E a pessoa diz que desceu para o pronto-socorro, subiu e apareceram seis leitos vagos. Essa pessoa era a chefe da enfermagem. Por que ela não fez uma denúncia ou ao menos me questionou?”
Eu disse à doutora que me impressionava como ela falava do assunto sem emoção. Afinal, era acusada de assassinato e se dizia totalmente inocente, o que seria uma injustiça inexorável. “O que você quer que eu faça?”, ela redarguiu. “Eu não sei te dizer, porque, depois que eu matei o meu marido, eu só não matei o Hugo Chávez, não é? Depois que alguém estava pedindo um copo d’água e cinco minutos depois está morto, tudo é possível. Eu faço o quê?”
Em sua opinião, nem todo doente cujo coração para tem que ser reanimado. “Tem doente que até não tem que ir para a UTI, entendeu?”, perguntou. “Mas, se você tenta explicar isso, acontece o que aconteceu comigo: ‘Ela deixou o doente morrer’, ‘Ela acelerou a morte.’ Não! O doente já estava tecnicamente morto. Ninguém acelera nada.”
À volta da doutora, amigos e ex-funcionários atribuem as denúncias ao que passaram a chamar de “revolta do baixo clero”. “Ela está pagando por um comportamento”, disse a nutricionista Karina Kaminski Paciornik, ex-superintendente administrativa do Hospital Evangélico. “Está pagando por ser grosseira, mal-educada, arrogante e ter cobrado demais das pessoas. Toda vez que ela surtava era porque esse pessoal tinha feito alguma coisa errada”, afirmou.
A cachorrinha se aninhou ao meu lado, o que provocou uma expressão doce no rosto da médica. Perguntei sobre o baixo clero. “Você sabe o que é a hora do cafezinho?”, ela indagou. “Pode haver um doente precisando de auxílio, mas eles param tudo porque ‘é a minha hora do café’. Você sabe o que é perder pela quinta vez a veia de um paciente? Não dar alimentação porque tem preguiça de dar? Você acha que a enfermagem me amava por eu não deixar os doentes usarem fralda – para não dar ferida ou mau cheiro – e eles terem que limpar a evacuação no lençol? Quem trabalha à noite tem apenas uma hora para jantar e esticar as pernas. Mas não, eles queriam dormir.”
Ela me pediu para desligar o gravador, e disse: “Sabe o que é isso? É infernagem!” Com o dedo em riste, fez um sinal para que eu voltasse a registrar a conversa. “Eu cobrava, exigia. Isso incomoda, perturba.” Segundo ela, as acusações foram dirigidas aos médicos e aos enfermeiros mais rígidos, mais exigentes. “Eu esperava um processo de assédio moral. Mas não houve nenhum.”
A doutora não tem dúvida de que a sua aparência influenciou as acusações. “Eu sempre brinquei que a pior coisa do mundo é você ter cara de pobre, porque pobre só puxa desgraça”, disse. “Então, sempre me arrumei bem.” Num depoimento, uma enfermeira afirma que a médica ia trabalhar de casaco de pele. “Imagina, pele gruda secreção, não é higiênico”, falou.
O grande problema, ela disse, era a dificuldade de separar o público do privado no ambiente de trabalho. Qualquer repreensão era levada para o lado pessoal. “Se eu te chamo de horrorosa, eu não estou nem olhando para a sua cara, estou falando do seu trabalho”, disse. “Você está numa UTI e ainda tem que se preocupar porque a mocinha ficou ofendida porque foi chamada sua atenção. Por favor, por favor”, disse, impaciente.
Nos depoimentos, pelo menos cinco pessoas mencionam o fato de a doutora não lhes dirigir a palavra. “Eu não saía para trabalhar para fazer amiguinho, eu saía para trabalhar.” O filho se levantou do sofá e colocou um cinzeiro dourado em frente à mãe. “Mas não. Lá, elas choram, tem quem desmaie se leva uma bronca. ‘Ah, ela gritou comigo.’ Meu Deus, que coisa fantástica, não é?”
De volta ao sofá, Leonardo balançou a cabeça num sorriso. Perguntei de que ele achava graça. “É que eu conheço a personalidade da minha mãe”, respondeu. “Acho bonito como ela é verdadeira. Não é ilegal ser grosso. Quando a visitei na prisão, eu falei: ‘Tenho orgulho de ser seu filho.’”
Depois da prisão da médica, a polícia apreendeu 1 872 prontuários de pacientes que passaram pela UTI Geral, entre janeiro de 2006 e fevereiro de 2013. Eles estão sob segredo de Justiça por conter informações pessoais dos pacientes. Num primeiro levantamento, a polícia científica localizou 417 pacientes que haviam recebido o coquetel de sedativo e o bloqueador neuromuscular, o que os tornava casos suspeitos. Desses, 346 foram prescritos pela doutora e, em 317 casos, os pacientes morreram no mesmo dia – o que significa uma mortalidade de 91%. Das 128 prescrições feitas por outros médicos da UTI, apenas dois pacientes morreram em um período de 24 horas, o que correspondia a 13% deles.
O advogado Elias Mattar Assad diz que a contabilidade é falaciosa. Primeiro, porque a maioria das prescrições era feita mesmo pela doutora Virgínia, que disponibilizava sua senha a outros médicos e era quem recebia os pacientes que chegavam à unidade. E também porque, feita uma matemática de 317 mortes ao longo de seis anos, chegava-se a uma morte por semana, o que seria um número insignificante para uma UTI de catorze leitos.
De fato, a taxa de mortalidade na UTI Geral do Evangélico – que foi de 17% no ano passado – ficou abaixo ou igual à média de outros hospitais do mesmo porte, como o Souza Aguiar, no Rio, ou o Hospital das Clínicas, em São Paulo.
“Ninguém prova morte com estatísticas”, disse Assad. “O Ministério Público vai ter que provar que as pessoas morreram de causas diferentes das que elas morreram. Esses senhores podem já ir rascunhando um pedido de desculpas à medicina, não só à médica.”
“A quantidade de mortes não é o que chama a atenção”, reconheceu o auditor Mário Lobato, do Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde, que coordena a sindicância sobre o caso. “A prova dos crimes é outra: é o padrão usado sistematicamente pela equipe médica para antecipar os óbitos. E se houve uma morte só por semana, não interessa. Interessa que essa morte não deveria ter ocorrido naquele dia. Ela foi provocada, foi assassinato.”
A comissão de sindicância composta por médicos, legistas e intensivistas analisa os prontuários escritos a mão pela enfermagem, e os eletrônicos tirados dos computadores dos médicos da UTI. Segundo Lobato, a comparação de ambos é uma confissão dos crimes.
“É possível esquadrinhar em detalhes o modus operandi – sempre a alteração nos padrões de ventilação artificial, combinada com o coquetel de remédios – e até mesmo um perfil dos pacientes escolhidos”, disse o auditor. “Há muitos queimados na face, mulheres que tiveram problemas depois do parto, usuários de drogas.”
Segundo Lobato, no relatório dos médicos há um texto-padrão para uma série de doentes distintos. Nos escritos pela enfermagem, vê-se com detalhes a evolução dos pacientes: “Dá para identificar que, em muitos casos, o paciente estava respirando bem, tinha pressão controlada, poderia lutar pela vida por mais tempo, mas, sem qualquer indicação terapêutica, é aplicado o ‘kit morte’.”
O processo ainda está na fase de recolhimento de provas e oitiva de mais testemunhas de acusação. De acordo com o auditor Mário Lobato, outros 21 casos suspeitos já foram identificados nos prontuários e, pelo menos, mais algumas dezenas devem se confirmar nas próximas semanas.
A doutora acendeu o sexto cigarro. Contou ter sonhado, na véspera, que era expulsa de um restaurante. Para o filho, significava que era hora de sair de casa. “Não sei, ainda tenho dúvidas, tenho a figura marcante, pode ter cara feia, vamos ver”, comentou a médica.
Ela disse que a sua vida profissional estava encerrada: “Não toco mais em paciente. Eu posso fazer parte burocrática, uma medicina de trabalho, uma auditoria.” Comentei ser provável que os pacientes também não quisessem mais ser tocados por ela. “É, mas mesmo que tudo se solucione, eu não suportaria um olhar de desconfiança.”
O hospital continua pagando o salário da doutora, em torno de 25 mil reais por mês. O Ministério Público entrou com um novo pedido de prisão da médica, que deve ser julgado em junho.
Debateu-se o que a doutora poderia fazer enquanto responde ao processo em liberdade. “Pensei em atualizar a edição do livro que fiz com meu marido. Mas o problema é que ele é voltado à…”, ela interrompeu a frase, fez uma careta de zarolha e colocou a língua para fora, “… enfermagem!” Houve uma explosão de riso na sala. Virgínia Helena Soares de Souza recompôs a expressão facial, virou o rosto de lado e empinou o nariz teatralmente.
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