"Depois que você sai do chão, tem muita coisa para fazer. São só mais uns quatro segundos, mas dá tempo de pensar bastante. Só que o meu tempo não é o de relógio, é o de movimento." FOTO: EGBERTO NOGUEIRA_IMÃ FOTOGALERIA_2012
A dura escalada
Fabiana Murer tem pela frente um sarrafo a quase 5 metros de altura e uma rainha chamada Yelena Isinbayeva
Dorrit Harazim | Edição 69, Junho 2012
Tente levantar uma vara de mais de 4,5 metros de comprimento, empunhando-a por apenas uma das extremidades. Depois a mantenha apontada para o alto em linha reta com o corpo, sem balançar. Nesta posição, inicie uma corrida de 37 metros em dezoito passadas, erguendo o joelho a 90 graus do solo. Na troca de cada passada, mantenha o seu dorso, coxa e tíbia em ângulo reto, quase como o encosto, assento e pernas de uma cadeira. Tudo isso numa velocidade de mais de 8 metros por segundo e com a danada da vara sustentada acima da cabeça. Durante a corrida comece a apontá-la para um encaixe de aço situado ao final da pista. Finque-a tal qual uma lança, com precisão.
Quem executar esses movimentos, simplificados de forma quase vil na descrição acima, terá transposto apenas a parte inicial da prova talvez mais complexa e bela do atletismo: o salto com vara. O salto propriamente dito, contudo, sequer teria começado. Faltariam, ainda, as outras quatro etapas desta prova que já foi comparada a uma sinfonia com vários movimentos – adagio, andante, scherzo, alegro vivace.
Faltaria a decolagem, com a transferência da energia cinética do atleta para a vara ainda reta. Esta só começará a envergar quando o praticante estiver a uns 30 centímetros do chão, impulsionado de frente e para o alto, na continuidade do movimento.
Em seguida ocorre a reversão, nome dado ao momento em que o atleta ergue pernas e quadril e fica de cabeça para baixo na vara flexionada. Nesta posição, ele inicia um meio giro com o corpo em torno da vara, e se posiciona para o voo de barriga. É a chamada inversão.
Por fim, já sem o apoio da vara, o atleta curva o corpo em forma de arco, alça voo e tenta transpor o sarrafo. De preferência sem roçá-lo, pois quando tocado ele costuma cair em câmera lenta, de forma sempre desengonçada, quebrando o encanto de um momento que deveria ser sublime.
Quem quiser bater o recorde mundial masculino do ucraniano Sergei Bubka, imbatível há dezoito anos, terá de saltar mais de 6,14 metros. E quem quiser galgar o ar rarefeito da vara feminina vai se defrontar com uma muralha chamada Yelena Isinbayeva, detentora do recorde mundial de 5,06 metros, alcançado três anos atrás.
A exuberante russa de 30 anos estará no Estádio Olímpico de Londres, a partir das 19 horas da segunda-feira, 6 de agosto próximo, em busca do que parece considerar lhe pertencer de direito: a terceira medalha de ouro consecutiva, depois das de Atenas (2004) e Pequim (2008).
Na mesma pista estará a brasileira Fabiana Murer, de 31 anos. Com um salto de 4,85 metros no Mundial de Atletismo de Daegu, na Coreia do Sul, em agosto passado, ela se tornou a primeira medalhistade ouro do atletismo brasileiro a ostentar esse título. Na mesma prova, Isinbayeva ficou em sexto lugar. Um ano antes, no Mundial Indoor (pista coberta) de Doha, no Catar, Fabiana também saíra com um ouro pendurado no pescoço. E a russa, também atipicamente, ficara em quarto lugar. Lembranças para o baú de memórias de ambas.
As duas atletas não poderiam ser mais diferentes entre si – em temperamento, estilo, ambição, caraterísticas atléticas e modos. Também diferem na expectativa para Londres e na estratégia para chegar lá. Um elo, porém, as une de forma quase umbilical e conflitante: Vitaly Petrov, o cultuado técnico de salto com vara que em 1974 tomou sob suas asas um moleque ucraniano de 10 anos de idade, Sergei Bubka, e fez dele o maior de todos os tempos.
Aos 66 anos, Petrov conserva, além do porte atlético, um dente de ouro da era soviética e o carregadíssimo sotaque russo, apesar de morar há vinte anos em Formia, sua cidade-base na Itália. É loquaz e detalhadíssimo ao explicar sua metodologia de treinamento, que já gerou 29 medalhistas da elite internacional e norteia desde 2001 o trabalho de Elson Miranda de Souza, técnico e marido de Fabiana.
Ao tentar definir a beleza da prova, Petrov parece rever mentalmente a sequência inteira de movimentos e resume tudo numa só palavra: “harmonia”.
Nenhuma outra modalidade mescla na mesma prova os três fundamentos-base do atletismo: correr, saltar e arremessar. É uma prova-espetáculo, com performances terrestre, acrobática e aérea. E não é por acaso que Petrov declarou à jornalista Denise Mirás, da R7, no início de 2011, que “o salto com vara é um balé. Uma arte. Bubka, Yelena e Fabiana Murer são artistas”.
O técnico russo desembarcou em São Paulo três meses atrás para dar continuidade a uma de suas periódicas clínicas com os atletas de Elson. Em janeiro, já submetera o mesmo grupo a um mês de treinamento em Portugal, mas continuava desconsolado com o calendário brasileiro de competições, que a seu ver não leva em conta a programação no resto do mundo. “Tem torneios demais agendados para talentos que estão despontando – é o Sub-17, o Campeonato Júnior, o Ibero-americano, e não sei mais o quê. A própria Fabiana me chegou exausta no ano passado, na última fase antes do Mundial em Daegu. Tinha feito 28 competições, sempre viajando com aquelas varas todas. É cansativo e desnecessário. Foi um absurdo ela competir no Pan-americano em outubro [a brasileira ficou em segundo lugar, atrás da cubana Yarisley Silva]. Essa mulher não é um carro, pombas!”, comentou, durante um encontro no hotel paulistano em que esteve hospedado.
Para 2012, Petrov recomendou a Fabiana um ciclo estável, com início no final de novembro passado e participações bem mais dosadas até a Olimpíada de Londres. A brasileira, assim, não participou do Meeting Indoor de Estocolmo, realizado em fevereiro, no qual Yelena Isinbayeva fez uma rentrée em grande estilo (saltou 5,01 metros), após uma ausência de quase um ano das pistas e das manchetes. Menos de três semanas depois, no Mundial Indoor de Istambul, a russa de olhar verde faiscante voltou a vencer (4,80 metros). Novamente sem a presença de Fabiana, que segue ao pé da letra a estratégia olímpica montada por Vitaly Petrov e Elson Miranda. Difícil não sentir uma ligeira fisgada, contudo.
Os traços finos, a alvura da pele, os olhos claros e a pitada de ruivo nos cílios de Fabiana de Almeida Murer vêm da ascendência italiana – o avô era oriundo do Alto Ádige, onde deixou o trema que até então adornava seu sobrenome. Ela tinha 18 anos em 1999 quando tatuou no ombro direito o desenho da artista plástica Pinky Wainer que mostra uma silhueta feminina com uma vara, à la Giacometti. Tinha encontrado uma atividade atlética para substituir a ginástica olímpica, modalidade na qual um dia imaginou que se destacaria, mas teve de abandonar por ter espichado além da conta. Quem a apresentara ao salto com vara, dois anos antes, tinha sido Elson, campeão brasileiro da modalidade em 1989, sem nunca avançar além disso. Ele acabou se formando em Educação Física, enveredou pela carreira de técnico e trouxe Fabiana para a tribo. Atleta e treinador estão juntos há quase quinze anos e se tornaram marido e mulher em outubro de 2010.
No Brasil daqueles primórdios não havia expertise, nem varas, nem campos de treinamento, nem interesse ou tradição para a prática da modalidade. Todas as referências estavam no exterior.
Quando Fabiana participou do seu primeiro torneio internacional – o Campeonato Mundial Júnior de Atletismo, em Annecy, na França –, tinha 17 anos. Não passou da primeira peneirada, com uma marca 25 centímetros inferior à de uma adolescente russa que chegou em nono lugar. Era Yelena. Dois anos depois, no Mundial Júnior de Santiago, a mesma Yelena ofuscou todo mundo com um salto de 4,20 metros, enquanto Fabiana ficou com um modesto décimo lugar. Conseguira transpor o sarrafo a 3,70 metros, meio metro a menos do que a campeã.
Sob qualquer ângulo, o salto mais decisivo para a escalada de Fabiana Murer foi dado por Elson, em 2001. O ex-federado pelo Clube Pinheiros se iniciara no esporte com uma vara de bambu, saltando na areia. Estava com 32 anos e fizera um bom pé-de-meia como personal trainer na época do primeiro boom da profissão no Brasil. Valeu-se da baixa cotação do dólar à época, de quase um por um, para ampliar sua formação. Levou seis pupilos para treinar num centro de atletismo perto de Memphis, no estado do Tennessee, onde teve contato com atletas de alto nível. Aproveitou também, como fazia a cada viagem, para comprar mais alguma vara decente. E decidiu ir até a Europa tentar um contato com o técnico do qual todos falavam, por ter desenvolvido uma metodologia própria e de grandes resultados: Vitaly Petrov. “Sabia que seu Q.G. era em Formia e simplesmente bati à sua porta. Perguntei se ele podia dar uma clínica no Brasil”, relembra Elson. Com Petrov já trabalhava o italiano Vincenzo Canali, professor de esportes aeróbicos, especializado no desenvolvimento postural básico do atleta e estudioso dos movimentos mais complexos e técnicos do corpo humano. Juntos, desenvolveram os fundamentos de treino para vários esportes.
“Apareceu um brasileiro na minha frente e disse que queria ajuda”, conta o russo, que aceitou o convite por um pró-labore de 2 500 dólares, além da passagem e estadia. A parceria dura até hoje. Nasceu, assim, a atleta Fabiana Murer de hoje. Em 2005, a brasileira já saltava sobre sarrafos a 4,40 metros de altura.
Mas 2005 foi, também, o ano em que Yelena Isinbayeva dispensou Yevgeny Trofimov, o treinador russo que a acompanhava desde os 15 anos. Ela acabara de eletrizar o público do Crystal Palace de Londres alcançando a marca fetiche de 5 metros. Mas a atleta queria mais, por isso foi bater à porta de Vitaly Petrov. Ao longo das cinco temporadas seguintes, Murer e Isinbayeva conviveram e competiram fraternalmente, sob a direção compartilhada de Petrov.
Não mais. Há poucos meses, a russa retornou à sua Volvogrado natal e retomou os treinos com Trofimov, seu técnico de antigamente. Não sem uma saia justa. Depois que a brasileira a derrotou no Mundial Indoor de 2010, Yelena e a Federação Russa de atletismo teriam exercido pressão sobre Petrov para que ele se dedicasse com exclusividade ao treinamento da compatriota. Nenhum dos envolvidos fala sobre os bastidores da história, mas o fato é que Elson e Fabiana não passaram a costumeira temporada de treinos com Petrov em Formia, no início de 2011. Fizeram-no em Malmo, na Suécia, um pouco sem rumo. Quando a atleta russa decidiu voltar a morar e treinar em Volvogrado, o que exigiria de Petrov largar seu prestigioso centro de Formia, o técnico parece ter optado por não apostar toda a sua carreira numa única estrela.
A academia de ginástica olímpica Yashi, encravada num galpão bastante rudimentar da rua Frederic Chopin, no Jardim Europa, região abastada de São Paulo, integra o leque de instalações onde Fabiana Murer se exercita regularmente. Num final de manhã recente, de camiseta rosa, legging preta e descalça, só se diferenciava das demais alunas pela silhueta longilínea (1,72 metro, 58 quilos), que teima em não mudar com a idade. Executou incontáveis exercícios na barra visando aperfeiçoar o comando do corpo no momento do salto em que é preciso erguer o quadril para atingir a posição de ponta-cabeça. Também fez exercícios acrobáticos para melhorar a postura na corrida e na decolagem (o chamado take off), quando a posição exata do quadril, abdômen e tronco é crucial para evitar perda de eficiência na transferência de energia para a vara. “Nas seis últimas passadas estão embutidos talvez 98% do êxito de um salto. O resto é decorrência”, ensina Petrov.
Fabiana entra a uma velocidade média de 8,3 metros por segundo na decolagem. Compensa a falta de força atlética com o domínio técnico pleno do salto. Ela aperfeiçoou como poucas a execução de cada etapa. Yelena é mais veloz, consegue fazer o take off a 8,5, o que, em se tratando da física do movimento, representa uma diferença considerável. (Para termos de comparação de cada prova, a medalhista de ouro no salto em distância Maurren Maggi entra na caixa de areia a uma velocidade entre 9 e 10 metros por segundo para fazer um salto de 7 metros.) “Fabiana não corta caminho”, avalia Petrov. “Ela tem 120% de talento para organizar a vida em torno do salto com vara. Reluta em produzir menos do que lhe é exigido.”
A planilha de treinos em papel quadriculado que Elson Miranda elaborou para a temporada 2012 inclui, dependendo da fase do treinamento, a corrida descalça. “Quando você corre sem sapatilha, não consegue apoiar o calcanhar no chão. Isso é bom porque você perde muito da energia que te empurra para a frente quando finca o calcanhar no chão”, explica Elson. “Descalço, você acaba correndo no mediopé, fortalecendo assim o seu arco.”
Como o método Petrov exige a divisão de cada etapa do salto em unidades separadas, o aperfeiçoamento da técnica ideal para cada uma também é feito por partes. No início, são tiros de mil metros para garantir a condição cardiovascular e musculatura, exercícios só de passadas (seis, oito ou dez) e treinos de encaixe da vara. Tudo sem saltar. Os treinos de reversão também começam sem a execução do salto. Paulatinamente as corridas em pista adquirem outro ritmo: dois tiros de 400 metros, cinco de 300, sete de 150 e dez de 100 metros rasos. Quando o cronograma chega aos dez tiros de velocidade de 60 metros, Fabiana já testa saltos de doze a catorze passadas. No final de abril, a atleta chega nas suas tradicionais dezoito passadas. “Gosto do meu salto, eu o acho bonito, é leve”, diz a brasileira. Dona de um estilo mais agressivo e potente, a russa Isinbayeva arranca para as alturas com apenas dezesseis passadas.
Há mais de seis anos a saltadora brasileira registra em letra microscópica o DNA de sua evolução. Num caderninho espiral que acusa o manuseio diário, ela anota cada tempo, cada corrida, cada tipo de salto (horizontal, só com perna esquerda, só com perna direita), a força de lançamento de cada treino com peso, qual vara utilizou para qual salto, local do salto, data, altura, quantas passadas, de qual distância iniciou a corrida, a quantos centímetros colocou os postes que sustentam o sarrafo (a regra permite que seja deslocado pela atleta em até 80 centímetros do ponto zero), o posicionamento do sarrafo, a quantos centímetros da extremidade a vara foi empunhada – está tudo ali. A caderneta mora na sua mochila e, embora o casal seja plugado na vida digital, a atleta jamais pensou em migrar seu tesouro para outra plataforma: desse jeito é mais prático e de acesso mais imediato, disse.
Casal sem filhos, Fabiana e Elson moram num moderno loft comprado em 2007, numa rua próxima ao Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. Um imponente mapa-múndi antigo adorna o pé-direito alto do espaço e um sofá-cama king-size domina o ambiente. Empregada, só duas vezes por semana, caindo para uma durante as longas ausências de viagem. Na entrada, a fotaça da atleta em voo, captada em 2006, é de tirar o fôlego. Na garagem, além do carro utilitário do marido, há um Aircross preto, recém-comprado para ela.
Aprática da ginástica olímpica não raro empurra para o salto a menina que cresce demais. Bem dosada, é mais benéfica para a atleta mulher, por desenvolver o fortalecimento dos membros superiores, sempre mais difícil do que no homem. Mas basta comparar o físico de ginastas com o de atletas do salto com vara para constatar que são esportes com exigências quase opostas. A ginástica comporta movimentos de impacto e de frenagem abrupta do corpo, enquanto o salto com vara é uma progressão contínua, fluida – “harmonia”, para usar o termo de Petrov. Para se destacar no salto com vara não é necessário desenvolver um corpanzil de mastim, como no arremesso de peso, nem ter pernas que chegam à altura das axilas, como muitos saltadores em distância, ou ter constituição de folha ao vento, marca de tantos maratonistas.
Pelo contrário. A formosura do corpo das atletas da vara costuma ser o bônus adicional para quem assiste à prova. Muitas também são exóticas, interessantes, sensuais e belas de rosto. É um dos atributos de que fazem uso para conquistar a plateia, que corresponde com entusiasmo ao convite para marcar com palmas ritmadas as passadas da atleta.
Muito antes de Yelena Isinbayeva exercitar seu talento dramático na pista, a acrobata de circo Emma George, da Austrália, doze vezes recordista mundial, já revelava o poder do glamour na modalidade. Foi eclipsada pela americana Stacy Dragila, coqueluche juvenil de rodeios e estrela maior do primeiro campeonato mundial de salto feminino da história. Na Olimpíada de Sidney, em 2000, o duelo entre Dragila e a escultural Tatiana Grigorieva ocorreu na tarde da prova mais aguardada dos Jogos, os 400 metros rasos, com o americano Michael Johnson e sua sapatilha dourada. Ainda assim a atenção da arquibancada permaneceu dividida. Explica-se: tanto Dragila como Grigorieva, russa naturalizada australiana, haviam posado nuas. A primeira para um calendário americano. A segunda, para uma edição histórica da revista de fotografia Black & White, contendo nus das mais belas atletas da seleção da Austrália.
Grigorieva conquistou a medalha de prata e ao final da competição resumiu a situação de forma direta: “Somos sensuais, ponto. Lembro que de início os diretores dos meetings achavam a nova modalidade entediante. Nos achavam chatas. Agora, com tantas atletas sexy saltando acima de 4,65 metros, eles correm atrás da gente.”
Fabiana tem mãos surpreendentemente pequenas para a carga de responsabilidade que lhes cabe. A parte da extremidade da vara a ser empunhada exige um preparo minucioso, assim como as palmas das duas mãos. Os apetrechos necessários são colocados no chão, ao lado da marca de largada da pista (cada atleta tem marca diferente). De início, a brasileira usava a clássica fita adesiva preta, com cola dos dois lados, e com ela envolvia a empunhadura até a espessura desejada. Mais recentemente passou a usar um esparadrapo branco, com cola só de um lado, sobre o qual adiciona uma segunda cola em forma de spray. Não gosta de se ver com as mãos manchadas de preto nas fotos de competição. “Parecem sujas, com graxa”, explica. Já Isinbayeva costuma se divertir com faces dark de sua persona. Escolheu um esmalte roxo escuro para dar o salto da rentrée de 2012. É a mão direita, sozinha, que faz girar a vara durante o salto, por isso precisa ter adesão máxima. A outra, salpicada apenas de magnésio para evitar a transpiração, deve deixar o giro da vara se completar.
São tantos os microdetalhes a ocupar a concentração do atleta que o sumiço de um reles esparadrapo, mesmo quando substituível pelo de alguma competidora, pode ser de mau augúrio. Imagine-se, então, a tempestade interior de Fabiana Murer, na noite da segunda-feira, 18 de agosto, no Ninho de Pássaro de Pequim, ao perceber que era uma de suas varas que havia desaparecido da pista.
Varas de salto para atletas de elite são peças únicas, confeccionadas por poucas fábricas de excelência. A mais renomada delas, a UCS Spirit, tem sede em Carson City, no estado de Nevada, nos Estados Unidos, e patrocina a saltadora brasileira fornecendo-lhe os artefatos de que precisa. A manufatura é quase artesanal e de complexidade comparável à execução do salto. Embora haja atletas de ponta que usam varas de fibra de carbono, mais leves e de envergadura mais rápida, Fabiana e todos os comandados por Elson usam somente varas de fibra de vidro. São compostas por três “mantas” que vão sendo enroladas em torno de uma peça central – ora em sentido longitudinal, ora em sentido radial, para potencializar a rigidez e minimizar o desgaste. Diferem no tamanho, flexibilidade e comprimento, multiplicando o número de variáveis.
A função básica de toda vara é absorver o máximo de energia do atleta durante a flexão e devolvê-la por inteiro ao se retesar, para maior impulso ao salto. Existe até uma equação de potência cinética e energia potencial para calcular qual a altura máxima que um atleta poderia atingir se fosse capaz de saltar em condições ideais. Além disso, todas as varas de fibra de vidro saem de fábrica com uma “barriga” natural, de consistência e densidade diferente do resto, que define para qual lado a vara se curvará com maior eficiência. No início de toda corrida, quem salta mantém a “barriga” virada para o chão. No momento do encaixe, o atleta gira a vara para que ela comece a se envergar com o seu peso.
Fabiana e Elson só descobriram há alguns anos que uma vara de carbono é tão diferente de uma de fibra de vidro quanto um piano Steinway é de um Yamaha. Um concorrente da UCS ofereceu enviar um lote de cinco varas de carbono saídas do forno para a brasileira, caso ela se comprometesse a usá-las em competição. “Não aceitei. Sou bem fiel às coisas”, comentou a atleta.
Quando viaja para competir, Fabiana Murer não leva varas de treino. Inversamente, jamais treina com alguma do lote de competição, exceto quando uma viagem se estende por períodos de treino. Seja como for, as varas da brasileira sempre ostentam as iniciais FB no punho, com o índice de flexibilidade anotado logo abaixo. Sem falar no inevitável patchwork de esparadrapos que torna cada vara de identificação fácil a seu dono.
Na noite fatídica em que perdeu o norte em Pequim, Fabiana lembra ter notado, ao final do aquecimento, que havia apenas nove varas no seu tubo. “Deixa pra lá”, pensou, “deve ser engano.” Estava certa, mas cometeu o engano fatal de “achar”. No início da prova, sentou ao lado da pista e aguardou a vez de fazer o primeiro salto. Usaria uma vara “vinte e um ponto zero” (21 centímetros de flexibilidade), de 4,30 metros de comprimento, pouco dura. Passou fácil. Para a etapa seguinte, pensou em usar uma vara de flexibilidade igual, porém um pouco mais longa (4,45 metros). Não a encontrou.
Após as eliminatórias da véspera, a organização olímpica separara os tubos das atletas finalistas das que não haviam se classificado. As primeiras ficaram no depósito do estádio, para serem trazidas de volta à pista na noite da final. As segundas foram direcionadas para a vila dos atletas. Foi nessa separação que se deu o extravio acidental.
De início, Fabiana estava serena. Como restavam outras onze atletas na disputa, cada uma com direito a fazer três tentativas, lhe pareceu que havia tempo. Em inglês, alertou o chinês encarregado das varas para o sumiço da sua e pediu que ele retornasse ao depósito para procurá-la. A vara certamente estaria lá. Como o chinês não se moveu, permanecendo no seu posto de campo, a calmaria da brasileira foi ruindo. Dirigiu-se à mesa de arbitragem, solicitou em vão que alguém ordenasse uma busca no depósito, mas só recebeu palavras de consolo. Foi então que teve seu rompante de descontrole: entrou na pista onde a atleta chinesa Gao Shying se preparava para fazer uma terceira e última tentativa e se plantou no meio do caminho, tal qual o chinês que encarou o avanço dos tanques na Praça da Paz Celestial. “Impedi a chinesa de saltar. Ninguém entendia nada. Achei que eu fosse ser linchada”, rememora hoje. A chinesa Gao ficou em último lugar na prova.
Da arquibancada, Elson percebeu o esquisito, saiu em disparada até o depósito, chacoalhou em vão todos os tubos que encontrou. Nada da vara. Ao retornar à arquibancada, decidiu que sua atleta precisava saltar, fosse como fosse. Instruiu-a para não tentar saltar 4,65 metros, pois não teria a vara adequada, e tentar direto os 4,85 com uma de suas varas mais duras.
“Iniciei o salto sem pensar em nada”, prossegue Fabiana. “Revendo hoje a sequência do segundo salto, vejo que errei meu tempo de entrada. No cômputo final, acabei em 10º lugar e deixei Pequim com a sensação de ter sido roubada da chance de uma medalha. Por outro lado, entendo que, para os organizadores, interromper uma prova de imensa visibilidade, da qual participava uma megaestrela, apenas pelo sumiço da vara de uma brasileirinha… Sem chance.”
Ao término da competição, com todas as varas devolvidas ao depósito da Vila Olímpica, Elson percebeu um funcionário chinês fotografando uma vara solta. “Era a minha, isolada e solitária. As outras estavam em seus respectivos tubos. Uso essa vara até hoje”, conta Fabiana, sem emoção. Na época, contudo, prometeu: “Nunca mais volto à China.”
“Não percebi nada”, comentou, também à época, Yelena Isinbayeva. Nem poderia. Naquela mesma noite úmida e acachapante de Pequim, Yelena estava há horas estatelada no gramado da pista, com um boné a lhe tapar os olhos, deixando que suas competidoras se esfalfassem nas tentativas de galgar alturas cada vez maiores. Ela havia saltado a marca dos 4,60 metros, se deu por temporariamente satisfeita e parecia estar tirando uma soneca sob uma manta que trouxera da Vila Olímpica. O desinteresse estratégico pelo que ocorria à sua volta chamava mais atenção dos fotógrafos do que o desenrolar das competições no estádio.
As provas de salto com vara, além de atléticas, são também um permanente exercício de estratégia e paciência. A cada nova rodada, o sarrafo é levantado em alguns centímetros (20cm de início, depois 10cm, 5cm, e menos ainda à medida que o ar vai ficando mais rarefeito). Dependendo da autoconfiança do atleta, ele pode deixar de saltar várias marcas e mirar num patamar mais alto, para não fazer esforço desnecessário. Como cada competidor pode fazer três tentativas por marca, o evento todo costuma ser longo. Fabiana se lembra de um Pan-Americano no qual deu seu primeiro salto quando a competição já durava duas horas e meia. A prova toda levou quatro horas e meia.
Ao fim daquela noite de glória em Pequim, do plantel de doze finalistas na disputa pelo ouro restava apenas, além Yelena Isinbayeva, Jenn Stuczynski – hoje Jenn Suhr, nome de casada com o qual competirá em Londres. Na primeira tentativa de saltar 4,85 metros, a americana falhou. Na segunda, também. Na terceira, diante do ronco que emergiu do Ninho de Pássaro sinalizando que Jenn Stuczynski havia fracassado, Yelena se dignou a levantar uma nesga do cobertor e foi ver o que era. Acabara de conquistar a medalha de ouro, virtualmente sem competir.
Ela poderia ter ido embora, com o título de bicampeã olímpica. Mas seria sem graça. Pior, sem drama. E Yelena Isinbayeva aprecia uma cena. Primeiro se desembrulhou da manta, sorriu para as arquibancadas, mandou beijos e acenou. Depois retirou lentamente o agasalho, calçou sapatilhas cor de turquesa e preparou-se para competir. Contra ela mesma, como gosta, e com um olho no 24º recorde mundial de sua carreira. Perante um público em delírio, ela atingiu a impactante altura de 5,05 metros.
Dois meses antes, ao obter o índice para integrar a seleção dos Estados Unidos, Stuczynski achara interessante ser boquirrota. “Está na hora de darmos um pontapé no traseiro russo”, proclamou. O troco veio na pista e a resposta na declaração após a vitória: “Antes de mais nada, ela deve me respeitar”, disse a russa, pronunciando lentamente cada palavra. “E ela precisa aprender qual o seu lugar. Agora ela sabe qual é.” Assunto liquidado.
Quatro anos se passaram desde o fiasco de Fabiana e o triunfo de Yelena em Pequim. Além da tribo de saltadoras já experimentadas, Holly Bleasdale – uma inglesinha de insolentes 20 anos – fincará sua vara diante da torcida da casa. Ela se interessou pelo salto há menos de cinco anos e sua melhor marca até agora (4,70m) pouco tem para impressionar as veteranas. Mas sangue novo sempre desarruma um pouco o coreto. A cubana Yarisley Silva, de resultados ainda modestos mas suficientes para derrotar Fabiana nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara (2011) e no GP de Atletismo do mês passado, também quer se sentar à mesa.
É sobretudo a veterana Jenn Suhr que haverá de querer se medir com quem a humilhou em 2008. A americana do infeliz pontapé no traseiro da russa, precursor do pontapé que o belga Jérôme Valcke daria no Brasil da Copa, ocupou no ano passado o primeiro lugar no ranking da Federação Internacional de Atletismo Amador. Sua melhor marca, alcançada em 2008 – 4,92 metros –, a coloca num patamar altamente competitivo para Londres.
Todas elas devem ter prestado atenção no anúncio feito por Isinbayeva, dois meses atrás, de que se aposentaria ao final da temporada de 2014. “Começo a achar difíceis os meus treinos, e é claro que a cada ano o meu corpo envelhece um pouco mais”, disse a atleta. Antes que as adversárias pudessem se regozijar com a perspectiva de a Terra algum dia girar sem a sombra da russa cruzando o sarrafo, a própria Yelena tratou de voltar ao seu tom cortante: “A título de aquecimento, devo disputar duas provas antes da Olimpíada. Mas em Londres minha principal adversária serei eu mesma. Sei exatamente qual altura consigo alcançar. Também sei que esta marca é quase inacessível para minhas rivais.”
Na véspera do último Réveillon, às quatro e meia de uma tarde chuvosa, Fabiana Murer, Elson Miranda e seu grupo de comandados – entre os quais Thiago Braz, que aos 16 anos foi medalhista de prata nos Jogos Olímpicos da Juventude de Cingapura, em 2010 – dividiam um espaço mínimo, coberto com telhas de zinco. O chão de cimento envelhecido machucava as mãos. Era ali que o grupo improvisava exercícios de peso, flexibilidade, força e resistência.
“É duro, a gente aqui quase sozinho”, constatou Elson, mais para si. O treino de Fabiana rendera pouco naquela tarde. “Não estou aguentando mais. Faço para cumprir”, comentou a atleta, num fiapo de voz. Elson confidenciou que uma única vez a atleta lhe perguntou qual a utilidade de continuar treinando se ela sempre encontraria a muralha Yelena Isinbayeva pela frente. “Para você algum dia saltar mais alto que ela”, respondeu o marido. E assim foi, em 2010 e 2011. Em 2012 começaria nova escalada.
A diferença, para os atletas brasileiros que se iniciam agora, é que o surrado chiqueirinho que por um bom tempo serviu de área provisória de treino pôde ser aposentado. Com três meses de atraso em relação ao plano original, foi inaugurado no início de maio o tão aguardado Centro de Treinamento do Clube de Atletismo BM&FBovespa, em São Caetano, na Grande São Paulo. Primeiro complexo integrado do Brasil com ginásio indoor, pista ao ar livre e uma sólida estrutura de atendimento multidisciplinar ao atleta, o CT consumiu 20 milhões de reais da iniciativa privada para vir a existir. A Prefeitura de São Caetano do Sul entrou com o gigantesco terreno, em comodato por quinze anos. Nike e Pão de Açúcar deram apoio. Mas foi a Bm&fBovespa que arregaçou as mangas sozinha, sem um centavo federal, estadual ou municipal. Empreendimento desse porte, em que todos os equipamentos do ginásio, musculação e fisioterapia não foram comprados por engravatados de gabinetes, mas escolhidos pelos integrantes das comissões técnica e médica do clube, mereceria vivas do governo. Mas não veio ninguém de Brasília.
As festividades da inauguração iam de vento em popa, com um formigueiro de atletas maravilhados circulando pelas instalações. Nas paredes externas do CT, enormes painéis tridimensionais retratavam as estrelas patrocinadas pelo clube, a começar por Fabiana Murer, que estrearia a pista indoor de salto com vara. Os discursos se sucediam, os agradecimentos se encavalavam, o comportado coquetel começava a avançar manhã adentro quando se ouviu o ronco de um helicóptero.
Quem seria a autoridade? O ministro dos Esportes, marcando presença em ano olímpico? Cinco dias antes o diretor- presidente da BM&F, Edemir Pinto, telefonara para Brasília para insistir na importância da vinda do ministro. Mas a ligação caiu, ninguém de Brasília retornou a chamada e Aldo Rebelo, naquela mesma manhã, tinha compromisso em Londres. Seria então o seu vice-ministro ou algum representante do Programa Brasil no Esporte de Alto Rendimento? Não. Quem pousou do céu para um rasante no empreendimento do amigo da casa, do esporte e de Edemir foi o árbitro aposentado e comentarista da TV Globo Arnaldo Cezar Coelho. De Brasília, sequer um parabéns.
Faltam quatro anos para a Rio-2016.