A dúvida, a falha
Um breve concerto, a uma só voz, inspirado em cantores e pianista
Gastão Cruz | Edição 32, Maio 2009
Gastão Cruz estreou em 1961 com A Morte Percutiva. Hoje, com duas dezenas de livros publicados, abarcando antologias e obras reunidas, encontra-se entre os grandes poetas surgidos naquele que é considerado o “Século de Ouro” da poesia portuguesa.
Essa série de poemas inéditos é uma espécie de breve concerto, a uma só voz, sobre vozes e concertistas. Seus versos não se ocupam das composições (como acontece em Arte da Música, de outro grande poeta português, Jorge de Sena) e tampouco dos compositores. Assim, em vez de se voltarem para os mestres imortais – Mozart, Bach ou Beethoven – e suas obras, os poemas vão buscar personagens bem mais próximos de nós: os intérpretes. E, com eles, entram em cena a dúvida, o esforço, a falha, o gesto cotidiano, a finitude, marcas da condição terrena, mas que não impedem o salto para os vastos domínios da expressão e da beleza. É essa natureza dual – habitar um plano “baixo” e poder alcançar as esferas mais “altas” – que define “os grandes artesãos”, como se lê em “Glenn Gould”. Os poemas encerram, portanto, um conjunto de poéticas: modos de entender, de fazer, habilidades, experiências e idiossincrasias. Estamos frente ao que se poderia definir tão-somente como o empenho – ou o trabalho – para se chegar a um determinado fim: a música, apresentada não como entidade abstrata, mas no contexto de sua execução. É aí que se dá o salto: esse ofício guarda a dimensão erótica de nos poder levar – aquele que toca, aquele que canta e quem os ouve – a um gozo pleno, quando os estados de alma são um prodígio do corpo.
Onde se lê música, pode-se ler poesia.
Eucanaã Ferraz
UN BALLO IN MASCHERA
(Montserrat Caballé, ROH Covent Garden, 2 de janeiro de 1981)
Pouco tempo depois de estar no palco
quem sai? Pelo amor à personagem
torturada, ou quem sente a ameaça
de qualquer mal ao canto vulnerável?
(Madame Caballé is unwell veio
dizer alguém à boca de
cena interrompido o primeiro acto)
O amor e o canto são metades
iguais do ser da arte confundíveis
por quem o canto escuta não porém
pelo cantor, digo, também por
ele: a voz às vezes com a dor confunde
a sua natureza, então no palco fica
uma súbita pausa um som de morte
a incerteza do que viver seja
HOROWITZ NO FESTIVAL HALL
Talvez ele só volte
daqui a outros vinte e cinco anos,
disse na bilheteira o vendedor;
não precisava de ser convencido
e é claro que paguei as vinte libras,
quanto custava ter a sensação
de a música ser pedra sob a onda das mãos
ALGUNS PIANISTAS
Emil Gilels tocava
como se detivesse fogo ou água:
em torno dele a luz formava um laço
de ouro líquido jorrando do teclado
A cabeça potente assemelhava-se
à do autor do som que se expandia
como de ouro fundido um
largo rio
Sviatoslav Richter imitava
o rigor da poesia ou da leitura
que dela fazem os que lêem nela
do universo a explosão futura:
em cada nota morre o universo
tal como em cada sílaba
da poesia, por isso ele tocava
em sala escura
e uma pequena luz mostrava a pauta
somente, para que não se perdesse
nenhum quinto de som, sua vogal,
e, ele e o público, nada os distraísse
Arturo Benedetti Michelangeli
vinha segundo a lenda acompanhado
de dois pianos e não agradecia
aplausos: só a música
e os autores dela deveriam
merecer o aplauso que era a escuta
apenas, uma arte tão difícil
e rara de que tanto necessita
também a poesia; a perfeição
parecia o limite inatingível,
por vezes atingível mito fixo
num céu longínquo como a arquetípica
imagem do pianista, este ou outro
dos que cantei ou já cantara quando
os vira como exemplos do domínio
dos braços e da mente sobre o rio,
em vertigem,
do som feito sentido,
assim sobre o teclado as evidentes
mãos de Horowitz
ANDREA CHÉNIER
(Plácido Domingo, ROH Covent Garden, 27 de abril de 1985)
O cantor sai de cena logo após
o começo do canto depois volta
e recomeça a ária; por alguns
minutos foi preciso acreditar
que a música findara ou duvidar
de que continuasse, como vaga
roubada pelo mar indiferente
em impossível suspensão parada
O canto pára às vezes indevida-
mente, e o cantor sai do palco inóspito
temeroso talvez da própria voz
um castelo de areia como a escrita
mas volta sempre à ânsia interrompida
tal como a vaga volta à praia lisa
GLENN GOULD
Depois de sete anos recolheu-se
à comedida sombra dos estúdios;
não queria exceder o som exacto
que devia criar, o seu volume:
só assim pronunciaria
convictamente, sobre o que saía
das teclas percutidas,
como se já cantasse, soltas sílabas;
exemplo para poetas poderia
ser o deste pianista ao recusar-se
a forçar o seu som até que enchesse
enormes salas (ele próprio o disse):
os grandes artesãos sempre algo ensinam
ao verso como outrora manolete
a joão cabral de melo neto