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A escolha de Joaquim
A versão do médico acusado de manipular a fila dos transplantes para beneficiar ricos e poderosos
Daniela Pinheiro | Edição 25, Outubro 2008
Os latidos do casal de cães pastores do médico Joaquim Ribeiro Filho o acordaram às quatro horas da madrugada de 30 de julho. Ele levantou, desceu as escadas da varanda, examinou a rua. Apesar de os cachorros continuarem inquietos, a vizinhança do bairro de Laranjeiras estava tranqüila. Mandou os animais se calarem e voltou a dormir. Duas horas depois, a campainha tocou. Doze agentes da Polícia Federal, vestidos com coletes e bonés pretos, armados com fuzis e revólveres, entraram na casa por força de um mandado de busca e apreensão. O filho do médico, de 18 anos, acordou assustado e viu o pai de pijama no meio da sala. Os policiais abriam gavetas, armários e perguntavam sobre computadores e um eventual cofre.
Suspeito de fraudar a lista de pacientes do Rio de Janeiro à espera de um fígado, Joaquim Ribeiro Filho vinha sendo investigado pela Polícia Federal há cinco anos. A operação, batizada de Fura-Fila, incluiu 150 interrogatórios, escutas telefônicas e investigações em Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo, o que resultou num inquérito de 25 volumes e mais de 5 mil páginas.
Segundo a apuração da polícia, o médico e a equipe por ele chefiada, responsável pela maior parte dos transplantes de fígado no Rio, classificavam órgãos sadios como “marginais” – os que não são 100% saudáveis – para burlar a ordem da lista nacional de transplantes, privilegiando determinados pacientes. Se o fígado é marginal, ele pode ser implantado em doentes sem prioridade na fila, pois quem está no topo precisa de um órgão em melhor estado. O relatório da PF afirma que Ribeiro fez cobranças ilegais a inscritos para passá-los à frente da lista.
Enquanto policiais recolhiam agendas, documentos e papéis, Ribeiro teve sangue-frio para tomar o café-da-manhã. Quando terminou, os agentes decretaram sua prisão preventiva por obstrução à Justiça, por ter orientado doze integrantes de sua equipe a se valerem da assistência jurídica de seu irmão, o advogado Paulo de Freitas Ribeiro.
Joaquim Ribeiro pediu licença, trocou de roupa e disse ao filho para se acalmar. Ao entrar no camburão, sem algemas e com os dedos espontaneamente entrelaçados, ele viu que a frente de sua casa estava tomada por vans, caminhonetes e antenas. Prevenidos pela Polícia Federal, emissoras de rádio, televisão e os jornais haviam mandado seus repórteres para a casa do médico antes do amanhecer. “Era uma operação de guerra”, ele contou numa tarde recente, na sala de sua casa, uma construção do século XIX com ares de fazenda nas imediações do palácio do Governo.
A prisão de Ribeiro reverberou com alarde. Não só por envolver um dos mais renomados especialistas da área, mas por expor a vulnerabilidade da fila dos transplantes, concebida para funcionar sem distinção de idade, raça e renda dos pacientes. Os beneficiados pela manipulação, dizia a polícia, eram pessoas ricas, influentes ou com acesso a governantes.
Na denúncia do Ministério Público Federal, o médico é acusado de facilitar o transplante de três doentes: o empresário Carlos Augusto Arraes, filho do falecido governador pernambucano Miguel Arraes e irmão de Guel Arraes, diretor da Rede Globo; Jaime Ariston, irmão de um secretário do governador Anthony Garotinho, quando o próprio Ribeiro ocupava um cargo de confiança no governo; e o corretor imobiliário Frederico Sattelmeyer, cuja cirurgia foi impedida no último instante pela Central Nacional de Transplantes. O procurador da República Marcello Miller denunciou-o por peculato (crime contra a administração pública) e falsidade ideológica.
Ribeiro foi levado para o presídio de Bangu 8, onde dividiu a cela com o banqueiro Salvatore Cacciola e com o deputado estadual Natalino Guimarães e seu irmão, o vereador Jerominho, ambos acusados de comandar milícias e grupos de extermínio. Alguns presos, que haviam acompanhado o caso pela televisão, lhe pediram para ter os órgãos retirados e vendidos no mercado negro. “Era uma situação de filme de psicopata”, contou.
O médico recebeu várias manifestações de apoio. Um blog contando os detalhes do caso trazia mais de 100 depoimentos favoráveis a ele, além de uma lista de quase 500 assinaturas contra as acusações. “Ela tem seis juízes federais assinando”, ressaltou Ribeiro. Houve uma missa em sua homenagem e um ato de desagravo no estacionamento do hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, onde ele trabalha. O Grupo Tortura Nunca Mais divulgou uma nota de repúdio à “demonstração de flagrante arbítrio e desrespeito à honra e à dignidade” do médico. Colunistas e juristas publicaram artigos em sua defesa.
Aos 54 anos, Ribeiro é simpático e falante. Tem uma barba grisalha cheia, usa óculos e, eventualmente, o botão de sua camisa fica aberto na altura do umbigo. É o segundo dos dez filhos de um casal nordestino que se mudou para o Rio no começo da década de 50. Uma de suas irmãs, torturada pela ditadura militar, viveu anos na clandestinidade, e sua mãe ajudou a fundar o PT fluminense. Ribeiro se formou pela UFRJ, da qual se tornou professor anos mais tarde, e fez especialização em Paris, onde viveu quatro anos com a mulher e o casal de filhos.
No início dos anos 90, ele montou a primeira equipe de transplantes de fígado do estado no hospital da UFRJ, conhecido como Fundão. Com o passar do tempo, ela se firmou como uma das mais eficazes do país. Em 1998, por exemplo, seus médicos fizeram doze transplantes. Dois anos depois, quarenta. A boa fase durou até 2001, quando houve uma cisão no grupo. “Identifiquei algumas pessoas da minha equipe que estavam fazendo cobranças indevidas por cirurgias e fiz duas denúncias”, disse Ribeiro. “Está tudo nos autos do mesmo processo em que sou acusado, só que esse ponto nunca foi investigado. Essas pessoas usavam meu nome e cobravam dinheiro dos pacientes para os inscreverem na fila. Descobri porque, por coincidência, um dos achacados era primo de um amigo meu.”
Os médicos aos quais ele se refere – Marcelo de Oliveira, Lúcio Moreira e Alexandre da Silva – desligaram-se do grupo e formaram outra equipe de transplantes no Hospital Geral de Bonsucesso. Ribeiro nunca mais falou com os ex-colegas e a disputa entre os dois clãs azedou cada vez mais. (Marcelo de Oliveira disse que nem ele nem seus dois colegas dariam entrevista sobre o ex-chefe.)
Ribeiro acredita que seus problemas começaram quando encabeçou um protesto de médicos que se recusavam a prescrever um medicamento genérico contra rejeição de órgãos transplantados, fabricado pelo laboratório Abbott. Um procurador os acusou de estar “a soldo do capital estrangeiro”. Denunciados, Ribeiro e os colegas foram absolvidos, mas, conforme disse ele, ficou com a fama no Ministério Público de ser uma pessoa complicada.
Em julho de 2003, o secretário de Saúde Gilson Catarino convidou Joaquim Ribeiro para dirigir o Rio Transplante, responsável pela organização da fila de pacientes à espera de um órgão. Ele passou então a dividir o tempo entre as aulas na UFRJ, cirurgias no Fundão e na clínica particular São Vicente, na Gávea, e a chefia do programa. (Coincidentemente, ele cruzou com Gilson Catarino em Bangu 8, onde o ex-secretário da Saúde ficou preso 45 dias, acusado de chefiar uma quadrilha que teria desviado 70 milhões de reais dos cofres estaduais.)
Foi apenas dois dias depois de ter tomado posse no Rio Transplante que, segundo o Ministério Público, ele teria cometido o primeiro delito: a cirurgia de Jaime Ariston Sobrinho, irmão do então secretário estadual de Transportes de Garotinho. O paciente era o 32º da lista e morreu um mês depois da operação. O médico Lúcio Moreira, seu desafeto do Hospital de Bonsucesso, afirma no processo que o transplante de Ariston havia sido negado pelo antecessor de Ribeiro, Roberto Chabo. E que, em represália à recusa, Chabo foi afastado do cargo.
Ribeiro se levantou para atender o celular. Uma decisão judicial o proibia de se comunicar com testemunhas do caso, e o interlocutor queria passar a ligação para uma delas. “Não posso falar com ele”, respondeu, desligando em seguida. Ao se reacomodar na poltrona, deu sua versão sobre o caso Ariston: “O órgão parecia normal. Por isso, internamos os dois primeiros pacientes da fila. Mas, durante a cirurgia de retirada do fígado, viu-se que ele tinha bordas rombas e aspecto doentio, embora não tivesse esteatose hepática, o excesso de gordura. Como o primeiro paciente não quis o órgão comprometido, o segundo estava gripado, e o tempo estava correndo, chamamos o primeiro da lista que aceitava um fígado marginal. Era o 32º da fila, o Jaime Ariston.”
Duas semanas depois do transplante, Ribeiro recebeu um pedido de explicações do Ministério Público. “Achei normal a procuradora perguntar e dei todas as respostas solicitadas”, disse. “Até porque para mim era óbvio: antes do Ariston, operamos, fora da ordem da fila, um favelado e um crupiê do hotel Quitandinha, de Petrópolis. Se fosse privilegiar o Ariston, para que eu ia gastar fígados com esses outros dois?”
Passados alguns dias, a equipe de Ribeiro fazia a captação de um fígado no Hospital de Bonsucesso quando uma das cirurgiãs telefonou para lhe dizer que o órgão estava imprestável. “Não vamos usá-lo, então”, disse ele à médica. “Mas mande-o para o exame patológico, para confirmarmos o mau estado.” Os três ex-pupilos de Ribeiro invadiram a sala de cirurgia. Disseram que o fígado estava em boas condições e deveria ficar no Hospital de Bonsucesso, onde seria aproveitado. Um dos -médicos, conta Ribeiro, telefonou e ameaçou processá-lo, dizendo que estaria inutilizando um fígado em boas condições. “Respon-di que quem mandava lá era eu, que o chefe do Rio Transplante era eu, que era para o fígado ser retirado, ir para a patologia e pronto”, lembrou Ribeiro.
Lúcio Moreira, um dos que entrou na sala, afirmou em seu depoimento que ele e os colegas pediram uma autorização judicial para acompanhar as retiradas de órgãos feitas pelo rival para “não serem enganados”. Ribeiro, segundo ele, “dizia que um órgão bom era ruim e os negava para os hospitais públicos, mas ficava com ele e o implantava em pacientes da clínica privada, em troca de dinheiro, e também de prestígio”.
Moreira afirmou ainda que não tornou pública a suposta corrupção porque seria o próprio Ribeiro – por ser o chefe do Rio Transplante, da equipe do Fundão e ainda coordenador da câmara técnica do fígado – quem julgaria eventuais denúncias. “Vários atos dele são acobertados pela sua equipe, que se sente dependente e sem alternativa”, afirmou.
A procuradora Mônica Campos de Ré entrou com uma ação de improbidade administrativa na Justiça Federal, na qual defendeu o afastamento de Ribeiro do Rio Transplante. O primeiro laudo, feito pelo Hospital de Bonsucesso, atestou que o fígado estava livre de esteatose, o excesso de gordura, e podia ser transplantado. Um segundo laudo, preparado pelo Fundão, detectou microamartomas biliares, lesão pré-maligna com grande potencial de desenvolvimento de câncer no paciente. “Ou seja, era uma coisa muito pior do que ter esteatose”, disse Ribeiro. “Quem lesse atentamente o laudo de Bonsucesso ia ver que isso já estava explicado lá. Mas a ânsia deles em me incriminar era tão grande que se restringiram à esteatose.”
O Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde, o Denasus, também investigou tanto o caso de Bonsucesso como o de Jaime Ariston. A auditoria concluiu que o fígado implantado em Ariston, retirado de um homem de 40 anos e 80 quilos, deveria ter sido encaminhado a uma criança de 2 anos de idade, que estava na frente na lista.
Joaquim Ribeiro deu a seguinte explicação: “O auditor disse que deveríamos ter cortado um pedaço do fígado e colocado na criança, o que foi feito pelo Hospital de Bonsucesso dias depois. Só que o destino dessa criança não foi acompanhado. Sabe por quê? Porque ela morreu no dia seguinte à operação. Não existe fazer um procedimento assim.”
A auditoria não fez um parecer conclusivo a respeito da disputa pelo fígado em Bonsucesso. “Não tem uma linha sobre o caso porque a situação é desmoralizante, mostra a irresponsabilidade e a ânsia de me atingirem”, disse o médico.
O transplante de Jaime Ariston foi levado ao Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro. Em sua defesa, Ribeiro anexou ao processo fotos da procuradora Mônica de Ré abraçada ao diretor do Hospital de Bonsucesso, durante um seminário sobre transplantes. Dias depois, ela se afastou do caso por razões de “foro íntimo”. Após dois anos de depoimentos e análises, as acusações a Ribeiro foram julgadas improcedentes por 21 votos a zero. Ribeiro saiu do julgamento vitorioso, mas com a certeza de que a sua relação com o Ministério Público tinha se deteriorado.
No dia da prisão, a imprensa atribuiu à Polícia Federal a informação de que Ribeiro teria recebido 200 mil reais para burlar a lista e fazer um transplante. A propina, porém, não consta da denúncia feita pelo procurador Marcello Miller. “Se isso tivesse algum cabimento, o procurador deixaria o dado de fora?”, perguntou-me Ribeiro, enquanto a empregada colocava a mesa para o lanche na sala contígua. “É mais um exemplo de como a PF atua hoje.” Os 200 mil reais aparecem apenas uma vez no processo, em uma conversa gravada entre um médico da equipe de Ribeiro, Rodrigo Martinez, e uma mulher não identificada. A frase grampeada é: “Tem um safadão aí que disse que eles cobram 200 mil reais, mas eu acho que é mais.”
Ribeiro sabia que estava sendo investigado. E, apesar de ter enviado duas petições pedindo para depor no processo, a polícia não quis ouvi-lo, mesmo tendo interrogado todos os médicos de sua equipe, pacientes e várias outras testemunhas. A seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil emitiu uma nota dizendo que a PF cometeu uma falta que poderia provocar a anulação do processo. “Ele foi ouvido em maio de 2005 sobre o caso Ariston, não precisava falar de novo”, disse o procurador Marcello Miller.
A principal motivação das denúncias, na avaliação de Ribeiro, é a sua contenda com o secretário estadual de Saúde, Sérgio Cortes. Assim que assumiu o Rio Transplante, ele demitiu os coordenadores das câmaras técnicas. Um deles era Cortes. Quatro anos depois, o demitido foi nomeado secretário de Saúde. “Qual foi a primeira coisa que o Cortes fez?”, perguntou, ajeitando o ventilador da sala. Ribeiro foi exonerado do programa, que contabilizava estatísticas recordes de captação de órgãos. Naquele momento, o índice era de 14 para cada 1 milhão de habitantes, comparável ao Canadá.
“Ninguém nos demitiu, temos um documento pedindo nosso afastamento da função, que nem era remunerada”, disse-me Sérgio Cortes. “Não quero polarizar porque realmente não tenho nada contra o dr. Joaquim. Ele deve ser um bom médico, competente. Agora, tenho contra quem comete desvios, faz coisas erradas. Se eu o tivesse perseguido, a exoneração dele teria saído no dia seguinte à minha posse. E ela se deu dois meses depois. Além do mais, eu te-ria que ser muito poderoso para manipular a Justiça, a Polícia Federal e o Denasus, obrigando-os a apontar tudo o que foi apurado contra o doutor e está no relatório deles.”
A cada ano são feitos 15 mil transplantes de órgãos no Brasil. A fila de espera é de 70 mil pessoas. Estima-se que cerca de 30% delas morram antes de ser operadas. As razões são a baixa doação de órgãos – menor do que na Argentina e no Uruguai –, o desperdício e a falta de verbas. Calcula-se que 400 fígados sejam jogados no lixo ao ano, por falta de estrutura na captação, transporte, armazenamento ou agenda para cirurgia. No final de setembro, o Ministério da Saúde anunciou o incremento anual de 60 milhões de reais nas verbas do Sistema Nacional de Transplantes. Também passará a ser possível consultar o andamento da lista pela internet.
Na tarde de 17 de julho do ano passado, a Central Nacional de Transplantes soube que havia um fígado disponível em Belo Horizonte. Como os hospitais credenciados de Minas Gerais estavam em greve, a prioridade nos transplantes passou para o Rio de Janeiro. Na mesma tarde, um avião da TAM caiu no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, matando 190 pessoas e provocando o colapso da malha aérea do país. Não havia possibilidade de transportar o fígado em um avião de carreira.
Segundo depoimento do plantonista da Central de Transplantes do Rio, Rafael Ferreira da Costa, antes mesmo de ter sido avisado da existência do fígado em Belo Horizonte, ele recebeu um telefonema de Joaquim Ribeiro. O médico lhe disse que sabia do órgão e tinha interesse em ficar com ele. Minutos depois, Rafael Costa foi avisado pela sede, em Brasília, que o fígado teria de ser retirado até meia-noite, senão perderia a validade. Quinze minutos depois, Ribeiro ligou de novo para dizer que conseguira um avião particular. O plantonista lhe falou que, pela ordem da lista, precisava oferecer o fígado primeiro ao Hospital de Bonsucesso. Assim o fez, e Bonsucesso informou que não tinha como buscar o órgão – que ficou com a equipe de Ribeiro.
Rafael Costa afirmou em juízo que o médico não mencionou o nome de Carlos Augusto Arraes ou a liminar que o paciente havia conseguido dois dias antes, que o colocava na dianteira da fila. Ribeiro teria lhe dito que o fígado iria para a paciente “Selma”, internada no Fundão. O médico diz que contou tudo a Rafael Costa. Nos autos, está provado que o médico informou à central mineira que o paciente era Arraes e ele tinha a liminar. No Rio, ficou a palavra do médico contra a do plantonista.
“Não havia como o Fundão pagar por um avião para ir buscar o fígado”, explicou Ribeiro. “Então, o oferecemos ao primeiro paciente que tinha recursos para financiar o transporte e que, por força da liminar, era o primeiro da lista.” Assim que começaram as negociações com a central, o médico avisou a família Arraes. Imediatamente, ela fretou um jatinho para ir buscar o órgão em Belo Horizonte. Naquela madrugada, Arraes foi operado na Clínica São Vicente. A cirurgia custou 78 mil reais.
Arraes tinha um tumor com mais de 5 centímetros, o que o impedia de ser inscrito na lista de transplantes. Ele já havia viajado para a Inglaterra, para a China e para os Estados Unidos e não conseguira ser operado. Em São Paulo, havia sido tratado pelo hepatologista Paulo Chap Chap, do Hospital Sírio-Libanês. Chap Chap disse à PF que se negou a operá-lo por seu caso não se enquadrar nas regras. O Ministério Público acusa Ribeiro de ter omitido o tumor e ter registrado o paciente apenas como portador de cirrose hepática, o que garantiria sua inscrição. Com base no laudo de Ribeiro, Arraes conseguiu a liminar, expedida pelo governo de Pernambuco, garantindo o primeiro lugar na lista.
Para o procurador Marcello Miller, há quatro pontos que configuram a burla à lei: tentativa de induzir ao erro o plantonista da central, quando afirmou que o fígado iria para outro paciente; o testemunho de Chap Chap; o fato de a liminar de Arraes, na sua interpretação, só ter validade em Pernambuco, e ter sido usada no Rio; e o depoimento do dono da empresa de táxi-aéreo que alugou o jatinho para a família Arraes, garantindo que a reserva do avião havia sido feita pela manhã. Miller acredita que Ribeiro e a família Arraes monitoravam a morte de algum provável doador, e estavam a postos para captar um fígado.
“Pelo raciocínio do procurador, eu promovi o acidente da TAM, eu fiz a greve dos hospitais mineiros e eu sabia da morte cerebral do paciente antes de ser divulgada – só para privilegiar o Arraes”, ironizou Ribeiro, que logo passou para a indignação. “A questão é: o fígado que foi para o Arraes iria para o lixo, entendeu? Li-xo! Não havia nenhuma equipe com estrutura para ir buscá-lo em Belo Horizonte. Não tinha avião, não tinha carro, nada. E a família Arraes tinha.” Pensou um pouco e prosseguiu: “A única coisa que eu quero nessa história é que alguma autoridade venha a público e assuma que era melhor o fígado ir para o lixo do que ir para o Arraes.”
Em uma tarde de setembro, a nova coordenadora do Rio Transplante, Hellen Miyamoto, que assumira o cargo um mês antes, respondeu ao repto de Ribeiro: “É evidente que é melhor implantar o fígado em alguém do que ele não ser aproveitado. Nesse caso, no entanto, não temos certeza de que o órgão iria para o lixo. Não sabemos se ele foi oferecido para todo mundo. O que consta é que o dr. Joaquim disse que iria buscar o fígado para o primeiro paciente do Fundão, e não para um particular. Com isso, o órgão deixou de ser oferecido a outras equipes. Pode ser que algum outro hospital pudesse ter dado um jeito de pegar o órgão.”
Hellen Miyamoto relativizou o fato de Ribeiro ter omitido o tumor de Arraes no registro de inscrição na fila. “Infelizmente, a central não conseguia discernir essas nuances”, ela disse. “Então, é possível encontrar vários casos de outros médicos que fizeram a mesma coisa. A partir de agora, vamos auditar cada um, o que vai impedir novos problemas.”
Já era noite quando Ribeiro me levou à porta de sua casa. “Isso aqui, olha, tinha carro de tevê e de jornal a perder de vista”, comentou apontando, para toda a extensão da rua. Um jornalista da Rede Record ligou para o celular dele. O médico disse que não podia dar declarações e desligou. “Só a Rede Record que faz matéria!”, protestou. “Eles fazem todo dia, só me esculhambando.” Perguntei se ele se considerava perseguido pela emissora. “Eu não, mas quem é o irmão do Carlos Augusto Arraes?”, respondeu. Como o irmão de Arraes é diretor da Rede Globo, a insinuação era de que haveria um empenho da Record para, indiretamente, atingir a emissora concorrente.
Quando as suspeitas sobre o transplante de Carlos Augusto Arraes vieram à tona, a família dele publicou cartas em jornais, distribuiu e-mails para amigos e parentes e convocou uma coletiva de imprensa. “Sentimos a necessidade de explicar o caso porque pesa sobre nós uma coisa moral”, disse-me o diretor Guel Arraes, em sua sala na Globo. “Era preciso esclarecer essas especulações em nome da história de nossa família, da memória de meu pai, que lutou contra os privilégios de poderosos.”
Guel Arraes contou que a família, de fato, se informou sobre os lugares onde costumava haver sobras de fígados, como Minas e Goiás. Também tinha pronto um plano de transporte, caso algum surgisse de última hora. “Telefonávamos para companhias de táxi-aéreo, para fazer orçamentos, e perguntávamos para médicos de vários Estados sobre as sobras”, disse. “Então, é possível que eu tenha ligado para a tal empresa de jatinhos cujo proprietário diz que reservamos o avião na manhã do acidente da TAM. Agora, jamais reservei o avião pela manhã. Isso não existe. O homem da companhia tem que provar o que está falando. Como eu ia saber que ia aparecer um órgão no fim do dia?”
O delegado responsável pela investigação, Giovani Celso Agnoletto, mandou em fevereiro um ofício com dez itens ao Ministério Público Federal afirmando sofrer pressões para interromper o trabalho. Segundo afirmou por escrito, ele foi chamado para uma reunião com o secretário de Saúde, Sérgio Cortes, e a então coordenadora do Rio Transplante, Ellen Barroso. No encontro, ele foi informado de que um assessor do ministro da Justiça, Tarso Genro, estava acompanhando o assunto. E que um assessor do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, pernambucano, estaria “fazendo gestões para abafar a história”.
Agnoletto relatou também que Cortes teve outro encontro para falar sobre o caso, dessa vez com o governador Sérgio Cabral e Guel Arraes. Na conversa, o diretor de televisão teria dito que os rumores sobre o transplante de seu irmão eram uma perseguição política cujos alvos eram os Arraes e a Globo. O delegado escreveu que a Globo “foi citada num documento confidencial do secretário Cortes, enviado ao governador, o qual o enviou à direção da emissora”. Agnoletto afirma, ainda, ter ouvido de Cortes que o “governador Sérgio Cabral está sofrendo uma pressão enorme da emissora para que nada seja feito contra o médico-alvo”, ou seja, Joaquim Ribeiro.
Sérgio Cortes confirmou ter se reunido “duas ou três vezes” com Agnoletto, a pedido do delegado, mas negou terem tratado de “qualquer assunto referente a interferências” na apuração do caso. “Não teve autoridade nenhuma se metendo nessa história”, disse o secretário de Saúde.
Guel Arraes admitiu que ele e seu irmão José Almino tiveram um encontro com Sérgio Cabral e Cortes “para esclarecer o episódio, e jamais para fazer pressão”. Um dos temas da conversa, segundo o diretor da Globo, foi a ajuda que a família Arraes poderia dar para aumentar a captação de órgãos no Rio, como a doação de ambulâncias. Em seu ofício ao Ministério Público, o delegado reproduziu frases quase literais de Guel Arraes. Essa transcrição levantou a suspeita de que uma das autoridades presentes à reunião, Cabral ou Cortes, tenha realmente pressionado Agnoletto.
Dois meses antes da cirurgia do irmão, Guel Arraes trocou e-mails com o então chefe do Rio Transplante, Walter Labanca. Em um deles, anexou os exames feitos por Carlos Augusto em Londres, e se despediu agradecendo “qualquer ajuda que possa nos dar”.
Em seu depoimento à Polícia Federal, Guel Arraes contou que o governador de Pernambuco, seu sobrinho Eduardo Campos, também telefonou para Labanca, “não na pessoa do político, mas de um familiar preocupado com o estado do tio”. A ajuda de Labanca foi apresentar a família Arraes a Joaquim Ribeiro. O médico e os Arraes se acertaram para a inscrição na fila. O registro de Carlos Augusto foi feito com a omissão do sobrenome famoso. À polícia, o paciente afirmou que pediu ao médico para esconder o sobrenome “para se proteger”. Carlos Augusto não é réu no processo porque o Ministério Público entendeu que ele lutava pelo “direito à vida”, garantido na Constituição.
Joaquim Ribeiro defende a tese de que um fígado marginal reage muito melhor num paciente que não esteja em estado grave. Na prática, isso significa mudar os critérios das filas dos candidatos a transplantes. Um fígado com cirrose, por exemplo, pode ser mais apropriado ao candidato de número 80, e não ao primeiro, se ele estiver com a saúde muito comprometida. Existe um componente subjetivo crucial nessa avaliação que, como defende Ribeiro, ficaria a cargo da equipe médica – e extravasaria o cumprimento da lista, como manda o Ministério da Saúde.
“Como posso obrigar alguém de 30 anos a receber um fígado de 80, só porque ele está na frente na fila?”, indagou Ribeiro, dessa vez no seu consultório em Botafogo. “Como posso obrigar um doente sem hepatite a receber um fígado com vírus C? Como posso colocar um fígado com esteatose em um paciente relativamente bem de saúde só porque ele está na frente? Em nenhum país desenvolvido funciona assim. Isso não é furar a fila.”
Desde 2006, a fila única nacional passou a ser organizada pelo índice Meld/Peld, adotado nos Estados Unidos. Por esse sistema, dá-se preferência aos pacientes em estado mais grave, e não aos inscritos há mais tempo, como ocorria no passado. A legislação brasileira é omissa na utilização e até mesmo na definição do que seja um órgão “marginal”. O que costuma ocorrer é a informalidade: pergunta-se aos pacientes se aceitam ou não receber um órgão comprometido. Outras equipes simplesmente se recusam a usar órgãos em mau estado.
O grupo de Ribeiro se reunia semanalmente para discutir quais pacientes concordavam em receber um fígado comprometido. Os que aceitavam, assinavam um termo se dizendo cientes dos riscos. Os que se negavam comunicavam oralmente a decisão aos médicos. A secretaria de Saúde de São Paulo orienta as equipes locais a agir da mesma maneira, ordenando aos médicos que preencham uma ficha complementar, indicando a decisão do doente.
Os médicos contra o sistema de opção argumentam que a inexistência de um documento com a negativa do paciente abre brechas para fraudes, já que torna possível inventar que alguém na dianteira da lista dispensou o fígado. Isso possibilita oferecê-lo a outro doente que esteja em posições inferiores. Nas novas medidas anunciadas pelo governo, a tese de Joaquim Ribeiro é acatada: só será preciso declarar quem aceita.
Um levantamento do Ministério da Saúde mostrou que, dos 59 operados pela equipe de Ribeiro entre 2005 e 2007, apenas treze estariam na primeira posição da lista. A equipe do Hospital de Bonsucesso também é citada por ter operado pacientes fora da ordem.
No seu gabinete, no centro do Rio, o procurador Marcello Miller comentou as diferenças entre um e outro ponto de vista, e as relacionou com as atitudes de Joaquim Ribeiro. “A mim não interessa se o critério da fila é certo ou errado, se tem que ser mudado ou não”, disse ele. “Não excluo até a motivação nobre dos que não querem desperdiçar os órgãos. O problema é que, ao fazer isso, eles transgridem a lei, e isso é crime. É estreito pensar que houve uma motivação axial para o dr. Joaquim e a sua equipe. Ah, ele queria dinheiro! Ah, ele queria prestígio! Não é simples assim. No caso deles, começou com uma atitude respaldada pela realidade do Rio, onde tudo é meio desorganizado, tem pouca fiscalização, onde a cultura da exceção é a regra. E assim eles foram ampliando a ação, sentindo-se donos da coisa. Quando se viu, eles estavam fazendo o que queriam com os fígados.”
Miller disse estar seguro das acusações. “Nunca denunciei com tanta prova, com tanta certeza”, disse. “Se o dr. Joaquim fosse um qualquer, certamente estaria preso, arrasado, mas é alguém com muita influência, com muitas relações”, afirmou. O procurador aludia ao fato de o irmão e advogado do médico, Paulo de Freitas Ribeiro, ter entre seus clientes, bancos, como o Fonte-Cindam, de Salvatore Cacciola, empresas de telefonia e a própria Globo.
Em 2003, o cirurgião Sergio Mies e dois colegas implantaram um fígado marginal em uma paciente no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ela morreu seis meses depois. A família disse que o órgão tinha sido recusado por vários hospitais e culpou a equipe de Mies pela morte. Os três respondem a um processo por homicídio doloso. Mies argumentou na sua defesa que o fígado foi recusado por equipes que não o examinaram diretamente, como ele e seus colegas fizeram. Quer dizer: um hospital recusou o órgão pelo telefone, e os outros o imitaram.
Segundo Sergio Mies, o fígado era perfeito e a paciente morreu por outras causas. O episódio reforçou sua posição a respeito da autonomia dos médicos na decisão de escolher um órgão ou um paciente a ser transplantado. “Não tem que escolher”, disse. “Como médico, eu não quero, não posso e não mereço ter a responsabilidade de decidir quem vai viver e quem vai morrer. Porque se tem um que recebe, tem um que não recebe.” Para ele, o procedimento correto seria deixar o poder de decisão para as câmaras técnicas, que seriam a instância oficial.
Nos Estados Unidos e em vários países europeus, as equipes médicas têm mais autonomia para decidir a ordem da fila e o estado do órgão a ser transplantado. “Mas é uma falácia querer comparar o que acontece lá fora com a realidade brasileira”, alertou Mies. “Não se pode querer que um país no estágio de desenvolvimento do Brasil tenha o mesmo cuidado ético, moral e legal que os Estados Unidos ou a Inglaterra, onde a consciência social é maior. Em lugares assim, é possível falar em autonomia para o médico. Não em uma estrutura precária e desorganizada como a do Brasil.”
No final de setembro, Ribeiro ainda não havia retomado as cirurgias. Acompanhava os doentes no consultório e se ocupava da organização de um congresso de cirurgiões no Rio. Também preparava uma denúncia contra as novas regras de recadastramento de candidatos a transplante. Ele citou o caso de uma paciente sua que, pela manhã, estava em 238º lugar na lista e, doze horas depois, apareceu em sexto. “Isso é sério?”, disse. “Eu não vou voltar, não vou me arriscar e me expor, enquanto tiver essa baderna. Porque se eu opero essa pessoa, o que vai sair no outro dia? Que o chefe da quadrilha burlou a fila e operou a que era número 238!”