Ferrante cria conflitos romanescos que incham como bexigas até o ponto de tensão máxima, mas no fim não estouram: desinflam de modo anticlimático, numa recusa dos artifícios literários FOTO: MARIO CATTANEO_© MUSEO DI FOTOGRAFIA CONTEMPORANEA
À espera dos bárbaros
O que os personagens masculinos de Elena Ferrante têm a nos dizer
Alejandro Chacoff | Edição 137, Fevereiro 2018
Nos livros de Elena Ferrante, todo mundo apanha. Um menino joga uma pedra na cabeça de sua colega de escola, e o sangue jorra; uma mãe enche a filha de tapas, e depois ameaça quebrar as suas pernas; um pai joga a filha pela janela e o vidro estilhaça. Um mafioso, muito apaixonado, dá um murro na cara de sua amada durante um funeral, e a deixa estirada no chão, cuspindo dentes. “Vivíamos em um mundo em que crianças e adultos frequentemente se feriam”, diz Elena Greco, a Lenu, narradora e protagonista dos livros que formam a saga napolitana de Ferrante. “Sangue escorria das chagas, que depois supuravam e às vezes se acabava morrendo.” Nas memórias de Lenu, a Nápoles do pós-guerra, essa Nápoles de sua infância, era um lugar perigoso, “cheio de palavras que matavam: crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra”. “Também se podia morrer de coisas que pareciam normais”, como ingerir cerejas sem cuspir o caroço ou engolir chicletes por distração. Antes do fim, contudo, fosse ele provocado por doença, crime ou asfixia, imperava a brutalidade. “A vida era assim e ponto final, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós.”
A tetralogia napolitana – formada pelos romances A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida – tem mais de 1 500 páginas, muitos personagens e reviravoltas, mas a sua trama central é simples. Lenu – brilhante, intensa, boa aluna na escola – quer escapar dessa barbárie, fugir de seu bairro para a civilização, embora esse desejo seja sempre difuso e mal articulado: nunca é claro no que consistiria a fuga e de que modo ela se daria. Raffaella Cerullo, a Lila, é a sua melhor (e, muitas vezes, pior) amiga. Lila também é intensa e brilhante como Lenu, mas o seu brilhantismo é anárquico, autodidata. Ela rejeita os estímulos de professores e caçoa das promessas de uma futura felicidade burguesa em algum lugar mais civilizado. É uma menina prodígio niilista, cética diante das instituições e dos intelectuais grã-finos. O fio narrativo que conduz os livros é a amizade turbulenta entre essas duas personagens, contada desde a primeira infância até a velhice.
Numa leitura reducionista da história, Lenu é a civilização (aspiracional, estudiosa, cerebral, mas às vezes sem graça, vaidosa, prolixa), e Lila, o bairro (atávica, caoticamente talentosa, com imensa facilidade para o improviso; mas destrutiva, cruel, recalcada com o requinte dos outros). Lenu nunca consegue se livrar da sensação de ser menos do que Lila (menos bonita, menos interessante, menos inteligente); atrelada a essa sensação está o medo de não conseguir escapar de suas origens. O bairro (ou seja, Lila) a repele e a seduz – a casa é, afinal, o centro onde acontecem aquelas três ou quatro coisas importantes na vida de alguém, como diz um poema de W. H. Auden. Ferrante aborda esses temas fundacionais de civilização e barbárie, casa e exílio, num formato folhetinesco, descrevendo as reviravoltas da amizade entre Lenu e Lila e as subtramas melodramáticas dos muitos personagens ao redor. Essa infusão de temas imemoriais com técnicas narrativas do melodrama diz algo sobre a hibridez peculiar da escrita de Ferrante – ela que frequentemente parece uma roteirista de novela que leu e releu não apenas os romances de Balzac, mas também a Ilíada e a Eneida.
A mãe de Lenu é dona de casa; o pai é contínuo na prefeitura. A narradora também vê nos dois um lembrete constante de suas origens. A mãe, uma mulher raivosa e violenta, sempre crítica das aspirações intelectuais da filha, tem um problema nas pernas que a faz mancar; Lenu passa a vida atenta aos menores sinais de qualquer dor em suas próprias pernas. O serviço público do pai não é visto com orgulho. Pelo contrário: quando evoca a repulsa que sente por malandragens e negociatas napolitanas, é justamente dele que ela lembra.
A terra das duas amigas não é terra incognita. No imaginário de quem consome cultura, o sul da Itália tem um status desproporcional ao seu tamanho no mapa. Os Corleone e os Soprano emigraram dos mesmos arredores, assim como as suas imitações mais baratas; e ainda que não esteja sempre presente como locação, o território existe como ideia fixa no gênero de livros e filmes sobre a máfia. Na saga, o bairro é dominado por Marcello e Michele Solara, dois irmãos mafiosos incontornáveis que fazem agiotagem, cobram taxas dos moradores, extorquem quem se atreve a desafiá-los. Quando o pai e o irmão de Lila decidem fabricar um novo par de sapatos com base nos desenhos da filha, são forçados a aceitar a presença dos irmãos no empreendimento. E quando Lila se casa com Stefano Carracci, herdeiro da charcutaria do bairro, os Solara forçam a barra para terem mais influência nos negócios do salsicheiro. Em diferentes momentos da história, tanto Marcello quanto Michele se apaixonam por Lila; como não conseguem possuí-la, tentam comprá-la, seja oferecendo dinheiro para os negócios do pai e do irmão, seja forçando a presença em reuniões da família.
Os irmãos Solara espancam esposas e amantes; surram pessoas em público. Certa noite, enquanto comemoram o Ano-Novo na varanda, trocam os fogos de artifício por balas de revólver. Sentem um prazer imenso em ostentar o poder que possuem; Michele com o seu jeito “irônico” e gozador, Marcello fazendo o papel de machão mais quieto. Dirigindo a esmo pelo bairro num Millecento, parecem simbolizar tudo que Lenu mais rejeita: o deleite do pequeno poder, a autossatisfação tosca e vulgar dos incivilizados, aqueles que acham que o bairro é o mundo, e o mundo é o bairro.
Omotif da saga napolitana – a ânsia de fugir da província para a metrópole; a dicotomia entre civilização e barbárie – não reverbera só em Lenu e Lila. Os personagens masculinos da saga também podem ser divididos, grosso modo, entre os homens do bairro (os irmãos Solara, o salsicheiro Stefano Carracci, Antonio, Enzo), os homens da urbe (Franco Mari, Pietro Airota), e os homens do bairro que, assim como Lenu, flertam com a urbe (o militante comunista Pasquale, o “poeta-ferroviário” Donato Sarratore, e o seu filho, Nino). Dois desses homens – Nino Sarratore e Pietro Airota – recebem um tratamento mais profundo ao longo da trama, e não é gratuito que ambos estejam mais na órbita da urbe do que do bairro.
Nino Sarratore é o amor de infância de Lenu. Filho de um casamento fracassado entre uma dona de casa traída e um poeta medíocre, é tido como aluno brilhante na escola. Pálido, muito magro e taciturno, caminha sozinho pelo bairro e lê muito. Despreza as vulgaridades dos locais e nunca disfarça esse desprezo. Lenu se apaixona por ele desde cedo, observando-o a distância. E mesmo quando ela começa a namorar o mecânico Antonio, um menino do bairro bonzinho mas sem grandes ambições, é em Nino que continua a pensar.
O contato ocasional entre os dois tem sempre uma aura platônica. A certa altura, durante o ginásio, Nino propõe que Lenu contribua, com um artigo, para uma revistinha que ele edita. Quando ela entrega o texto, Nino se assusta. “A professora Galiani estava certa” diz. “Você escreve melhor que eu.” A frase enche Lenu de alegria, e reforça a imagem de nobreza que Nino evoca nela. No casamento de sua melhor amiga com o salsicheiro do bairro, ela o encontra outra vez. Ele aparece na festa sem gravata e com a camisa desarrumada, e os dois começam a conversar sobre política. “Eu estava encantada com a maneira como Nino me falava: sem nenhuma subalternidade. Expunha-me seu futuro, as ideias que embasariam a sua construção. […] Ele sim, me teria livrado de minha mãe, ele, que não queria outra coisa senão livrar-se do pai.” Quando os irmãos Solara entram no salão da festa, Nino sai imediatamente, e Lenu nota o seu desprezo pelos mafiosos. A cena a seduz. “Naquela sequência o filho de Sarratore – ele que crescera nos edifícios do bairro velho justamente como nós, que me parecera muito assustado quando tratara de superar Alfonso nas disputas escolares – parecia já de todo estranho à escala de valores em cujo vértice despontavam os Solara. Era uma hierarquia que visivelmente não lhe interessava, que talvez nem sequer entendesse mais.”
O amor de Lenu por Nino, como todo amor adolescente, tem uma essência narcísica. Em sua ambição intelectual, em seu desprezo pelos modos do bairro, nos conflitos com o pai, Nino se parece muito com a protagonista. Ela vê nele quase um espelho de si mesma: alguém talentoso e curioso demais para ser contido no bairro. Nino e Lenu são dois deslocados; e em meio às frivolidades e à ostentação provinciana da festança de Lila e Stefano, parecem perfeitos um para o outro, justamente por causa desse deslocamento mútuo – um pouco como o senhor Darcy e Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito. Lenu deixa o casamento decidida a abandonar o namorado e a tentar algo com Nino. Mas os dois se distanciam e, tempos depois, quando se reencontram numa viagem de veraneio à praia de Ischia, é por Lila – a melhor amiga de Lenu e em certo sentido o seu oposto – que Nino se apaixona.
Aescrita de Ferrante não é apenas híbrida – existe nela uma tensão contraditória. O instinto de narradora folhetinesca, enamorada do artifício, batalha constantemente com outro instinto mais contemporâneo: o de mostrar a realidade em sua “crueza” narrativa, cheia de deformidades e lacunas gratuitas, distante das soluções formais clássicas do romance e do conto. A saga napolitana é feita de inúmeros conflitos romanescos que incham como bexigas até o ponto de tensão máxima, mas no fim não estouram: desinflam e ricocheteiam de um lado ao outro da sala, com essa feiura disforme e anticlimática que é típica da realidade. Nesses momentos, a saga de Ferrante lembra um pouco a série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård – os dois projetos buscam, embora em intensidades e formas diferentes, uma autenticidade antiartifício.
Fosse uma tradicional roteirista de novelas, por exemplo, Ferrante exploraria narrativamente a traição de Lila, que “rouba” o amor da vida de Lenu; e um embate melodramático seguiria. Mas não é o que acontece. Após o choque inicial da traição, Lenu se compadece da amiga, cujo casamento com o salsicheiro Stefano passara da fase inicial feliz para um misto de tédio existencial e violência doméstica. A melhor amiga e Nino, por sua vez, procrastinam: se encontram às escondidas no bairro, sempre adiando o momento de fuga, e Lenu vira uma cúmplice dos dois. Quando finalmente se juntam, a paixão de Lila e Nino – tão bem descrita, tão palpável naqueles dias de veraneio na costa – esmorece depois de 23 dias, quando os primeiros atritos surgem entre o novo casal. Lila está grávida, e Nino, já inseguro por ter agido num impulso de veraneio, volta para a casa dos seus pais. Lila, por sua vez, retorna aos braços do marido. Stefano Carracci não consegue admitir para si mesmo que chegou a ser abandonado, e começa a trair a esposa; e assim ele e Lila seguem por um bom tempo num casamento faz de conta, até que o salsicheiro decide enfim trocá-la pela amante.
Procrastinação, falta de decisão, covardias mútuas: esses pequenos dramas têm o sabor morno e pastoso da realidade. É uma bagunça sem páthos. A construção da paixão de Lenu por Nino, à maneira de Jane Austen, é a bexiga enchendo; os dramas repetitivos e banais do caso entre Lila e Nino é a bexiga ricocheteando. A prosa de Ferrante – seca e imperturbável, magistralmente traduzida por Maurício Santana Dias nas edições brasileiras – gera a impressão de uma neutralidade constante, mas é notável a fluidez com que ela mistura métodos e muda de marcha, passando, às vezes no intervalo de uma ou duas frases, de construções romanescas para um caos fragmentário. É como se a própria autora não se decidisse entre o tom aspiracional de Lenu e o profundo ceticismo de Lila.
Ocaso entre a melhor amiga e o seu amor de infância tem certo efeito libertador para Lenu. Ela foca nos estudos e consegue entrar na prestigiosa Escola Normal, em Pisa, e finalmente vai embora de sua cidade. Em Pisa, encontra um mundo novo, de seres educadíssimos, cultos de nascença. “Aprendi a controlar a voz e os gestos. Assimilei uma série de regras e comportamentos escritos e não escritos. Submeti ao mais estrito controle o sotaque napolitano. Consegui demonstrar que era competente e digna de estima, mas sem nunca assumir ares esnobes, fazendo autoironia sobre minha ignorância, fingindo-me surpresa com meus bons resultados.” Essas frases podem dar a impressão de certo autoflagelo, mas o teatro autoconsciente da reinvenção é na verdade algo muito prazeroso: qualquer pessoa que já tenha saído do interior para estudar na capital reconhecerá nessas passagens a alegria trêmula que o exílio provoca. Em Pisa, Lenu admite encontrar “o paraíso na terra: um espaço todo meu, uma cama só para mim, uma escrivaninha, uma cadeira, livros, livros e livros, uma cidade em tudo diferente do bairro e de Nápoles, cercada apenas por gente que estudava e era propensa a discutir o que estudava”.
Um desses estudiosos é um menino tímido e desajeitado, de óculos e pés tortos, com “uma juba embaraçada de cabelos pretíssimos”, que certo dia se aproxima e puxa conversa. Seu nome é Pietro Airota, e embora Lenu não se sinta particularmente atraída por ele, os dois começam a se ver com frequência; fazem caminhadas, vão às aulas e estudam juntos. No fim, é a ambição intelectual e a inteligência de Pietro que acabam por atrair Lenu. “Ele me surpreendeu: assim como eu, já tinha começado a trabalhar na tese, assim como eu, a estava fazendo em literatura latina.” Assim como eu: o Pietro da juventude, como o Nino da infância, representa um ideal civilizatório abstrato que a protagonista tem para si mesma (uma das coisas que mais a fascina é o desejo que Pietro tem de publicar a sua tese em formato de livro). Os dois começam a namorar e, pela boca de outros alunos, Lenu logo descobre que o sobrenome Airota é famoso – Pietro é filho de um professor muito conhecido de Gênova e de Adele Airota, uma editora de livros influente.
Para Lenu, a família de intelectuais aristocratas é tão fascinante que não seria exagerado dizer que ela se apaixona mais por eles do que pelo próprio namorado. As conversas de geopolítica na mesa do almoço, o jeito calmo e ponderado de discutir arte e outros temas graves: a narradora confessa que o medo de perder Pietro é indissociável do medo de perder os Airota.
Os dois decidem se casar. Um dia, arrebatada por memórias, Lenu escreve “de um jato só” um monte de páginas sobre uma experiência sexual que teve certa vez numa praia. Dá o caderninho manuscrito a Pietro de presente, uma única cópia. Um tempo passa sem que o marido mencione o caderninho, até que um dia Lenu recebe uma ligação surpresa de sua sogra, a editora Adele Airota. Pietro passara o caderno para a mãe em segredo. Adele parabeniza Lenu pelo texto (cita “um mistério da escrita que só os livros de verdade têm”). Depois lhe informa que uma editora em Milão irá publicar o romance.
Aentrada de Lenu na literatura é um ponto de inflexão na saga. Num primeiro momento, a publicação do romance representa tudo que a protagonista sempre quis: acesso ao mundo glamoroso dos Airota e da elite intelectual italiana; resenhas e reconhecimento artístico; algum dinheiro, até. Para quem sempre quis escapar da violência do bairro, parece o apogeu. O início do casamento de Lenu e Pietro é de fato uma espécie de idílio. Pietro é um homem gentil e responsável, embora sem grandes arroubos de paixão, e os dois levam uma vida feliz e plácida. Dividem o espaço de trabalho; têm duas filhas; ele consegue uma cátedra em Florença e se destaca no mundo acadêmico, enquanto ela trabalha num segundo livro.
Mas se traz êxtase, a escrita do primeiro romance também gera uma perda de inocência em Lenu. Assim como a própria Ferrante oscila entre um estilo romanesco e outro mais cortante e cru, a protagonista, ao tornar-se escritora, tem um ganho de autoconsciência, e começa a questionar algumas premissas anteriores. A consciência da escrita coincide com a entrada de Lenu na vida adulta. E o amadurecimento, assim na vida como na escrita, sempre traz consigo mais ceticismo e ambiguidade. O resultado é a perda de algumas ilusões, e uma visão mais complicada da moralidade e dos desejos.
A transformação se nota sobretudo na mudança gradual da aura dos dois principais personagens masculinos dos livros. Até certo ponto da história, tanto Nino quanto Pietro evocam admiração, em parte porque o leitor tem acesso à visão um pouco romantizada da jovem Lenu. Nino é charmoso, articulado, inteligente, se rebela contra o pai canalha, tem ideias políticas interessantes. Pietro é sério, estudioso, discreto, nunca ostenta o sobrenome que tem. Ambos parecem o oposto dos irmãos Solara e do salsicheiro Stefano, os machões violentos e vulgares do bairro. Mas basta que Lenu atinja o cume da montanha civilizatória para que essa oposição – tão demarcada no começo da saga – comece a parecer menos nítida.
Passada a fase inicial de idílio modesto, o casamento de Lenu e Pietro se arrasta entre suspiros de tédio. Pietro só pensa em suas aulas, e não cuida direito das crianças. O sexo entre os dois é insosso. “Entrava em mim com investidas calculadas, violentas, tanto que o prazer inicial se atenuou aos poucos, vencido pela insistência monótona e pela dor que sentia no ventre”, Lenu descreve. “Ele se cobriu de suor pelo demorado esforço, talvez pelo sofrimento, e ao ver seu rosto e o pescoço banhados, ao tocar suas costas empapadas, o desejo sumiu inteiramente.” Depois ela emenda: “Eu não sabia como me comportar; acariciava-o, sussurrava-lhe palavras de amor e torcia para que parasse. Quando explodiu num rugido e desabou finalmente exausto, me senti contente, apesar de dolorida e insatisfeita.”
Frequentemente, Pietro goza e escapa direto para a sua escrivaninha, para trabalhar. O seu desleixo com a casa começa a irritar Lenu. Quando ela decide, com a ajuda da sogra, contratar uma empregada sem avisá-lo, ele a confronta. “Não quero escravas em minha casa”, diz, ao que a sua própria mãe rebate: “Não é uma escrava, é uma assalariada.”
Encorajada pela sogra, Lenu discute com o marido:
“Então você quer que a escrava seja eu?”
“Quero que você seja mãe, não escrava.”
“Eu lavo e passo suas roupas, limpo a casa, cozinho para você, lhe dei uma filha, cuido dela com mil dificuldades, estou exausta.”
“E quem a obriga a isso? Por acaso eu já lhe pedi alguma coisa?”
Essas desavenças mundanas, muito típicas de qualquer casal daquele (e talvez ainda deste) tempo, não condenam Pietro, exatamente – mas inserem uma dose pesada de ambiguidade no personagem. E Ferrante transmite bem o senso de tédio profundo que Pietro inspira a cada briguinha, a cada palestra condescendente que dá sobre os ritos báquicos e seus demais temas de pesquisa. Não chega a ser surpreendente que Lenu se torne uma espécie de Emma Bovary, presa num limbo matrimonial do qual lhe falta empuxe suficiente para escapar. Entediada e irrequieta, ela flerta com outros homens em jantares, às vezes na frente do marido. Espera, vagamente, que algo aconteça.
Eis que Nino Sarratore ressurge na história, Lenu afinal trai Pietro, e começa a ter um caso com o seu amor de infância. Nino está no segundo casamento e tem mais de um filho; ainda assim insiste para que Lenu deixe o marido. Quando Lenu avisa a Pietro que irá deixá-lo, o marido cai em desespero. Chora, se enfurece, arremessa uma mesa de vidro na parede e acorda as filhas com seus gritos. Lenu tenta dizer às filhas que o pai e a mãe ainda se gostam, mas ele a desmente, e diz às crianças que “é a mãe de vocês que decidiu ir embora”, e que “ela já não gosta mais de mim”. As resistências de Pietro fazem Lenu se lembrar das resistências do mecânico Antonio, o seu primeiro namoradinho do bairro, e ela reflete que talvez “tenha atribuído um peso excessivo ao uso cultivado da razão, às boas leituras, à língua bem governada, à filiação política”. Diante do abandono, conclui, “talvez sejamos todos iguais”.
Nino Sarratore e Pietro Airota são diferentes, mas circulam nos mesmos meios, conhecem as mesmas pessoas, dividem a mesma escala de valores. Pietro é acadêmico cabeçudo, Nino ensaísta e militante político. Os dois são burgueses de esquerda. Nino admira o “Airota pai” imensamente e, por um tempo, tem uma relação cordial com Pietro, com muitas trocas de ideias. É só depois que a disputa por Lenu se acirra que ele começa a desdenhar das opiniões do Airota filho, considerando-o “um professorzinho desprovido de imaginação, superestimado apenas pelo sobrenome que tem e por sua obtusa militância no Partido Comunista”.
Karl Ove Knausgård, com honestidade tipicamente brutal, argumenta num de seus livros recentes que os seus escritos íntimos ecoam em tantas pessoas não porque sejam universais, mas porque o perfil do leitor de ficção atual é muito uniforme. Quem se interessa por literatura, segundo Knausgård, faz parte de um nicho particular da classe média e classe média-alta letrada, com pouquíssimas variações. É uma generalização indigesta, talvez um pouco dolorosa; mas não me parece muito distante da realidade. Como Nino, como Pietro, eu também sou um burguês de esquerda, por assim dizer – e muitos dos meus amigos e conhecidos que se interessam por literatura também.
Essa coincidência identitária entre alguns dos prováveis leitoresda saga napolitana – refiro-me aos leitores homens – e os dois principais personagens do sexo masculino obviamente não escapa a Ferrante, uma escritora bastante manipuladora, no melhor sentido da palavra. Nino Sarratore e Pietro Airota se tornam, aos poucos, cavalos de Troia existenciais para o leitor masculino. É fácil se reconhecer nesses personagens no começo da saga. Os seus anseios e paixões, os posicionamentos políticos, os instintos republicanos, o rigor e a curiosidade intelectual: tudo isso é familiar. Um determinado leitor pode se identificar mais com a sobriedade discreta de Pietro, outro com a astúcia social e as opiniões engajadas de Nino – outro, ainda, com uma mistura dos dois. Mas quando esses mesmos homens caírem do pedestal erguido pela jovem Lenu, mais à frente na trama, o leitor, se for honesto, se verá forçado a considerar também os seus próprios defeitos e falhas de caráter.
Nino surge a princípio como um salvador, oxigenando a vida tediosa de Lenu. Ao contrário de Pietro, cujo orgulho intelectual é maçante, ele não tem problema algum em reconhecer a inteligência da amada. Num jantar a três, antes que o seu caso amoroso com Lenu fique evidente, Nino pergunta a Pietro se leu o texto da esposa, uma espécie de ensaio político feminista que será publicado como livro. Quando Pietro responde que ainda não teve tempo de ler, Nino o provoca:
“Não é coisa para você.”
“Como assim?”, Pietro diz.
“É muito inteligente.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Que você é menos inteligente que Elena.”
Pietro se irrita com a frase e se levanta da mesa em silêncio. As alfinetadas que Nino frequentemente impõe ao seu rival são eficazes, vale dizer, humilhantes. Airota filho resiste a aceitar que a sua mulher tenha mais talento do que ele.
Algumas das características mais mesquinhas de Pietro são visíveis só em retrospecto. Um pouco antes de casarem, por exemplo, quando recebe de presente o caderninho manuscrito de Lenu, Pietro não elogia o romance. Apenas faz alguns comentários vagos sobre como ele próprio gostaria de escrever “um livrinho” de pequenos fragmentos, desses em “que você começa uma frase, não funciona e joga no lixo” – o que ele chama de “talvez a única literatura hoje possível”. É uma forma sutil e um pouco covarde de diminuir o trabalho da futura esposa. Em outro momento, o marido diz a Lenu, num tom de recalque: “Você escreveu um romance, assuma as responsabilidades.” Apesar do respeito acadêmico que comanda fora do país, e do seu sobrenome respeitado, Pietro é profundamente inseguro – e o seu desespero ao ser deixado pela protagonista é em parte fruto disso.
Nino, por outro lado, tem discursos progressistas belos, mas sempre com uma tendência de moldá-los aos seus fins individuais. Lenu aos poucos repara no arrivismo do amigo desde os tempos de infância, na prontidão a passar para trás quem não tem prestígio intelectual suficiente e a elogiar quem goza de autoridade – uma percepção que quebra a imagem de dignidade que ela construíra dele “e que ele mesmo em geral se atribuía”. O feminismo exibicionista de Nino também serve muito bem à sua promiscuidade. Há um diálogo cômico e esclarecedor quando Lenu percebe a tendência de seu amado a glorificar todas as mulheres que conhece. “Será possível que não exista uma mulher idiota?”, ela lhe pergunta, com sarcasmo. Nino tergiversa, lança a platitude de que no geral as mulheres são melhores que os homens, e afirma que ela própria é melhor que ele. Mas Lenu insiste: quer que ele cite pelo menos uma “cretina”. No fim, irritado, ele diz que a única idiota que já conheceu foi Lila, a melhor amiga de Lenu.
A escolha é sintomática: Lila é claramente a mulher mais talentosa e inteligente da saga. O comentário tem também uma veia premonitória. No fim, Nino faz com Lenu exatamente o que fez com Lila. Procrastina, enrola para terminar o relacionamento com a sua mulher atual, Eleonora; e nunca assume, de fato, o papel de cônjuge responsável – vira apenas uma espécie de padrasto divertido e ausente de Dede e Elsa, as duas filhinhas de Lenu. O relacionamento entra em crise após uma cena tão pantomímica quanto convincente, mais para o fim da história. Lenu chega cedo em casa, e sem querer o flagra no banheiro, transando com a empregada.
Nino e Pietro não são os únicos personagens masculinos a ganharem densidade ao longo da saga. O mesmo ocorre com os terríveis irmãos Solara; mas a mudança é num sentido inverso. Entre uma e outra surra, os machões violentos do bairro começam a demonstrar momentos de compaixão e generosidade. Quando a mãe de Lenu adoece no fim da vida, por exemplo, bancam um quarto de hospital caríssimo, e são os que mais demonstram comiseração com a doença. Nino, com o seu costume de usar discursos políticos convenientes, critica Lenu por aceitar dinheiro de mafiosos – e depois se mostra completamente ausente no período de convalescência da sogra.
A ambiguidade dos irmãos Solara não é apenas uma construção bem executada da autora. Há décadas, esses personagens masculinos – mafiosos viris e violentos, mas psicologicamente complexos, criados em um ambiente hostil, onde se mata ou se morre – vêm sendo refinados. Michael e Vito Corleone, Henry Hill de Os Bons Companheiros, Tony Soprano: a surpresa a essa altura da história da arte seria encontrar algum mafioso burro ou sem profundidade.
Os irmãos Solara são, na verdade, personagens menos interessantes e menos pungentes do que Michael Corleone ou Tony Soprano. Isso não se deve a qualquer inabilidade autoral, mas ao fato de que os tormentos psicológicos dos machões do bairro não interessam tanto a Ferrante como os dilemas de Nino e Pietro, os homens mais próximos da protagonista. Ao descrever a violência da Camorra e o domínio dela sob os aspectos mundanos da vida dos moradores do bairro, Ferrante se junta a uma tradição autoral essencialmente masculina (Mario Puzo, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, David Chase); ao não fetichizar essa violência ou explorá-la para efeito artístico, ela abandona essa mesma tradição, na qual mal havia se inserido.
É uma decisão autoral reveladora. Ao relegar os mafiosos a um cenário, e focar os seus esforços nos burgueses de esquerda, Ferrante mostra o quão narcísica é a obsessão masculina com “anti-heróis”. A narrativa corrente é a de que personagens como Soprano, Corleone, e o professor de química/traficante Walter White, da série Breaking Bad, representam as ânsias e os dilemas de homens comuns; e por isso nos identificamos tanto com eles. Não é um argumento inválido, mas é inegável que as experiências de Nino e Pietro estejam muito mais próximas do leitor médio. O interesse excessivo por anti-heróis, e a vontade latente de enxergar paralelos com a vida deles, parece mais uma fantasia. É melhor nos enxergarmos nos dilemas de vida ou morte e coragem casual de Michael e Vito Corleone do que nos dilemas banais e inseguranças de Nino Sarratore e Pietro Airota.
Nino e Pietro obviamente não são os primeiros burgueses de esquerda a aparecerem na literatura. Mas é raro que personagens desse tipo sejam abordados com um realismo tão desimpedido como o de Ferrante. Mesmo na mão de escritores impiedosos, como Philip Roth ou John Updike, costumam ser temperados com uma certa ternura ou autoironia (em parte porque frequentemente representam alteregos). Por mais que abandonem filhos, enganem esposas, ou desrespeitem namoradas, Alexander Portnoy e Harry “Rabbit” Angstrom sempre fazem algo engraçado ou vagamente digno que os redime. Assim como os Solara são menos romantizados do que os Corleone, Nino e Pietro são menos romantizados que Portnoy e Rabbit. Reconhecer os próprios defeitos – a insegurança, a covardia ocasional, o ego frágil, o gosto pelos próprios discursos – nos dois italianos intelectuais é doloroso. Mas é tão inevitável quanto enxergar-se nas qualidades deles.
Essa autocrítica do leitor masculino (ou pelo menos deste leitor masculino) não seria possível se as mulheres de Ferrante não fossem também amálgamas morais dúbios. Fossem elas boazinhas, a tentação de interpretar os defeitos de Nino e Pietro como uma “obtusa militância” seria muito grande. Mas Lila é cruel e agressiva, humilha a melhor amiga o tempo todo. Lenu é invejosa e deslumbrada; a sua vontade excessiva de agradar os outros e se exibir intelectualmente é nauseante. No fim, é ela que trai Pietro – antes disso, paquera outros homens na frente da filhinha menor, e faz a menina chorar quando ela ameaça contar ao pai.
É animador ver uma escritora feminista como Ferrante não segurar a mão quando se trata de mostrar esses defeitos. Talvez por pressões mercadológicas, muitos romances e filmes recentes têm entregado uma porção de heroínas “fortes” e insossas; como se apenas inverter o sinal da moralidade resolvesse um problema sociológico de gênero. Com o seu feminismo oblíquo e autoconsciente (a certa altura, Lenu escreve um livro-ensaio sobre o papel colonizador que o homem exerce sobre a mulher, e descreve as suas dificuldades em se adequar ao que o público espera dela), Ferrante avança uma causa nos interstícios da narrativa, com firmeza mas sem abrir mão das contradições inerentes à forma literária. Não é o único feminismo possível. Mas, na forma do romance, é difícil imaginar outro mais eficaz.
“Fazer mal era uma doença”, Lenu diz no começo da saga. “Desde menina imaginei animaizinhos minúsculos, quase invisíveis, que vinham de noite ao bairro, saíam dos poços, dos vagões de trem abandonados para lá da plataforma, do mato malcheiroso chamado fedentina, das rãs, das salamandras, das moscas, das pedras, da terra e entravam na água, na comida e no ar.” Na Nápoles do pós-guerra, é difícil atribuir toda violência física a uma falha de caráter – a violência simplesmente está “no ar”. E num mundo onde todo mundo bate e todo mundo apanha (embora alguns sempre batam mais do que apanhem, e vice-versa), é difícil fazer julgamentos morais. Ferrante se refestela com essas áreas cinzentas da moralidade. E, se no início da tetralogia napolitana os meninos do bairro pareciam mais toscos e malévolos do que os meninos da urbe, no fim já não é possível fazer esse julgamento.
Talvez o único homem da saga ao qual se possa atribuir uma falha moral mais profunda seja Donato Sarratore, o pai de Nino. Donato é um poeta medíocre e pomposo do bairro, que por ter publicado um livro de poesia e alguns artigos em jornais da capital acredita-se um grande artista. O talento artístico imaginado lhe dá confiança para fazer o que bem entende. Sabe-se que traiu a esposa por muito tempo com a amante, Melina, que quando é abandonada quase enlouquece. Durante uma temporada de veraneio na praia de Ischia, ele invade o cômodo onde Lenu está dormindo, dá-lhe um beijo e a acaricia entre as pernas. Na época, Lenu ainda tem 15 anos e alimenta desejos pelo filho desse homem que agora vem molestá-la. A experiência lhe causa embaraço e confusão mental. Mais tarde, quando a protagonista descobre que Nino e a sua melhor amiga estão juntos, Donato se aproveita do momento de fragilidade para transar com ela, na praia. A experiência tem repercussões psicológicas profundas, e serve de base para o primeiro romance de Lenu.
Como o provinciano que se acha cosmopolita, ou o oligarca que se crê democrático, Donato é um amálgama mal-acabado de civilização e barbárie. E assim como o mundo dos personagens masculinos se torna mais turvo ao longo da saga, esses dois conceitos, tão nítidos e diferenciáveis no começo, no fim se confundem. Pouco a pouco, a visão de Lenu sobre a vida intelectual fora do bairro se revela idealizada. Mas essa constatação não é amenizada por um retorno triunfal a casa ou coisa do tipo. Mais velha, Lenu vai com mais frequência a Nápoles, e o bairro permanece o mesmo – violento, deprimente, sem grande perspectiva de melhora. Há algo anticlimático no quarto e último volume da saga, que parece reproduzir o caráter anticlimático da própria velhice, uma história com pontas soltas que já acabou mas ainda se arrasta.
Quando Lenu flagra Nino transando com a empregada no banheiro, ela nota uma expressão diferente em seu rosto. Logo se dá conta de que é a mesma expressão que Donato, o pai de Nino, tinha quando a acariciara entre as pernas. O pai terrível contra quem o amado se rebelara. “Nino era aquilo que não gostaria de ser”, a narradora conclui, “e, contudo, sempre tinha sido.” Mas com Lenu não é muito diferente. Quando sente uma vaga dor nas pernas, fica com medo de começar a mancar como a sua mãe, e faz um apelo aos céus. “Às vezes me surpreendia rezando para Nossa Senhora, apesar de me considerar ateia”, diz, “e me envergonhava.” É uma contradição bonita, um dilema psicanalítico e universal: para evitar ficar como a mãe, Lenu imita a mãe.
Civilização e barbárie, casa e exílio: os conflitos em Ferrante nunca se resolvem, apenas se aprofundam. “Diferentemente do que ocorre nos romances”, declara a autora na penúltima frase da saga, após mais de 1 500 páginas, “a vida verdadeira, depois que passou, tende não para a clareza, mas para a obscuridade.”